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Itzig e o Cavalo sem Mestre

Uma das questões mais debatidas no âmbito da teoria das anedotas (veja-se o recente estudo de Alceu Lince, Uma das questões mais debatidas no âmbito da teoria das anedotas. O caso dos animais. Cartaxo, 2022) é o caso dos animais: porquê tantos papagaios e tão poucos cavalos, se os cavalos são mamíferos superiores? Não estou certo de compreender a relevância desta pergunta nem o interesse do próprio problema. Percebo no entanto que  anedotas de papagaios são invariavelmente boçais; as de cavalos são quase sempre do género intelectual, pois ilustram as teorias cognitivas do humor e não apelam ao horse laugh, riso cavalar, talvez por repúdio da expressão inglesa aliado ao demónio da correcção. Sendo também indiscutível que o hourse laugh é a melhor homenagem à anedota bem urdida e bem contada: estrondosa, a gargalhada confirma que a piada atingiu o alvo, e o alvo manifesta alegria e satisfação por ter sido atingido. Nem se deprecie, enfim, a vantagem de o hourse laugh conjugar voz activa e voz passiva, o que é mais do que nos oferece boa  parte dos periódicos.

Não obstante, as mentes rarefeitas persistem na avaliação, até por cima da burra: as anedotas de papagaios são boçais, as de cavalos são intelectuais. Só por isso, a fim de evitar dissabores, não conto nenhuma; ou vá lá, só uma e ainda assim advertindo que nela não figura nenhum papagaio.

Um sujeito viaja para o Algarve num automóvel moderadamente moderno[1]. A dado momento, em plena marcha, o motor deixa de trabalhar. O infeliz sai do carro, olha para o céu como a pedir-lhe explicações, e de súbito uma voz faz-se ouvir:  — É a correia da transmissão. Percebendo em segundos que o que ouve não vem do céu, o automobilista olha à volta, e vê apenas um cavalo, que ignora; dirige-se então ao motor. O cavalo aproxima-se e fala de novo (sim, já tinha sido ele a falar da primeira vez): — Não vale a pena ires ver; é a correia da transmissão. O viajante assusta-se; espavorido, desata a correr até que entra no primeiro café que lhe aparece. Escassos clientes, um empregado ao balcão, que o encara sem sobressalto aparente; e o sujeito, entre falta de ar e intermitências várias, menciona o cavalo falante e o que lhe disse sobre a razão da avaria. O empregado, sem se deixar perturbar, enquanto arruma umas chávenas que acabara de tirar da máquina, pergunta-lhe: — E de que cor era o cavalo? — De que cor?! — exclama atónito o nosso viajante. — Sei lá! O que é que isso interessa? Responde o empregado: — É que anda por aí um cavalo branco que não sabe nada de mecânica[2].

Pois bem, amparado pelo benefício da corroboração que extraio da anedota, a contribuição do presente artigo consiste no seguinte postulado: Qualquer que seja a cor do cavalo, e na condição de o resto permanecer constante, não existe relação necessária entre a cor do cavalo e o conceito de horse laugh.

Quase me aplaudi por ter sido o primeiro a formular este postulado. Mas a empáfia foi curta, porque logo me chegou às mãos, melhor, veio ao meu encontro, um breve ensaio de Robert Musil sobre o riso dos cavalos, melhor, sobre a possibilidade de os cavalos se rirem[3].

Para não alimentar expectativas exageradas, adianto já que o ensaio é decepcionante. Não porque não elabore convenientemente sobre o problema que se propôs: elabora, e convenientemente. Mas, convenhamos, não seria difícil para qualquer de nós que tivesse tido a sorte de ver um cavalo a rir, como Musil reclama ter visto, e fosse capaz de descrever a cena, como Musil faz. A decepção vem da actuação na cena de um moço do estrebaria que escovava o cavalo e o fazia rir de cócegas; ora o cavalo, tendo quatro axilas, «sofre talvez de duas vezes mais cócegas do que o ser humano». A comparação com o humano não é acidental, apesar das cócegas. Em primeiro lugar, porque o propósito do ensaio é justamente impugnar pelo contra-exemplo a afirmação de «um prestigiado psicólogo» de que «o animal não conhece risos nem sorrisos». Em segundo lugar, porque o contra-exemplo tem o intuito oposto e secreto — dir-se-ia irónico… — de desqualificar o humano, o que leva a cabo com alguma graça. Por um lado, os dois, moço e cavalo, «estavam visivelmente a actuar de comum acordo […] não podia subsistir a mínima dúvida de que também o cavalo queria rir-se».  Por outro lado, «dos dois, quem relinchava sempre de riso era o moço», e de tal diferença Musil conclui: «esse parece, efectivamente, ser apenas um dote humano, relinchar de riso». A demonstração é impecável: se a palavra «relinchar» só se aplica a cavalos, se usamos a locução «relinchar de riso» e ninguém tem dúvidas sobre o que significa, seria absurdo que os próprios cavalos não se rissem e apenas servissem, neste capítulo, para prover os humanos de uma locução comparativa pouco graciosa mas muito expressiva. Então, ficando demonstrado que certo riso se assemelha ao relinchar do cavalo, quem pode afirmar que o próprio e literal relinchar do cavalo nunca é uma competente e genuína forma de riso? 

Pois, o mesmo Musil ousou afirmar isso mesmo, invertendo a comparação: não é o riso que se assemelha ao relinchar do cavalo, é o humano que assim se rindo se assemelha a um cavalo ou, nos termos de Musil, um dos dotes do humano é ser capaz de se assemelhar a um cavalo quando se ri (o humano, não o cavalo). Uma mente desatenta poderia ser levada a pensar que a Musil desagrada o riso. Não creio. Fiquei porém convencido de que lhe desagrada o riso provocado por anedotas. Numa peripécia final do ensaio, escreve: «Assim, a douta dúvida sobre a capacidade do animal limita-se ao facto de ele não ser capaz de se rir de anedotas. Mas isto nem sempre pode levar-se a mal ao cavalo.»

Aqui chego, enfim, ao ponto decepcionante. Musil limita a relação dos cavalos com as anedotas à capacidade de as entender. Certo que acrescenta que nem sempre se pode levar a mal ao cavalo; significa que quase sempre se pode levar a mal? Não me parece. Julgo que, pelo contrário, significa que não se pode levar a mal quase nunca, como se dissesse: pois se, diante de certas anedotas, certos humanos não são capazes de as entender[4], como exigir que as entendam os cavalos? Ora, simpatizando ou partilhando esta ideia, admitindo que está implicada na observação final de Musil, creio que a reversibilidade cavalo/humano em matéria de anedotas deve ir mais longe — porque pode ir mais longe. A pergunta agora seria: e os humanos? são eles capazes de entender o que fazem os cavalos nas anedotas?

O humano mais qualificado para responder a esta pergunta é indiscutivelmente Freud; nem só por ser o humano mais capaz de entender as limitações do entendimento dos humanos. É conhecido o estardalhaço analítico que fez com a anedota do cavalo do Duque de Wellington. Num museu de figuras de cera, o guia vai debitando ao longo do percurso informações triviais para um grupo de visitantes. A dado passo apresenta uma nestes termos: — Isto é o Duque de Wellington e o seu cavalo. Dentre o grupo de visitantes, uma menina pergunta: — Qual é o Duque e qual é o cavalo? Responde prontamente o guia: — O que quiseres, minha menina. Pagaste bilhete, a escolha é tua. 

Freud prova bem que a anedota consiste na combinação de duas técnicas, a da representação pelo oposto e a do deslocamento; a nós é que não adianta particularmente dar atenção a essas técnicas (falo tendo em mente quem, como eu, piedosamente se presume apenas capaz de imaginar o que venham a ser), por duas razões: a primeira é que a pergunta da menina, insinuando, não sabemos se com malícia se com inocência, que homem e cavalo são indiscerníveis, envolve a  também a sugestão de que foi o homem que se bestializou e não o cavalo que se humanizou; a segunda razão é encontrar-se na bibliografia de Freud um outro chiste com cavalo que parece ter tido maior importância do que este, já de si importante, e que, particularidade suprema para o que agora interessa, declara inequivocamente a superioridade do cavalo sobre o homem.

Pois dá-se o caso de Freud, numa carta de 7 de Julho de 1898 para Wilhelm Fliess — o controverso otorrino da conexão nasogenital, hoje desacreditado —, tratando de A Interpretação dos Sonhos, escrever o seguinte: «Meu trabalho foi inteiramente ditado pelo inconsciente, segundo o famoso princípio de Itzig, o cavaleiro dominical: — Para onde estás indo, Itzig? – E eu sei? Não tenho a menor ideia. Pergunte ao meu cavalo!”

Aqui, o cavaleiro não sabe, mas o cavalo, se interrogado, poderia responder. Será que o cavalo sabe? Esse o ponto em que não acolho bem a análise proposta no artigo em que colhi esta informação[5], e que conclui que, saiba ou não saiba, o interessante é a remissão para o cavalo da responsabilidade de resposta à pergunta sobre o caminho e o destino, ou só o destino nos muitos sentidos do termo. Acontece, digo eu, que nem sempre o saber se mostra em resposta, porque o sujeito suposto saber nem sempre responde. Mas o referido artigo é importante porque difunde a graciosa ideia de que uma das primeiras definições do inconsciente dadas por Freud estabelece a prioridade do witz na respectiva génese. Terei percebido bem? — pergunta quem me lê. O princípio do inconsciente, que inteiramente dita todo o trabalho de Freud, deriva de uma piada?

Na verdade, segundo apurei, é capaz de não ser bem assim. A passagem completa refere-se — surpresa! — à escrita, e afinal Freud está a dizer que escreve deixando-se guiar pela escrita como o cavaleiro Itzig se deixa guiar pelo seu inteligente cavalo: «Eu nunca comecei um único parágrafo — afirma, logo a seguir à passagem que citei acima — sabendo de antemão onde terminaria.» Convenhamos que no mundo de hoje há poucas ideias mais familiares, posto não seja trivial. O nome próprio Itzig, por outro lado, ajuda a distingui-la: tal ideia geral de escrita descomandada, se devidamente enquadrada pelo chiste de Itzig, podia apresentar-se nos cursos de escrita criativa como «princípio do cavalo desde que o cavalo seja o de Itzig» ou, em versão simplificada, princípio do cavalo de Itzig. A sugestão, agora que a escrevi, tornou-se menos atraente e pode não ser tão feliz como aparentava. É que vejo o retorno do mesmo, recalcado ou não: para o empreendimento de tais cursos se instalar segundo esse princípio, seria indispensável esclarecer de antemão — sob risco de fraude — que é suposto a escrita saber para onde vai mas nunca responde quando lhe perguntamos; em consequência o imperativo “pergunta ao cavalo!” resiste a substituir o eventual “pergunta à escrita!” 

Quem sabe, entretanto, se algum talento superior encontra solução para associar o “princípio do cavalo desde que seja o de Itzig” a um empreendimento escolar de excelência. Deixo a ideia. Até porque nós, portugueses, estamos qualificados para o fazer tão bem como qualquer personalidade finissecular vienense. Não temos o reputadíssimo cavalo lusitano, que dizem ser o mais antigo cavalo de sela do mundo? Se calhar, a ser verdadeira essa condição superlativa, devo concluir que não serve para o propósito da escrita criativa: a não ser que ao cavalo de sela não se exija o requisito da obediência plena ao cavaleiro que o monta. A serventia do lusitano não se esgota com facilidade, sempre impressiona pela figura, ou impressiona sempre pela figura: mais alto e mais caro, com outro donaire, prevalece sobre os papagaios, mesmo os muito coloridos. Com treino e formação avançada, há-de ser capaz —  falo ainda do puro cavalo lusitano —  de rir das anedotas contadas por campinos e toureiros entre façanhas e bravatas. Se é que tais indivíduos se misturam com o puro lusitano… talvez em dias de festa, ou em comemorações com o presidente da República. Em todo o caso, não estou a sugerir nada, seriam anedotas de marialvas, cheias de referências sexuais, de cavalidade tóxica.… Não é boa associação. Gostava de ter a quem perguntar se aquela anedota do cavalo branco aplica a técnica da representação pelo oposto. Do deslocamento, duvido, visto que o carro ficou parado. Por outro lado, nunca se sabe; se o carro acabou por decidir o curso do sujeito, acaba também por ficar equiparado ao cavalo de Itzig.  Mas “equiparado”, em certa história de João Guimarães Rosa[6], significa precisamente “parado a cavalo”, jogo com a etimologia quase infantil mas por isso mesmo encantador e nada estúpido. Falando em estúpido,  Manuel Bandeira indignava-se quando metiam cavalice na cena: “Sempre me irritou ouvir de um sujeito estúpido: ‘É um cavalo.’ O cavalo é um animal inteligente, observador. Grande observador, e o que é mais interessante, sans en avoir l´air.”[7] Não o imagino a dizer o mesmo dos papagaios, e parece que nem escasseiam no Brasil. Diabo de coisa, quem diria… Olhem, termino com uma sugestão de leitura: “O cavalo que bebia cerveja”, do mesmo Guimarães Rosa[8].
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[1] A versão que me chegou mencionava expressamente “uma Renault 4L”; substituí a indicação de marca e modelo para evitar a sugestão de que um deles ou ambos têm participação no curso da historieta. A Renault4L é um veículo a todos os títulos estimável, que merece o respeito de automobilistas, todos e todas.

[2] A mesma versão acima mencionada refere que o empregado falou “com um sorriso escarninho”, expressão que peço licença para eliminar; não apenas a palavra “escarninho” se tem mostrado cliché muito gasto, como o próprio estado de espírito que refere é hoje considerado hostil à harmonia social. Acresce que o dito sorriso, se considerado, sugeriria a inexistência do cavalo branco que seria apenas mencionado para efeito do sarcasmo do homem. Ora, embora reconhecendo o efeito estimável da anedota dentro da anedota, enquanto elemento capaz de intervir criticamente na lição transmitida pela tradição, julgo que a punch line fica mais poderosa se deixar intacta a indecisão entre a existência do cavalo branco e o sarcasmo do empregado, ou seja, a indecisão entre um mundo absurdo, mas encantador, e um mundo real, mas estúpido.

[3] Robert Musil, “Um cavalo é capaz de se rir?”, in Espólio em vida. Castro Verde: Narrativa, 2020, pp. 33-36.Tradução e posfácio de António Sousa Ribeiro.

[4] Vem a ponto referir o apotegma tradicional sobre as pessoas com dificuldades de entender anedotas: Riem-se sempre três vezes: a primeira, quando a ouvem; a segunda, quando lha explicam; a terceira, quando a entendem.

[5] Betty Bernardo Fuks, “Pergunte ao cavalo!”: sobre o inconsciente freudiano, Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v. 49.1, p. 123-138, 2017.

[6] “Famigerado”, em João Guimarães Rosa, Primeiras estórias (1962)

[7] Manuel Bandeira, “Braga”, Flauta de Papel, Selecta de Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 173.

[8] Também em Primeiras estórias.

Imagem de destaque: Horse Smiling, c.1939 – c.1940 – Lucian Freud – WikiArt.org, Fair Use.

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