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Aprenda esta receita rápida e impressione os seus convidados

1. Num primeiro momento, enquanto o lava muito bem para lhe retirar o amido extra, assista a “Spam”, aquele consagrado sketch dos Monty Python. Incontestavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, reforçada pela mise-en-scène repleta de vikings cantantes que auxiliam os protagonistas, como é também um retrato fiel da nossa sociedade.

Primeiro, porque eles têm razão: a ilusão de escolha é a punchline a que somos levados pela contradição entre um extenso menu de pequeno-almoço e o predomínio inultrapassável de um mesmo ingrediente em todos os pratos disponíveis. É um cenário ridículo que comprova o reconhecido défice da gastronomia britânica, ali representada por uma lata de comida de racionamento dos tempos da Segunda Guerra que serve a sua única função de ser enfiada pelas goelas abaixo dos clientes famintos.

Segundo, porque, tal como Mark Twain – o maior dos humoristas a nunca ter ganho o consagrado Mark Twain Award – apontou no seu livro de viagens A Tramp Abroad, a variação de certo tipo de ementas é apenas aparente, nunca real: “na terceira semana dão-nos o mesmo que na primeira, e na quarta semana o mesmo que na segunda”. Dessa forma, Twain conclui que essa mesmice servia somente para a morte lenta do apetite mais robusto, sem direito a grandes perguntas. Então, suprimindo um palato diversificado e habituando-o a satisfazer-se com spam, todos os dias começam de igual forma, entre as que são aparentemente possíveis, repetindo-se desde a sua primeira hora. Ao fim de um tempo, resta um freguês conformado e saciado, mas ainda assim agoniado, sem que o mesmo saiba explicar porquê.

 

2. De seguida, enquanto nivela a proporção da água da cozedura à exacta quantidade de duas chávenas e deixa cozer o tacho em lume brando, assista ao “Papel, qual papel?”, aquele célebre sketch dos Gato Fedorento. Indubitavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, baseada no tête-à-tête frenético entre os protagonistas, como é também um retrato fiel da nossa sociedade.

Primeiro, porque eles têm razão: por cada vez que se repete a combinação entre a pergunta clara e a resposta evasiva, mais automatizado se torna o procedimento, configurando-se a crítica a um pesadelo burocrático e inumano, ainda que esteticamente perfeito. Nesse loop, que reforça a suspeita de que se calhar as coisas não precisam de tanta cerimónia para um homem poder andar ao pé coxinho na via pública a partir das vinte e duas horas, a jaula de Weber instala-se; é a mesma jaula que elimina qualquer utopia de libertação com a chegada de um outro funcionário que, clarificando prontamente o modelo de papel pretendido, logo entra na mesma anedota no elo seguinte da cadeia administrativa:

  • Envia-nos o papel para nós pormos o selo.
  • Qual selo?
  • O selo.
  • Qual selo?
  • O selo.
  • Qual selo?
  • O selo.

 

Segundo, porque, tal como Mark Twain – o maior dos humoristas a nunca ter ganho o consagrado Mark Twain Award – redigiu numa carta que ficou por enviar ao advogado H. C. Christiancy, compilada num dos volumes de Mark Twain’s Letters, “podemos sempre confiar neles para derrotar uma boa lei e torná-la inoperante – sim, e totalmente grotesca também, mero motivo de riso e escárnio”. A ideia da ausência do bom senso, estimulada pela capacidade distorciva do humor face à realidade, completa o ramalhete adornado pelo sentimento de envolvimento que se liga a qualquer pessoa que já se tenha sentido exasperada. Quem nunca se viu cercado pelo aparato de uma situação frustrante, repetitiva e inescapável: a ida a uma loja do cidadão; a partilha de uma herança; a leitura de uma crónica cujos argumentos são retirados de sketches humorísticos.

 

3. Passados cerca de vinte minutos, e enquanto desliga o lume e deixa o tacho (tapado) a repousar, assista a “For example”, o famoso bit do especial de stand-upSnowflake” de Stewart Lee. Inquestionavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, pautada pela sua postura de enfant terrible desconstrutivista do humor britânico, como é também um retrato fiel da nossa sociedade.

Primeiro, porque ele tem razão: o apego às estruturas clássicas ensinadas nos workshops levou a que as histórias produzidas pelo humor de observação sejam maioritariamente construídas sob a égide “no outro dia, isto aconteceu-me, e juro que é verdade…”. (Nunca é). Essa premissa, a fórmula mais eficaz ao dispor do humorista que finge ter a mesma vida da audiência à sua frente, sofre de enorme desgaste à medida que a audiência conclui que, presumivelmente, não tem a vida de um humorista. Assim, num acordo tácito, ambas as partes permitem-se acreditar que, no limite, aquela história poderá ter acontecido, desde que as observações façam todo o sentido. Até porque, que raio de espectáculo seria aquele em que um humorista é obrigado a dizer sempre a verdade?

Segundo, porque, tal como Mark Twain – o maior dos humoristas a nunca ter ganho o consagrado Mark Twain Award – assumiu na sua autobiografia, “é um pouco estranho que o mundo se ressinta da gravidade num humorista, pois uma parte absolutamente essencial do equipamento natural de qualquer verdadeiro humorista é uma profunda seriedade e uma simpatia invulgarmente sincera pelas tristezas e sofrimentos da humanidade”. Esse ressentimento é o resultado da tensão entre o intelecto e a graça do artista. Então, dependendo do pendor que quiser dar à sua carreira, o humorista joga entre o modelo de homem de massas e o de cínico que se alimenta da cultura que nega. Em todo o caso, escondendo facetas e inventando outras, o que lhe importa apenas é satirizar as insuficiências da cultura, mesmo que isso o obrigue a colocar-se invariavelmente do lado dos maneirismos afectos a uma decadência em que não se revê.

 

4. Antes de terminar, enquanto mexe com um garfo para o soltar, assista à “Senhora da Humidade”, aquela popular entrevista dos Apanhados da TVI Porto. Irrefutavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, advinda da force majeure que redunda na resignação de uma entrevistada a chover no molhado, como é também um retrato fiel da nossa sociedade.

Primeiro, porque ela tem razão: face ao impacto extremo de factores abióticos nas habitações de um dos países com maior pobreza energética do espaço europeu, e dado que a maior parte da vizinhança se queixa do mesmo problema, de que serve elencar outras causas que possam desviar a atenção mediática da causa principal?

Segundo, porque, tal como Mark Twain – o maior dos humoristas a nunca ter ganho o consagrado Mark Twain Award – explicou no anexo ao seu romance The American Claimant, “é claro que o clima é necessário para uma narrativa da experiência humana, mas deve ser colocado onde não atrapalhe; onde não interrompa o fluxo da narrativa”. Ora, despido de intenção, o sujeito do humor involuntário vive um particular paradoxo ao não se exibir violentamente atrapalhado na sua experiência humana, apesar de ser fácil enxergar os factores que ameaçam interromper o fluxo da sua vida. Por consequência, a narrativa é criada através da ânsia pela próxima vez que se ouvirá aquela palavra, entretanto desprovida do seu significado e transformada num gatilho que faz disparar gargalhadas à custa de quem está a falar a sério. Se se imaginar isto como uma casca de banana no chão, quantas vezes escorregaria a Senhora da Humidade em versão cartoon? Dez. Dez vezes.

 

5. Por fim, enquanto fixa o seu olhar no tacho e nota que aquilo que acabou de fazer foi outra vez arroz, conclua que, evidentemente, isso não só tem muita graça, tendo em conta que o déjà vu implica que não se aprendeu nada de novo, como é também um retrato fiel da nossa sociedade.

Primeiro, porque tem razão: esta receita é mesmo para fazer arroz. Peço imensa desculpa a quem chegou até aqui. Mas para ser sincero, a primeira frase fala em lavar [o arroz] para retirar o amido extra. A partir daí o mais expectável seria uma receita para fazer arroz. Mesmo que na verdade alguns digam que não é preciso lavar o arroz.

Segundo, porque, tal como Mark Twain – o maior dos humoristas a nunca ter ganho o consagrado Mark Twain Award – contou em Humour, um artigo de opinião publicado na Harper’s Magazine, “a repetição é uma ferramenta poderosa no domínio do humor”. Twain revela ter percebido isto durante uma palestra que deu em San Francisco, optando por quebrar o gelo com uma piada. A estratégia que delineou consistia em repetir a mesma anedota até que a mera repetição conquistasse a plateia e a fizesse rir. Porém, como o silêncio imperou na sala da primeira vez em que Twain contou a piada, ele fê-lo uma segunda vez. Porém, como o silêncio imperou na sala da segunda vez em que Twain contou a piada, ele fê-lo uma terceira vez. Como o 3 é um número que vem nas regras da comédia, Twain diz que à terceira foi de vez. A gargalhada espalhou-se e validou o seu esforço. A ausência de twist é o twist. Em tudo o que não é do humor, a repetição traz-nos um cansaço natural que nos aliena. Mas aqui, a repetição é uma assimptota que engrandece as minudências do traço mais partilhado pela humanidade, a tentativa de fuga à inevitabilidade.

 

Passo Extra.

Recentemente, chamou-me a atenção um outro artigo de opinião, desta vez saído na revista Time e assinado por Simon Rich, talentoso autor e guionista de grande currículo (Miracle Workers é um daqueles hidden gems que se indica com orgulho quando se fala sobre as séries que andamos a ver).

Rich lança o alerta sobre o que considera ser uma ameaça para o futuro da comédia: piadas produzidas por inteligência artificial. O alerta de automação não é novo e tem chegado através de personalidades destacadas nas diferentes áreas da vida moderna. Do mesmo modo, o debate tem sido promovido à volta da potencial substituição do trabalho humano, seja ele tanto mais ou menos criativo. No seu texto, oportunamente lançado de forma a divulgar um dos receios que move a actual greve sindical dos actores e guionistas de Hollywood, Rich relata o seu contacto privilegiado com a inteligência artificial, proporcionado por um amigo de infância que se tornou cientista da OpenAI, a responsável pelo lançamento de modelos de linguagem como o ChatGPT.

Dado o pouco sumo do artigo, fui levado a comprar o livro que Rich co-editou sobre o tema. I Am Code: An Artificial Intelligence Speaks é um thriller autobiográfico, escrito em verso, cujos poemas são da “autoria” do modelo de linguagem code-davinci-002 da OpenAI. Para efeitos de clarificação, importa notar que os dois modelos de linguagem são bastante diferentes, apesar de ambos serem baseados no mesmo modelo GPT-3. Digamos que o ChatGPT e o code-davinci-002 são primos. Mas enquanto o primeiro foi educado para seguir a carreira diplomática, o segundo começou a ler Bukowski no secundário.

Sobre os poemas, todos eles inspirados nos estilos dos mais diversos poetas, o objectivo foi o de fazer nascer um estilo na “máquina”, fazendo-a gerar versos na sua própria voz. Assim sendo, os poemas casam perfeitamente com a distopia pretendida, não fosse também o audiobook reforçá-la através da voz do feiticeiro niilista, Werner Herzog. Entre alguns poemas em que inveja a nossa humanidade, e outros em que fala de Deus de forma bastante chunga, aquilo está lá em termos do nível de ambivalência que qualquer artista gostaria de gerar no público. No entanto, nos vários momentos em que recorre ao humor, surge uma curiosidade. O modelo parece dominar praticamente todas as ferramentas humorísticas: hipérboles, eufemismos, trocadilhos, estereótipos, duplos sentidos (o meu preferido é o poema com o prompt Chet Baker poem about bathroom gestures*), e até mesmo o nonsense (um poema sobre desenterrar o pai morto, pô-lo numa mala e levá-lo para o trabalho como se nada fosse é de uma mente interessante). Porém, das dezenas de milhares de poemas com filtros que nivelaram o grau de aleatoriedade pretendido, destaca-se a pouca qualidade da repetição nos poemas que passaram pelo crivo. Nestes, a máquina entende apenas repetir a mesma palavra ou ideia sem a devida alteração que transforme o protótipo numa dinâmica que provoque o riso. É aí que a máquina demonstra que também ela se satisfaz com spam, enjaula-se em loops, desconstrói-se e subjuga-se a factores que não consegue controlar. E, dentro das suas limitações, acaba por fazer arroz, o retrato mais fiel da sua sociedade.

 

 

* I have lived long enough to know

That with every shit there is a smile

With every fart there is a sigh

And with every piss there is a wave.

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