(breve elegia-reportagem sobre um letão chamado Sergei Zholtok)
Aposto que tem música de fundo.
Aposto alto: singelo contra dobrado como nos livros do Texas Jack.
Burt Bacharach: Casino Royale; Eso Es La Amistad; Promessas, Promessas com textos de New Simond; elevadores subindo e descendo e despejando pessoas a esmo nos foyers frios de hotéis lajeados; That’s What Friends Are For: Dionne Warwick, Elton John, Gladys Knight, Stevie Wonder, também eles subindo e descendo nos elevadores, backing-vocals e dançarinos, talvez doze, talvez quinze, nunca muito menos do que isso; Ottawa, Pittsburgh, Los Angeles, Buffalo: quarenta e nove milhões de dólares por equipa, falências completas, greves, um ponto oito mil milhões de dólares de prejuízos totais em dez anos, tudo com música de fundo, tudo com música, tudo sem fundos.
Entre os mortos havia um que respirava: Texas Jack! Com ponto de exclamação.
Aposto.
Sobem nos elevadores senhores de gravata que discutem negócios: ignoram a música de fundo; ignoram o Burt Bacharach; ignoram o James Last, the king of non-stop dancing; ignoram American Gigolo sem Richard Gere, talvez a fazer fotografias desfocadas no Tibete, Podrang Karpo, Jokhang, Barkhor e por aí fora; ignoram o waiter que equilibra na bandeja um copo de pé e no copo de pé um martini dry de palito e azeitona verde e guardanapo de papel por baixo em direcção ao quarto 1855; ignoram as luzes vermelhas que se acendem, floor by floor, 10, 11, 12, 14, 15, 16, sem nunca ter 13, directo do 12 para o 14, o 14 a ser o 13 com pseudónimo; ignoram os hóspedes do quarto 1855, um casal bêbado de meia idade que faz sexo seco, Schwarzwaldfahrt aus Liebeskummer em música de fundo, música de elevador, música de quarto de banho climatizado e toalhas pelo chão, torneiras douradas, frascos de shampoo e gel de banho, sexo frio sobre o mármore do chão, um toque na porta em forma de martini dry palito e azeitona.
Senhores gordos de gravatas berrantes: rosa-choque, laranja-eléctrico, verde-néon.
Fatos assertoados.
Charutos humedecidos, meio mastigados.
Senhores gordos fazem apostas.
Chicago Blackhawks; Detroit Red Wings; Nashville Predators; St. Louis Blues; Columbus Blue Jackets; Calgary Flames; Colorado Avalanche; Edmonton Oilers; Vancouver Canucks; Minnesota Wild; Anaheim Mighty Ducks; Dallas Stars; Los Angeles Kings; Phoenix Coyotes; San José Sharks.
Boston Bruins; Buffalo Sabres; Montreal Canadiens; Toronto Maple Leafs; Ottawa Senators; New Jersey Devils; New York Islanders; New York Rangers; Philadelphia Flyers; Pittsburgh Penguins; Atlanta Thrashers; Carolina Hurricanes; Florida Panthers; Tampa Bay Lightning; Washington Capitals.
A América é a América. Nada a fazer. Dólar aqui; dólar ali…
O joelho de Pat Lafontaine está grande de menisco quebrado. Quarto 1955. A cama larga, a televisão ligada na CBS: Everybody Loves Raymond, Touched by an Angel, The Education of Max Brickford, Two Against Time.
Não há jogos da Stanley Cup.
Não há jogos da NHL.
Gary Bettman: «Temporada cancelada!»
Bettman: nem de propósito. Homem de apostas…
Pela primeira vez desde 1919, a Stanley Cup não será entregue.
Gary Bettman: «É triste! Um dia que o hóquei no gelo dispensava bem que tivesse acontecido».
O elevador subindo e descendo. Pat Lafontaine dá socos na almofada que se torna dura com a insónia. No quarto do andar de baixo, uma mulher solta gritos sem sentido, gritos de álcool, gritos de sexo, gritos apenas gritos. A almofada dura, o joelho enorme, o joelho que não dobra; Pat Lafontaine também duro com os gritos da mulher do 1855; outro martini dry já a caminho, subindo no elevador, equilibrado na bandeja, equilibrado no pé do copo, equilibrado no guardanapo de papel, equilibrado no desequilíbrio.
Alguém grita no microfone. Alguém grita na cabeça de Pat Lafontaine. Grita a mulher do 1855, grita o martini dry em desequilíbrio, grita o Buscopan, grita o Brometo de N-butilescopolamina em solução injectável rebentando os nervos do joelho gordo, cheio, grita o elevador rangendo nas cordas, grita o andar 13 que não existe, grita o quadro na parede com meninos chorando de pobreza, grita Jon Brion, I Heart Huckabees, grita Lemon Jelly, grita Rob Garza e Eric Hilton.
Gritos fortes, gritos íntimos.
Sergei Zholtok morreu!
Pat Lafontaine dá mais um soco na almofada dura. O joelho morde-lhe como um pitbull.
Sergei Zholtok nos Boston Bruins; Pat Lafontaine nos New York Islanders.
O disco rolando na frente de Pat Lafontaine, o stick levantado, o grito de Sergei Zholtok, o grito do stick de Pat Lafontaine.
O joelho rosna, ladra, vai comendo a perna de Pat Lafontaine à mistura com o Brometo de N-butilescopolamina em solução injectável…
Zholtok morto.
O sangue na cara de Sergei Zholtok, no stick de Pat Lafontaine.
Dínamo de Minsk – Riga 2000: 3 de Novembro de 2004.
Artis Abols, Sergei Naumovs, Kaspars Astasenko, Harijs Vitolins, Atvars Tribunkovs, Aigar Cipruss, Sandis Ozolinsh, Normund Sejejs, Juris Opulskis, Vyacheslav Fanduls: camaradas de Sergei Zholtok na Selecção da Letónia. Todos eles vivos. Chamavam-lhe Zholti.
Sangue que rebenta, o coração que rebenta, veias carregando jactos de sangue solto pelo corpo de Zholti morto, o grito da ambulância pelas ruas de Minsk, o grito aflito das luzes azuis, Ulitsa Karla Marxa em linha recta de gritos e luzes azuis, à esquerda na Ulitsa Kirova, Zholti ligado às máquinas, enfermeiras e médicos em seu redor, a máscara de oxigénio tapando-lhe a boca como num avião despressurizado, choques eléctricos num peito que não respira, num coração que não bate, sangue coagulado…
Aposto que havia música de fundo. Música de fundo da cidade apressada, fria, neve nos passeios, homens e mulheres caminhando com pressa debaixo dos sobretudos, os pés húmidos, automóveis cruzando-se e descruzando-se nos boulevards.
3 de Novembro: cinco minutos antes de o jogo chegar ao fim, Zholti tropeçou até ao balneário e caiu. Morto.
Sem NHL, sem Stanley Cup, sem Nashville Predators, Zholti foi morrer a Minsk. Faz frio em Minsk, em Novembro.
O elevador range subindo martinis dry equilibrados em copos de pé com palitos e azeitonas verdes; Burt Bacharach teimoso, subindo e descendo no elevador; o casal de meia idade crescendo de sede, cansado de sexo; Pat Lafontaine sentado na cama com a pedra da almofada encaixada nos rins, os dedos nervosos percorrendo os botões do zapping, os ouvidos endurecidos aos gritos do casal do 1855, o pitbull desfazendo-lhe o joelho lentamente com os dente afiados do Brometo de N-butilescopolamina em solução injectável, arrancando-lhe a carne, rasgando-lhe os tendões; Zholti morto no ecrã dos news-flash; o joelho coagulando o sangue, Pat Lafontaine coagulado enquanto o elevador sobe e desce e sobe e desce e sobe e desce, lavando o James Last, o Burt Bacharach, os homens gordos de fatos assertoados que fazem apostas, o waiter e o martini dry, dois martinis dry, catorze martinis dry (mas nunca, nunca, treze!), os charutos mastigados, as gravatas de cores absurdas, gritos insonoros desaparecendo pelo buraco do elevador…
Aposto que tinha música de fundo: a morte tem sempre música de fundo…




