Monkey takes selfie

Cidades, muros (urbs), igrejas, religiões, livros impressos, estradas, navios, comboios, telégrafo, telefone, carros, aviões, autoestradas, internet, telemóveis. Tudo o que temos feito é para comunicar, cada vez mais, uns com os outros. Não por acaso, somos o animal mais aperfeiçoado na arte da carnificina.

Esta natureza obsediante rima com intrigante. Os elefantes vivem em grupos estáveis e se é certo que de vez em quando fazem uns congressos, mantêm o grupo. Os leopardos, ao contrário dos leões, detestam o semelhante (só se cruzam para a cruza). Avançando nos mamíferos: os primatas haplorrinos (subordem dos que têm membrana nasal) e os catarrinos (parvordem dos que  têm narinas não afastadas) também são quase todos dados ao convívio, mas deixam os outros grupos sossegados. Bem, os humanos são catarrinos e resolveram inventar: querem o grupo total.

Reza a lenda que a 10 de Março de 1976 Graham Bell utilizou a sua geringonça para chamar o seu assistente, Mr. Watson: I want to see you. Esta curta e pioneira conversa é um semi-logro. Nos dias de hoje estes utensílios raramente servem para chamar alguém. São para comunicar com alguém – conversas, vídeos e restante parafernália –, mas também é verdade que são para ver alguém. O Bruno Rafael pede à colega com quem tem um caso para lhe mostrar a blusa nova, se possível uma nadinha aberta. Se fosse só para falar, teríamos ficado pelos telefones. A marosca é outra.

No outro dia ria-me a imaginar como teria sido se Octaviano e a dupla António/Cleópatra, nas vésperas da batalha final, tivessem tido à disposição o Instagram ou o Tik-Tok. Octaviano está a reunir a armada em Brundísio, António espera-o ao longo da costa grega. Aquilo foi um regabofe de boatos – estátuas a sangrar, terramotos inventados, etc. – de um lado e do outro. 

Também sorrio ao imaginar Gravilo Princip depois da trapalhada inicial do ataque ao cortejo do arquiduque Francisco Fernando. Os camaradas falharam (até uma bombita) e Princip tresmalhou-se do grupo.  Não foi comer uma sanduíche como pinta a lenda: teria de ter sangue de barata. Estava era na esquina da Moritz Schiller (Delicatessen) sim, mas apenas meio aparvalhado. Se tivesse um i-phone teria sido informado do granel e da direcção que o arquiduque ia seguir. Não tinha, por isso acabou no sítio certo quando o motorista de Francisco Fernando se enganou no trajecto e dobrou a esquina. Princeps não falhou: é já. Vai daqui quero chegar ao seguinte: os humanos têm tanto interesse em conectar-se uns aos outros como em matar-se uns aos outros. Os chimpanzés são mais recatados.

De todas as novas situações, a mais interessante para um colecionador é essa misteriosa funcionalidade que dá pelo nome de grupo do WhatsApp. À primeira vista parece exagerado o meu interesse: “Ó pá nada de especial, uma maneira de o pessoal conviver aproveitando a tecnologia”. Não será bem assim.

Peguemos nos grupos de amigos, de família e de colegas de trabalho. O convívio entre amigos, familiares e colegas de trabalho necessita da tecnologia? Mal não faz, mas vejamos o que acrescenta.  Se cada grupo tiver em média, digamos, dez pessoas, é improvável que a comunicação seja sobre assuntos íntimos ou delicados: não se tem a mesma ligação a toda a gente. Sobram as fotos de culinária, viagens e a partilha de coisas ditas engraçadas ou da actualidade. O que isto acrescenta às relações escapa-me, mas existe outro aspecto divertido. Quando se fazem estes grupos tem de se decidir quem deles faz parte. A página tantas começaram dois ou três e o quarto quer adicionar fulano. Nasce a cizânia. Se formos à pré-história da tecnologia social lembramo-nos do café de bairro. Imaginam um petit comité para decidir se o Jorge se pode sentar à nossa mesa?

Há cerca de quarenta anos iniciou-se um debate entre a Hipótese de Humphrey e a Hipótese de Vygotsky. Resumindo: as nossas competências cognitivas desenvolveram-se através da competição ou da colaboração? A coisa liga-se a outra teoria segundo a qual as nossas capacidades cognitivas foram feitas, digamos assim, para a realidade do Plistoceno (Idade do Gelo no cinema): o que somos hoje foi conseguido pela evolução ambiental adaptativa, ou seja, através da nossa vida social. 

Temos então que a nossa vida social evoluiu para uma vida tecnossocial. Não precisamos de estar com os outros: precisamos de os ver, ler e ouvir. Há muitos anos havia à porta de uma loja, no meu bairro, uma maquineta de brindes (ou brinquedos, não me recordo) encimada por um macaco de peluche que soltava aos transeuntes “habla comigo” a intervalos regulares.  Talvez a nossa última herança comum aos outros primatas – o toque, o cheiro, a presença física – esteja condenada à extinção. E talvez tenhamos ficado parecidos com o macaco da maquineta.

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