AlvaroDomingues-Asininoceno-n

Asininoceno

– Dizem que o Antropoceno, a idade geológica em que vivemos, é uma engrenagem do tamanho do mundo que funciona ao ritmo do mais desenfreado capitalismo, o mais irresponsável e autodestrutivo, o mais rapina.


– Vives nesse terror, primo. Esse Antropoceno é pior que moscas nojentas a entrarem-nos pelos olhos…, mas eu tinha uma vaga ideia de que isso das idades geológicas era apenas assunto de estratigrafia, geologia, vulcões, climatologia e parque jurássico. Pelos vistos é coisa dos humanos agora também entendidos enquanto agentes geológicos irracionais. Grandes animais! Com estas orelhas e este olhar de pura bondade, nós nunca seremos capazes de produzir um Asininoceno que nos seja mais favorável. Nascemos já domesticados e albardados, desprovidos de cartão de crédito e acesso a dados móveis, sem capacidade para lidar com tecnologias finas para lá de arados, carroças, sacos, cordas e sistemas de carga. Que dizem os humanos, primo?


– Dizem que as redes sociais lavram por todo o lado em todas as dimensões, criando a ilusão de que tudo está ligado com tudo e cada qual com quem quiser, o que é o mesmo que nada, descontando uma fervura constante, um crepitar que arremessa salpicos em todas as direcções, carregando ácidos, receitas de cozinha, ameaças, fotografias de gatos, pérolas de inteligência artificial, estupidez colectiva, bosta e perfume de rosas de Santa Teresinha.


– Dizem que os ecrãs interactivos proliferam em todos os recantos, nos bolsos, nas paredes, nas sanitas e nas estrumeiras, nos pulsos, na manjedoura da nossa cantina e até um que só ontem dei por ele e que está cravado na ferradura da pata direita de trás, mano! Sempre que dou um coice, toca uma música marcial e ouvem-se slogans pacifistas, palavras de ordem e cânticos em sânscrito.


– Falam com insistência numa ameaça permanente que se insinua onde quer que se imagine como no azul do céu e nas nuvens por cima de nós, ou no meio da erva, avisando da iminência de crises financeiras globais que mudam da manhã para a tarde; torrentes de capital a circular para desaguarem na primeira esterqueira que produza lucros a curto prazo e que logo migram à velocidade da luz para outra que ainda dê mais e assim por diante em modo vertiginoso, ainda não se começou a entender uma coisa e já outras se multiplicam na sombra. Tudo que a finança não toque tende a transformar-se em pó de amnésia.


– Repetem notícias em modo torrencial dando conta de um mundo alucinado em que qualquer facto ou ilusionismo pode ser verdade e mentira ao mesmo tempo, onde proliferam movimentos terroristas, exércitos privados, governos e tiranos ao serviço do que quer que seja que lhes dê poder sobre os outros, personagens megalómanas, dinheiro, profetas e mensageiros do apocalipse, terras de ninguém onde vale tudo, desgraçados aos milhões fugindo da violência, da chuva que não cai, das terras roubadas, dos horizontes cancelados.


– Bloqueados, murmuram dúvidas paralisadoras sobre a real configuração dos modos de existência daquilo que existe, dos dispositivos tecnológicos que tudo medeiam e organizam, máquinas de rezar, amor e sossego doseado em pastilhas para misturar na ração, aplicações, códigos, automatismos, equídeos digitais, nuvens de pontos que escrutinam o pensamento.


– Tudo isto, mano, e o muito mais que nem te saberia explicar. Tudo relacionado com tudo, uma coisa e a sua contradição, o navio e o naufrágio, conspirando, reduzindo-nos a partículas e a ilusões incorporando a grande caminhada para o abismo. Nenhuma fracção desta imensa energia se pode canalizar para outra finalidade que não seja o caos da gigantesca cavalgada que ninguém conduz. Se o sistema não tem limites nem estados de equilíbrio porque tudo se encontra em estado de invenção, se as interacções são tão previsíveis quanto aleatórias, se as racionalidades são múltiplas e contraditórias, se o lugar dos acontecimentos se pode deslocar a qualquer momento para os milhões de lugares que povoam o mundo, é capaz de não haver terreno seguro para montar o posto de observação, convocar as criaturas do bem e dirigir as operações. Os deuses enlouqueceram e organizam jogos e apostas sobre as crises sistémicas e os nomes com que as baptizar – ambientais, sociais, ecológicas, morais, geopolíticas, humanitárias, climáticas, de desperdício, de nervos, de fígado ou de fome.


– Só nos resta o hiperactivismo porque o activismo por si só não dá em nada, e a política do costume é um jogo de vaidades e da defesa de interesses instalados. Por tanta desesperança e opacidade do mundo, a prima Azélia caiu num niilismo total, deitada, magra, alimentando-se de grilos e palitos la reine, jazendo em estado de permanente ruminação alternando com períodos profundos de sonolência e crises de gases. Sendo hiperactivistas estaremos também alerta para os activismos da extrema-direita (não se sabe se são mais ou menos que os outros) e para os princípios da termodinâmica que nos ajudarão a entender como é que a polarização da energia que organiza a política pode redundar em dissipação, espécie de gritaria de fundo construída pelas mais radicais sonoridades que não são outra coisa senão outras tantas formas de reduzir os conflitos a posições extremas niveladas até um patamar capaz de impedir qualquer negociação, produzindo assim uma constelação onde o único jogo possível é o confronto directo e sem regras, incapaz de chegar a qualquer compromisso.


– O primo Asnélio é activista, mano! Está nas redes sociais quarenta e oito horas por dia! Já conseguiu cento e cinquenta likes numa proposta para mudar a versão machista e patriarcal da história da Cleópatra e do leite de burra; já é sócio fundador de um curso avançado sobre feminismo e intolerância à lactose numa universidade estrangeira tão prestigiada que até cobra propinas de várias dezenas de milhares de euros! Já organizou uma base de dados com todas as empresas que exploram burras; já denunciou quinze marcas de cosméticos e muito mais. Está superfocado, mano! Vai mudar esta burricada!


– O primo Asnélio, mano, é apenas um fragmento da explosão narcisista nas plataformas electrónicas e nas redes sociais. Tanto lhe faz o leite de burra, como a palha transgénica ou a clonagem de mulas exóticas. Para o efeito, serve-lhe qualquer tema que seja fácil de recortar da abundância e das contradições dos dias. A única coisa que necessita é uma causa suficientemente conhecida para se pendurar nela, expor-se, exibir-se, organizar uma tribo e chefiá-la. Basta colectar uma lista de factos, não interessa onde, misturar tudo – factóides e coisas verdadeiramente graves, é indiferente –, reunir a retórica numa palavra – colonialismo, extractivismo, consumismo, ou outro ismo à mão –, construir uma trincheira e, sobretudo, identificar um bode expiatório e uma dicotomia. Reduzida a realidade ao mais simplório dos simplismos, e a política a uma operação irada dentro de um cenário que só admite o preto e o branco on line, é só atirar uns contra os outros, quem não é por mim é contra mim, vale tudo, sobranceria, chantagem, ameaça, circo, ruído e outras manobras desde que a internet funcione, claro. O resultado é um jogo de soma zero. De um lado o capitalismo, do outro a comunidade (seja lá o que isso for) e as pessoas (altas, magras, espaçosas, polícias, ladrões, beatas, energúmenos, etc.), e uma amálgama de causas e movimentos; uma dispersão de energia que entretém e cria a perfeita ilusão da democracia directa, da participação de todos (diz-se tod@s, todxs, todes e outras incógnitas), de coisa não muito diferente do mais desenfreado populismo e das suas conhecidas e pouco aconselháveis derivas.


– Então, continuaremos burros, mano. Enquanto activista, era animal bastante para estrafegar esta outra rede que nos impede o acesso ao outro mundo para lá deste recinto; era capaz de mastigar aquele milho todo que está lá atrás antes que seque; era capaz de permanecer aqui ligado à rede para ver séries e corridas de cavalos e, quando soubesse notícias do fim do mundo, correr até gastar ferraduras e cascos e zurrar Mário de Sá-Carneiro até não poder mais e teres de carregar comigo,


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

__
Fotografia de Álvaro Domingues

Relacionados

Quem?
Em Destaque
Ana Isabel Soares

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que se ajustem a um tema. A verdade é que, as mais das vezes, não me recordo do que eu própria escrevi, quanto mais do que li – quanto mais, então, do que pensei escrever ou

Ler »
Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar
Literatura
Afonso de Melo

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Na Índia há milhões e milhões de pessoas. Certas enciclopédias dizem que são 900 milhões de pessoas. Alguns atlas referem mil e trezentos milhões. Vê-se bem que nem as enciclopédias nem os atlas foram alguma vez à Índia. Na Índia há milhões e milhões e milhões e milhões e milhões

Ler »
Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias
Literatura
Filipe Nunes Vicente

Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Deixou uma marca indelével na política e no jornalismo português. Amigo do seu amigo, defensor das populações com dificuldades, suportou, no entanto, uma campanha de ódio e maledicência como poucos. Multifacetado, foi autarca, deputado, jornalista e escritor. Na sua morte, em 2004, dele disse Almeida Santos: Não morreu um homem, nasceu

Ler »