Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Depois de semanas de angústia, se o teu nome constar das listas de admitidos, espera-te a Universidade, templo de sabedoria, ringue de treino cognitivo, incubadora para os teus sonhos. Mas na primeira manhã de glória, no dia da matrícula, talvez te suceda seres vítima de um veterano trajado com gravatinha de luto e casaca de seminarista, armado de espuma de barbear. Com mal disfarçado desejo, obrigará alguns a andar de gatas e a outros gritará insultos. Se o veterano for de género íntegro, apenas entoará canções com letras improvisadas, em torno da justiça social e da importância da História, fazendo as suas vítimas implorarem por carreiras na construção civil. A estes ritos, ridículos e anacrónicos, talvez reste hoje a utilidade de prevenir o aluno sobre o mundo em que está prestes a entrar: uma mascarada em traje de gala.

Não temas, a Universidade não será muito diferente da restante sociedade. Faz até questão de se mostrar cada vez mais semelhante. Do lado de fora dos muros do conhecimento, também o mundo fervilha na sua constante alegria inconsciente, voando nas asas da natureza. Das atrizes dos anúncios de perfumes ao tronco musculado dos atletas, símbolos indestrutíveis da nossa cultura popular, tudo nos lembra a liberdade do corpo, seus desejos e ambições. Se a isso somarmos o triunfo da tecnologia digital e a potência biomédica, das cirurgias plásticas aos comprimidos para alívio das ressacas, temos finalmente instrumentos à medida dos nossos sonhos de glória. Mas uma dúvida assalta esta interminável festa de verão: depois de milénios marcados pela fome, por guerras e doenças, como explicar um mundo povoado por milhões de indivíduos com os seus próprios sonhos, desejos, ambições, motivados por interesses tão distintos quanto o número de narizes que povoam a Terra? Estaremos preparados para novas formas de manipular a multidão, não só disponíveis para as velhas ambições de poder, mas sobretudo para os novos engenheiros das almas, à esquerda e à direita, apostados em corrigir o mundo?

História e consciência de classe no scriptorium

Talvez te aborreça o palavreado sobre educação. Os professores, libertados dessa mortal tarefa, agradecem a Minerva o alívio. Mas deixa-me colocar a questão: à Universidade cabe ensinar uma disciplina, uma profissão, ou educar? Será possível ensinar uma profissão sem educar? Deixemos de lado a ideia de profissão, contaminação abjeta do mercado de trabalho. Contudo, será sequer concebível o treino de uma disciplina (maravilhosos labirintos da semântica) sem passar pelos fundamentos da moral? Os libertários e os conservadores dirão que os valores devem ser incutidos pela família. Os socialistas e sociais-democratas talvez confiem ainda nas escolas secundárias para garantirem, em tempo útil, a disciplina da cidadania, de forma a poupar os veneráveis catedráticos à maçada de mandar calar a cacofonia dos jovens, tratados como turba de embrutecidos e entediados, a teclar furiosamente nos telemóveis. Na pior das hipóteses, os vossos anfitriões no curso de História farão o número do interesse pelo futuro, com declarações de amor à juventude, enquanto cravam mais um prego no caixão das Humanidades, oleando o discurso da torre acossada por um mundo de bárbaros, mas virando costas à ciência e à matemática, para depois soçobrarem à primeira chapelada tecnológica que confira um ar de atualidade ao seu discurso bafiento, não por ser baseado numa ideia de classicismo ou cânone, mas por ser o resultado da última moda do presentismo, prestes a integrar o caixote do lixo da História.

Maquiavel veste o roupão de seda e entra na biblioteca

À medida que a adolescência se expande e a juventude invade, sem vergonha, toda a olímpica década mais saborosa da vida, dos vinte até aos trinta anos, os nómadas digitais escondem a desorientação no último modelo tecnológico. Não te estou a dizer que o mundo esteja perdido, já passámos essa fase. A juventude encontrará, como sempre encontrou, o seu caminho. Mas talvez encontre esse caminho ao preço de um custo muito elevado. Se existe um conselho útil ao estudante de Humanidades, aqui vai: não podemos sustentar o papel da liberdade na História e ao mesmo tempo negar as consequências mortais das escolhas erradas.

Não sei se vamos ainda a tempo, nós, historiadores, de dizer alguma coisa de útil sobre a nossa copiosa derrota diante da chamada tecnociência, derrota cuja culpa recai inteiramente sobre as nossas cabeças. Precisamente por não termos mantido os bárbaros à distância, deixámos que a História fosse colonizada pelos politizados delirantes e os pseudocientistas. O historiador José Mattoso lembrava no início do século XXI a importância da narrativa na construção historiográfica. Mas isso foi antes do processo contra o famoso primeiro-ministro com nome de filósofo grego, que desprestigiou  a palavra “narrativa”, tal foi o uso incessante que lhe deu. De qualquer forma, devemos voltar a essas sábias palavras do famoso medievalista e antigo monge beneditino, onde se elogiava o «encadeamento dos sucessos que definem o destino como um facto imprevisível à partida (ao contrário dos animais e das plantas)». Tudo decorre da tomada de consciência da nossa condição de liberdade e da «margem de risco, de imprevisibilidade, de aventura, que é inerente à sua condição humana». Tudo isso estava implícito na força da narrativa, na ideia de aventura. Por isso, um historiador-escritor como Italo Calvino nunca aceitou a queda do romance iluminista. Também por isso lembrava Mattoso: «ao ouvir contar uma história, o destinatário nunca sabe o que vai acontecer. Por isso a criança pergunta, cheia de curiosidade: “E depois?”» A ideia de aventura é tanto mais desconcertante quanto nos remete para um mundo estranho, o passado, ou nos ensina a desconfiar dos valores consensuais e impensados do «presente».

É deprimente ver jovens promessas da divulgação histórica a batucar o que consideram ser valores do «presente» (já programados numa fidelidade irreformável aos gurus presentistas da sua disciplina ou às estrelas políticas e mediáticas do momento) para no dia seguinte mostrarem documentos das Cortes em Ponte de Lima, em pleno século XV, destinados a provar que «os jovens sempre foram assim». Mas assim como? Fugindo para o paço, onde a ilusão de um emprego cortesão (quem sabe uma renda em África, a percentagem na venda de açúcar ou de escravizados, ou uma tença universitária a troco de papaguear os comentadores da época)e a proximidade das mesas onde os poderosos se banqueteavam  os poderiam poupar às imprevisibilidades do clima e às oscilações dos mercados, infortúnios sempre associados a uma dura vida de lavradores, com o seu ciclo de trabalho rude e imparável? Se escolhessem viver na corte, talvez os esperasse uma vida ainda pior do que serem filhos de lavradores. Era o destino dos escudeiros sem recursos, a saltitar por empregos mal pagos, nas fortalezas do império, dando a cara pelas maiores perfídias e brutalidades, à custa dos olhos, dos braços ou da própria vida, arrastando o sonho ridículo de escrever poesia ou história, com a mesma liberdade dos amados gregos e romanos. Se existe algo que teima em não mudar, é esse dilema, o mesmo de sempre: o falso verniz da modernidade não vos salvará das angústias da escolha.

No reino da igualdade, onde está o inimigo?

Caro colega candidato a estudante de História, o canto da sereia é bem audível. Todos os dias te convidam a construir um inimigo (Shakespeare, Coriolanus), de preferência um inimigo que não te ameace, de preferência um inimigo dos teus amigos. E quem são os teus amigos? Decisão terrível. Serão amigos aqueles que podem alçar-te à fama ou ao conforto de um rendimento sem grande esforço ou fruto de um esforço previsível e bem organizado? A procura do bem-estar é a força do progresso, dizem os filósofos amados do século XVIII. Mas tenhamos consciência do que isso significa para as chamadas Humanidades, sempre construídas no cadinho das chamas, no vale da morte, sejam as salas abafadas da British Library, os muros da prisão de Mainz e Lubeck ou os cumes nevados de Sils-Maria.

A consciência do terror costuma resultar num apelo à filosofia da decadência. Não te deixes apanhar nesse movimento reflexo. Não existe «decadência», conceito típico desse campo minado que é a filosofia conservadora. Mas se não existe decadência, existirá progresso? Onde arrumar, nesse caso, a História? Se os jovens sempre foram assim, qual a origem desses tenebrosos fenómenos sociais chamados nazismo e fascismo? E a democracia? Será fruto de embirrações de velhos? Mas os velhos terão sido «sempre assim»? Subtrair a possibilidade da tragédia é o grande equívoco das Humanidades na pós-modernidade, sobretudo nestas últimas décadas.

Voltámos a ser confiantes na determinação do futuro. Vai tudo correr bem, pois a realidade é sempre um fruto dourado e maduro, criação inadiável dos mais fortes, ou seja, dos mais eficientes. A versão contrária desta receita impele a que estejamos sempre atentos, pois o inimigo e a derrocada dos «nossos» valores espreitam a todo o momento em cada esquina. Mas quais são os nossos valores? Na verdade, a confiança cega no amanhã que canta mudou o compasso e hoje o apocalipse parece ser (outra vez) a bandeira do futuro. Não deves desconfiar dos cientistas, mas não deves acreditar em tudo o que é atribuído aos cientistas. Da mesma forma, não sejas tão rápido a denegrir o mundo (capitalista) e a (potência tecnológica da) civilização em que vivemos. A direção do futuro depende das nossas escolhas. Não será fácil conciliar o determinismo preguiçoso da esmagadora maioria dos cientistas sociais e historiadores com a ideia de que é possível construir um futuro mais agradável. O liberalismo económico do comentário televisivo, na sua versão para surfistas com casa na Lapa (enésima reencarnação de um darwinismo mal aprendido) convida a desistir, mas a natureza é nossa mãe e aí está para nos lembrar como a beleza e o valor da vida dependem da forma como lidamos com as suas rivais e irmãs: a morte e a destruição.

“No comboio descendente vinha tudo à gargalhada”

Quando os majores-generais, os economistas e cientistas políticos, os médicos e os juristas se encontram hoje obrigados a falar diante das câmaras de televisão, o cenário é garantido: mais tarde ou mais cedo, acabarão a lamentar as notícias falsas, o recuo da ciência ou a dificuldade em distinguir a verdade da mentira. E tu caro estudante de História? O que pensas disto? Entalado entre a multidão suburbana, no metro, a balançar no autocarro ou sentado à janela do comboio, ao leres tais declarações no teu telemóvel, fechando os olhos de cansaço e consciente da sua situação desesperada, só podes rir-te desta súbita descoberta: a Humanidade mente. A Humanidade não sabe distinguir o verdadeiro do falso. Por Zeus. Espantosa conclusão, ó cientistas da sociedade. Se a Humanidade não mentisse, o que levaria, por exemplo, uma jovem mulher, a quem está prometido o próximo milénio, a enterrar-se num curso de História? Claro que a Humanidade mente, sempre mentiu. Mas o que é a Humanidade? Não sabemos? Se não sabemos o que é a Humanidade, o que vai o estudante de História aprender?

Não estamos pior do que há dois séculos, já assentámos esse ponto. Estaremos, com toda a certeza, muito melhor. Mas nunca como hoje nos deixámos enganar com tanta vontade de sermos enganados. Nunca como hoje os que mais nos avisam contra a mentira são também os mais rápidos a mentir copiosamente. Talvez seja de procurar, onde menos esperaríamos encontrar os promotores desta confusão: as Universidades, sobretudo na versão soft power, os cursos de Humanidades. Precisamente entre aqueles a quem confiámos a missão de vos treinar. Entregamos às nossas elites intelectuais a capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira. Contudo, a sociedade do conhecimento soçobra e movimentam-se as baterias da repressão jurídica para atacar os prevaricadores. Mas quem são os abusadores da verdade? Quem são os propagadores da mentira? Os ecos teológicos desta obsessão talvez devessem causar mais calafrios do que o próprio conceito de desinformação, usado tão extensivamente na sociedade (da Constituição aos folhetos de promoção dos cursos universitários) que se torna ridícula a análise da desinformação, sem levar para laboratório toda a Humanidade. Como sempre, quando os regimes se sentem ameaçados (ou quando os sacerdotes sentem o chão tremer debaixo dos pés – e não estou a falar apenas de elites de direita ou banqueiros) chama-se a canalha para representar o papel de bode expiatório. Se o perigo existe? É claro. Onde existe Humanidade sobra o perigo.

Fim de semana entre zombies

É muito provável que nos primeiros dias de aulas te espere um discurso de boas-vindas, com promessas de sofrimento escolar, desenganos sobre emprego garantido e apelos de urgência. Nada disso importa, estamos empenhados em construir uma civilização baseada no futuro. Pobres historiadores. Já não sabemos o que dizer. Qual a importância do passado no mundo da Inteligência Artificial? Estaremos condenados a trabalhar como mineiros de dados em bibliotecas e arquivos, vendidos pelo décuplo do preço a quem sabe gerar quantidades industriais de texto por simples engenharia de probabilidades?

Em qualquer caso, não podemos caminhar de costas. Se temos olhos colocados no rosto, isso deve comportar uma lição evolutiva a não desprezar. As neurociências e os psicólogos têm descoberto novas e nobres virtualidades na função do esquecimento. Um mundo sobrecarregado de informações passadas só pode ser infernal e perigoso. Além disso, o passado envergonha-nos, irrita-nos, oferece um espelho da lama original, dos comportamentos horrendos e abrutalhados, da olímpica ignorância em que resfolegamos durante milénios. O futuro comporta todas as promessas de liberdade, quer as positivas – com os sonhos de uma civilização plena de prazeres artificiais e ilimitados – quer as negativas – com os alarmes sedutores e atrativos das projeções apocalípticas, onde podemos festejar, ainda mais orgulhosamente, a distinção civilizacional do nosso presente.

O problema são os vestígios. Tudo e todas as coisas, a toda a hora, nos falam do passado. Dos estilizados e sanguíneos animais nas paredes rugosas das cavernas à necessidade de construir sistemas desmaterializados para comunicar. As velhas linhas de comboio, a viperina e fugitiva estrutura da linguagem (e as bizantinas hierarquias das formas de tratamento), o desconforto de trocar dinheiro numa viagem longínqua, um forte carcomido pelos ventos oceânicos, testemunha dos ataques da artilharia dos veleiros de guerra, a estação abandonada de uma linha de comboios de mercadorias onde pela última vez um grupo de homens e mulheres viram o sol tombar no céu vermelho.

Acordar ou não acordar do pesadelo?

A História foi sempre o braço armado da retórica política. Não será uma grande novidade. Mas os historiadores profissionais têm procurado contornar este problema apresentando uma suposta credibilidade científica da história, ou fingindo não existir mediação entre os documentos e os textos ou ainda adicionando técnicas científicas à História. Mas a tarefa é mortal. Como o passado está constantemente a ser engolido pelo tempo, o historiador encontrou aí – na produção de um passado para cada geração de vencedores – o seu nicho de sobrevivência. O historiador – esse curioso rato de biblioteca, com dentes rijos e olhos pequeninos – vê-se perseguido em todos os lugares e sente a tentação de procurar um grupo para o proteger contra os riscos do mundo e a inevitável acusação de inutilidade.

Na maior parte das vezes, o historiador encontra consolação na voz da maioria, amplificando o lugar-comum, condenado a repetir os fundamentos da realidade. Embalsamar com palha bolorenta as ideias do presente. Depois, saca do seu pincel metodológico e mergulha-o no verniz da erudição (os documentos e as fontes que ninguém vai verificar) para dar à múmia um aspeto apresentável. Não é um trabalho muito sofisticado, mas é um dos poucos disponíveis, a quem não tem talento ou inclinação para trabalhar com números e ideias lógicas, rigorosas e discretas. Alguns, para salvar a face, também recorrerão a esse universo, na sua versão revista em baixa, a Economia, no fundo, uma nova ferramenta auxiliar da retórica política, apostada em destronar a História.

Sejamos claros: os estudantes de Humanidades estão habituados à infinita complexidade do mundo, nomeadamente, à dificuldade em obter um salário razoável ao fim do mês. A História, nunca nos esqueçamos, ensina a colocar problemas sem solução. É uma técnica para esconder a ignorância sobre as coisas em geral. Tal como a Literatura. Outra disciplina onde é muito difícil ganhar dinheiro. Esconder a ignorância, logicamente, se temos do conhecimento uma ideia manipuladora, bem entendido. Conhecer, já dizia a Bíblia, é possuir. Não sei se estou inteiramente de acordo. Se tivermos do conhecimento a ideia budista e trapezista do desprendimento e da desconstrução, então a Literatura ou a História podem ser uma via privilegiada para o conhecimento. Não te trará fortuna, mas isso já deves saber.

Para ser fiel à (duvidosa) ideia de libertação implícita no conhecimento, deves desconfiar de tudo quanto escreve o historiador. Qualquer que seja o historiador. Deves examinar os seus raciocínios. Quanto mais o historiador fingir contar a realidade através de fontes e documentos, através de gráficos e estatísticas, mais se aconselha a desconfiança em relação às suas conclusões. Disse desconfiar, não disse negar a todo o custo. Há historiadores capazes de dizer coisas acertadas, atenção. Não são muitos. Nada será tão importante como aprenderes a distinguir entre quem diz a verdade e quem mente. Deves ouvir sobretudo quem limita rigorosamente, não tanto o seu campo de estudo, mas o alcance e a aplicação das suas conclusões. Não tardará muito, o especialista entrará em jogo aos gritos: populismo, pseudo-história, desinformação. Armado da sua pseudociência, vai invocar factos, autoridades, o tempo para conhecer a literatura especializada. Mas falamos aqui de História: esse oceano repleto de criaturas fantasmagóricas, densamente poluído e atravessado por petroleiros. O que é a especialização no estudo do erro?

A ciência de passar o tempo a contar histórias

Em grande medida, os profissionais da historiografia agarram-se a uma das poucas fontes de autoridade – a ideia de escola profissionalizada. Quanto mais tempo se estuda um assunto mais se sabe sobre o mesmo. Mas a redução dos potenciais críticos a uma multiplicação de especialistas pode minar a própria ideia de ciência. Se existirem mil especialistas em mil assuntos diversos, onde apenas quatro ou cinco especialistas por assunto podem exercer a crítica, estaremos a promover o duelo permanente de argumentos que devia caracterizar o processo científico? Não estaremos a aplicar à Ciência as velhas teorias da gestão padronizada e científica? Para os defensores da utilidade da inutilidade, o avanço da ciência implica recuperar a lógica monástica, fechada sobre um mecanismo colegial de seleção, desde que eliminadas as preocupações com o rendimento dos cientistas, de preferência a cargo do Estado. Mas não sejamos simplistas, o problema é mais profundo.

A Universidade tem a sua utilidade, como é evidente. Mas a criação e avaliação de um cientista ou de um historiador competente é um processo misterioso, mal conhecido. Sabemos que a ideia inicial de Universidade seria a eficaz conservação de princípios e critérios dogmáticos (imutáveis), daí ter sido inventada pela Igreja na sua poderosa aliança com a máquina do Estado, máquina em si mesma fortemente alimentada por conceitos e mecanismos eclesiásticos. Já para a descoberta de novas ideias, a Universidade, essa criação tardo-medieval, revela dificuldades inesperadas. Em todo o caso, caro estudante de História, deves estar atento ou acabarás a colocar na mesma prateleira estudos sobre as Revoluções e elaborações sobre Unicórnios Azuis, sendo que o único critério é agradar à autoridade professoral. Há quem chame a isso o estudo das Humanidades.

Consciência de classe e luta por bolsas de investigação

A História tem sido a crónica dos interesses contraditórios. Transporta no seu seio um emblema de luta. Foi sempre uma arma privilegiada no confronto político. Por ser totalitária nas suas ambições, por reunir as seduções da narrativa com a artilharia conceptual da análise. Como sabemos, é possível interpretar tudo à luz do raciocínio histórico. Mas a História também cumpriu sempre uma função estabilizadora: sossega, ordena, interpreta, reduz à compreensão e à ordem do tempo medido em unidades discretas, o tumulto, o caos e a incompreensão diante das coisas. A História inventou a natureza. Quis explicar o assassínio político, a revolta e a revolução. Serviu a refutação da violação de direitos ou o protesto (a resistência) contra a violência de uma força considerada mais poderosa. Qualquer tentativa de construir uma história geral coloca em movimento a reação dos grupos e pessoas lesados. O que implica enfrentar uma grave dissensão: a História não tem de ser política no sentido clássico do termo, mas ignorar o caráter político de toda a historiografia é cultivar uma ignorância. Uma ignorância mais grave por ser em grande medida voluntária.

Ouvirás muitas vezes referir a importância de uma análise séria. É curioso, na era dos humoristas, conferirmos tanta dignidade à seriedade do estudo. Como se uma investigação satírica, em História, não pudesse ser tão ou mais rigorosa. Alguns académicos são os primeiros a utilizar a técnica do palhaço nas redes sociais, mas distinguindo a publicidade jocosa da grande seriedade da Ciência. No fundo, temos vergonha da fragilidade da nossa arte. Recusamos aceitar uma mudança de nome. Talvez historiografia fosse um nome mais adequado para a nossa bizarra atividade, mas quem admite abdicar da grandiloquência da História?

Sabemos que a análise do passado não permite experimentação (as interpretações históricas não podem ser falsificadas). Nem se articula facilmente com a linguagem matematizada. Sobretudo, não permite a recolha, catalogação, sistematização e a crítica do trabalho dos historiadores ao longo do tempo. A historiografia acumula ao acaso as ideias conforme o tempo e a orientação política, aproveitando muitas vezes o esquecimento de livros e artigos (promovendo de forma grosseira esse esquecimento), para depois se apresentarem como novidade coisas ditas e reditas no passado. Ou, no pior dos casos, forja pseudoproblemas para refutar ideias de historiadores «desatualizados». Uma das práticas mais comuns é precisamente dizer que um determinado historiador está errado, mas forjando uma caricatura dessa posição. Também se pode utilizar a sempre científica expressão, pedida emprestada aos cientistas da natureza (pela mão de Thomas Kuhn) acerca da «sabedoria convencional». Contudo, no caso da historiografia, como é sempre possível criar uma leitura distinta, a história arrisca ser apenas um carrossel de interpretações e contrainterpretações.

Acontecimento, evento, movimento, pirotecnia

Sextus Empiricus escreveu há muitos séculos: a história não tem método. Não é uma techné (em latim ars). Portanto, ficamos a saber que a arte é uma técnica. E que os historiadores antigos tinham orgulho em não invocar nem arte, nem tecnologia. Bastava-lhes pensar e escrever. Caro estudante de História, aprender filologia é a maior proteção contra imbecis e demagogos. O próprio abandono do latim nos cursos de História foi o primeiro sintoma de uma certa desistência do estudo do passado. Mas não te conformes, aprende latim. Como sabes, a História arrisca a simples acumulação de factos irrelevantes. Diodoro Sículo já reivindicava como qualidade dignificadora da História o direito de cada um se exprimir livremente de acordo com a sua interpretação dos factos e eventos. Já sei, existem riscos terríveis na era das ferramentas de amplificação da estupidez. Mas o ceticismo ainda me parece ser o antídoto mais poderoso contra fenómenos delirantes. Não está provado que um palerma ignorante seja mais perigoso do que um demagogo munido com um doutoramento.

O problema alimentou as controvérsias renascentistas com a publicação de Adversus matematicus, em 1569. Segundo a definição de Cícero no De legibus, a História era o lugar da oratória por excelência. Mas os romanos tinham excelente opinião da retórica e da oratória, pois sabiam que a persuasão é o braço armado da virtude e da dignidade. É caso para repetir o título daquela tese doutoral de um discípulo de Mommsen, na Universidade de Berlim, em 1866: historiam puto scribendam esse et cum ira et cum studio. Recorrendo ao tradutor automático (quem diria que a tecnologia poderia vir resgatar as Humanidades dos erros dos seus especialistas), devemos trabalhar com um misto de afeição e desafeto (ou seria raiva e paixão?), a fim de que a busca da verdade, na conhecida expressão de Tucídides, não seja prejudicada.

            Se esta carta não te fez desistir, terá ao menos a virtude de te preparar para o labirinto. Espera-te uma selva de discursos caóticos, desintegrados e com elevado grau de subjetividade, embora servidos na travessa prateada da ciência. Como sabemos, o processo de refundição dos relatos históricos foi o desporto preferido dos clérigos medievais. A escrita da História teve sempre dois motores fundamentais: 1) os interesses políticos e 2) a dependência económica.

Pensemos nos livros de linhagens limpando o passado das famílias e nobilitando outras. A composição do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro levada a cabo em 1380-1385, cuja descrição sobre o pai de Nuno Álvares Pereira – Álvaro Gonçalves Pereira – foi alvo de retoques, dava conta de como esse valente prior do Hospital e temível guerreiro fora buscar um pedaço de madeira da cruz de Cristo (cujos pedaços reunidos dariam para cobrir a superfície do planeta) para renovar as energias dos exaustos cavaleiros portugueses na Batalha do Salado quando defrontavam muçulmanos. Também podemos invocar essas fantásticas guerras intelectuais em torno das canonizações de reis e prestígio político de santos, entre os monges de Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça e Batalha, ao tentarem captar as rendas da Coroa.

Do mesmo modo, como descrever as eternas rábulas entre os juristas ligados à Casa de Bragança em 1640 e as diatribes contra os aventureiros de uma fidalguia sem estatuto ou legitimidade escritos a partir de Madrid, nos escritórios das grandes famílias orbitando em torno de Felipe IV? Serão as nossas aventuras na historiografia contemporânea mais «científicas»? Peço um pouco mais de humildade. Se a História nos pode ensinar alguma coisa é a sermos menos indulgentes com o nosso orgulho intelectual.

Historiografia e preço do talhão nos cemitérios

Queixava-se Luz Soriano, quando publicou a sua monumental História da guerra civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal, do mau humor de alguns dos governantes, mesmo de alguns dos subalternos do governo, não faltando as críticas dos amigos que reputava como pessoas afeiçoadas: «Deus me livre de alguns dos chamados amigos, que dos meus inimigos eu me livrarei». Segundo Soriano, o problema não era das instituições, pelo menos depois da Carta Constitucional, mas da cabeça dos portugueses, incapazes de viverem num regime parlamentar. Mas como casar a moderação com o progresso? Eis o problema que atormentou as cabeças do século XIX. Pobre Luz Soriano que já na década de 1880 lamentava o facto de os espíritos do seu tempo terem menos interesse nas obras sérias que na leitura de romances.

A reclamação de verdade ou a implicação da Ciência nos relatos históricos vêm acompanhada de um elenco de fontes consultadas. Mas raramente o capítulo sobre problemas e técnicas de investigação atinge um patamar mínimo de rigor. É a única forma de manter afastada a contaminação ideológica. Seria necessário adotar técnicas de exame mental ao nível do jesuíta. Fazer do historiador um pobre noviço remetido à confissão dos seus pecados. Não é uma tarefa fácil, embora seja urgente.

Carlo Ginzburg, preocupado com a cada vez mais popular mania nietzschiana da historiografia atual, tem abordado a relação entre a análise filológica e a projeção sobre o passado dos nossos problemas contemporâneos. Podemos optar por duas posturas muito distintas: carregar na descrição da experiência pessoal, sobretudo se ungida pelos santos óleos da vitimização, como forma de autoridade, ou oferecer em sacrifício a descrição detalhada da formação da consciência do historiador, dissecando os problemas com frieza de anatomista. Contudo, para esta segunda postura, exige-se um completo domínio das disciplinas literárias, negligenciadas pela formação em Ciências Sociais e boa parte das Humanidades.

Se te sentires perdido, procura um dos mais recentes livros de Ginzburg (há tradução em português), Threads and Traces, True, False, Fictions onde se recupera o romance histórico típico do romantismo. Escritores como Manzoni, Herculano, Victor Hugo, Michelet ou o maior de todos, Jacob Burckhardt, O Renascimento Italiano  (magnífica versão portuguesa de António Borges Coelho escandalosamente indisponível no mercado), articularam a história política e militar com a invenção do quotidiano, abrindo quer a via da história económica, quer da história cultural e das mentalidades, quer ainda a história dos géneros e das comunidades humanas. Lembremos a cigana imaginada por Hugo em Notre-Dame de Paris. Apesar da inércia dos estereótipos da época, Hugo sugeriu um olhar interessado, a diferença reunida sob a mesma humanidade universal. O mais reputado especialista sobre ligações entre historiografia e narrativa, Hayden White, passou olimpicamente ao lado das nossas academias, salvo raras exceções. Foi preciso um século para que os historiadores profissionais compreendessem o desafio lançado pelos grandes escritores oitocentistas. Ginzburg viu como o renascer da narrativa histórica representou mais um capítulo no longo progresso do conhecimento da realidade. Realidade, palavra perigosa, pelo menos desde que Eça de Queiroz quis traçar a biografia da sociedade portuguesa e onde, curiosamente, introduziu um gosto de pendor histórico, mecanismo sempre presente nos seus livros e hoje quase massivamente perdido na Literatura em língua portuguesa e mesmo na generalidade das literaturas europeias, com raras exceções.

Infelizmente, os historiadores preferiram insistir na diferença entre o carácter «científico» da historiografia e a sua dimensão literária. Suspeito que isso resultou apenas de uma generalizada falta de jeito, pois muitos são os chamados e poucos os escolhidos. É curioso que se analise mais o carácter ficcional de toda a narrativa histórica do que a dimensão cognitiva de toda a narrativa. Também aqui arriscamos o já clássico atraso secular. Compreendo toda a tua desconfiança sobre estas palavras. Afinal, muitas vezes me perguntaram já nas redes sociais: mas quem sou eu para falar assim? Belíssima pergunta, para a qual não tenho resposta. Recorro então ao catedrático José João da Conceição Gonçalves Mattoso. Na sua passagem pelo mundo, a humanidade deixa marcas, única ligação entre nós e os antepassados. Não «basta narrar o que pode acontecer, em situações exemplares de perigo e de superação de provas, como nos contos de fadas; é preciso narrar também o que aconteceu de facto». Para lá dos factos, cujo apuramento não decorre apenas da reprodução das fontes (o que é um facto?), o discurso histórico depende em primeiro lugar de uma posição narrativa: seja tragédia ou epopeia. Outra vez Mattoso: «Foi o que fizeram os nossos historiadores do Renascimento, derivando, como se sabe, para diversos tipos de mitificação, e os da época romântica para exaltarem o sentimento, ou, conforme as suas ideias políticas, para tecerem hinos ao progresso e à liberdade».

Após esta longa viagem, se ainda aí estás, caro colega , chegámos a uma trilogia de valores: 1) rigor dos factos; 2) importância da escolha/liberdade; 3) talento narrativo, ou seja, precisão do olhar, só possível com um conhecimento profundo acerca de si próprio, por parte de quem conta. Com efeito, se temos queixas a apresentar sobre o estado do mundo, convém ter consciência do quanto desconhecemos. Não nos podemos queixar de uma democracia desinteressada da liberdade, dos direitos, da igualdade, da dignidade da pessoa e de todas as formas de vida humana, se passámos várias décadas a tratar o destino histórico como trajetória de formigueiro ou colónia de baratas.

O triunfo dos economistas (de todos os géneros e religiões)

Foi sempre comum, ao longo dos séculos, a História basear a sua capacidade explicativa na interpretação mais prestigiada no momento. Desde finais do século XVIII, com Adam Smith, a Economia tem colonizado zonas cada vez mais alargadas da profissão histórica, com a apoteose a partir de 1920-1930, pilotada no pós-guerra pelo marxismo. Verificou-se o drama, o choque, o horror: a obsessão pelo materialismo produziu os seus monstros. Os economistas neoclássicos começaram a colonizar a História. Keynes já escrevera sobre o mercantilismo (embora não tenha ultrapassado a obra clássica 1 e 2). Friedman, North e Fogel publicaram estudos importantes sobre a importância dos mercados na evolução das sociedades ocidentais, combatendo as reticências de Albert Hirschman e Karl Polanyi. Por isso, a História de tradição humanista (amarrada à simples leitura e interpretação da linguagem natural) recuou para zonas sombrias, agora despojada do conhecimento filológico e do latim. Bem sei que «humanismo» é hoje uma palavra sem significado. Também não ignoro a dimensão elitista da República das Letras no século XVI. Mas será possível aprender uma disciplina sem um qualquer tipo de elitismo? Não será a ideia contemporânea de Humanidades, tal como tem sido desenvolvida na Universidade (onde o critério da quantidade e da internacionalização tende a esmagar a análise ponderada e livre dos valores), apenas uma forma insidiosa de elitismo, acabando por selecionar os mesmos de há cinco séculos (classe média-alta, filhos de professores, médicos e juristas), mas destruindo a ideia de rigor, exigência e qualidade, para melhor enfrentar as pressões democráticas, afastando da competição os filhos da classe média-baixa? As perguntas são sinceras e justificam o esforço de uma resposta.

Do scriptorium ao Congresso Internacional (entre o pastel de nata e a ciência do projeto)

Se pensarmos bem, quase todas as Ciências nasceram de alguma forma do raciocínio histórico: das menos exatas como a Economia, passando pela Biologia, até às mais sofisticadas como a Física Teórica – que é no fundo um ramo matematicamente desenvolvido da história natural do Universo ou da queda dos objetos. Isto é bastante inócuo, bem sei. Será o mesmo que dizer: todas as disciplinas comportam alguma relação com a Lógica ou a Matemática. Mas talvez não seja tão inócuo quanto isso, se abandonarmos a posição defensiva, cada vez mais cultivada em meios profissionais, acerca da inutilidade das Humanidades.

Da imaginação histórica de Adam Smith nasceu a Economia. Do penetrante sentido, manifestado por Darwin, da história geológica e das elaborações do reverendo Malthus, a partir de uma imaginação geométrica das formas animais, nasceu a Biologia moderna. Se a História é a disciplina do movimento das sociedades, os momentos críticos do movimento (o exato processo onde distinguimos um antes e depois) devem encerrar algumas lições. A ciência exige então uma relativização de posições em relação à qual os economistas em geral revelam uma confrangedora surdez. A ideia de prosperidade ou riqueza é variável com o tempo e o espaço. A História e a leitura da historiografia ajudam-nos a exercitar a medição dessas quantidades relativas. Sem essas marcas numéricas, estaremos muito mais sujeitos aos enganos na avaliação das qualidades. Mas não devemos esquecer que as principais questões da vida se jogam na ponderação de qualidades.

Somos hoje escravos dos ministros das Finanças e das taxas de juro definidas pelos Bancos centrais. Mas os ministros das Finanças são escravos das massas eleitorais e estas são escravas dos grandes meios de comunicação e dos impérios digitais, que por sua vez devem muito aos Bancos centrais e aos ministros das Finanças e respetivos governos. Moral da história: a sociedade contemporânea decorre de um elevado nível de complexidade, associado à liberdade e ao enriquecimento das populações, que torna muito difícil o controlo das variáveis críticas dos processos históricos. Esta é uma má notícia para ti, pois será cada vez mais difícil escrever a História. A boa notícia é que somos filhos de dois moralistas e historiadores eruditos: Adam Smith e Jean-Jacques Rousseau. Ainda há quem diga que a História padece de uma crise de utilidade. Talvez se possa dizer tal coisa sobre a historiografia profissional. Mas a História sempre teve a máxima utilidade. Marx admirava muito Smith e Rousseau, embora considerasse absurdas as elaborações dos economistas ingleses (Smith como sabemos era escocês e um admirador confesso de Rousseau). Mas a Escócia deu ao mundo uma péssima equipa de futebol (agora em retoma), o som da gaita de foles e o cabelo do Rod Stewart. Não devemos confiar demasiado na Economia.

Na verdade, a ambição global da última moda na historiografia, acompanhando na academia as ambições comerciais das grandes empresas de exportação, acaba por falhar o principal problema da História: a diferenciação do comportamento humano no espaço e no tempo. Enigma que fascinou cientistas como Darwin. Mas o trabalho de categorização de Darwin manipulava os objetos de uma forma que o historiador nunca poderá ambicionar, seja pela extensão das diferenças entre indivíduos das mesmas espécies e ecossistemas, quer pela interferência dos próprios indivíduos na descrição do seu comportamento. Imaginemos que os biólogos, na hora de estudar as tartarugas ao longo das eras geológicas, eram influenciados pelas guerras entre grupos de tartarugas e apenas seria possível aceder às suas formas e comportamentos através das descrições escritas, em tartaruguês ou através dos vestígios parcelares das tartarugas em rochas exploradas e descritas pelos professores-tartarugas ao longo do tempo. Seria por certo divertido. Por outro lado, comparar apenas vestígios numéricos da vida das tartarugas também não nos ajudaria muito, se as mesmas espécies de tartarugas diferissem no comportamento a cada vinte anos, ou segundo a formação de grupos de tartarugas que não tivessem propriamente uma relação com o ecossistema «natural», mas com a força dos exércitos de tartarugas, a sua tecnologia (instrumentos complexos usados pelas tartarugas) ou a sua fidelidade a diferentes discursos sobre como deve ser o comportamento das tartarugas. A História passaria a ser comédia. Dante e Balzac perceberam isto com alguma facilidade. É um pouco embaraçoso que grande parte dos nossos historiadores da Economia não o tenham percebido.

O esquecimento do passado e a apoteose dos ecrãs: Borges no lar

Isto não quer dizer que não possamos corrigir as nossas representações do passado. Talvez fosse de compreender que a narrativa não constitui um enfraquecimento das possibilidades cognitivas, mas a sua intensificação. Curiosamente, na literatura ocorre algo semelhante, talvez fruto da especialização, onde a narrativa tem seguido um apagamento quase delirante de todas as marcas históricas. Se em Joyce a História é um pesadelo ou uma gargalhada, com contornos definidos (preços, jornais, conflitos políticos) desde Faulkner e Virginia Woolf, a realidade literária é cada vez mais apenas a sensação sentimental dos corpos, sem marcas políticas e económicas visíveis. Quanto custa a casa de campo onde se processa o drama As Ondas?  Se quisermos recorrer a exemplos nacionais, quanto recebem as criadas dos romances de Agustina? E quanto custa arrendar os apartamentos suburbanos onde Lobo Antunes coloca os seus rurais e periféricos sofredores? Curiosamente, os russos oitocentistas estavam sempre a dar-nos indicações sobre quanto custam as casas, as peças de roupa, o vinho e o esturjão, ou uma simples viagem de comboio de S. Petersburgo a Moscovo, mesmo que, no final, a heroína decida atirar-se para debaixo da carruagem.

Quando olhamos para o passado, vemos exércitos comandados por generais condecorados, banquetes aristocráticos e os sermões dos bispos comprometidos com agendas de conversão a regimes fundados na teocracia, vemos as massas de esfomeados agitando foices e gadanhas, ou a melancolia do cientista empobrecido no seu quarto austero, entre livros e instrumentos de medição. Somos tentados a escolher um lado ou então mergulhamos no palavreado profissional, tentando encontrar a lógica mecânica capaz de explicar o presente. Não nos passa pela cabeça que o presente não tenha uma genealogia linear, nem seja apenas o fruto caótico dos aparelhos de repressão, mas o resultado, nem sempre intencional, de escolhas diárias e dilemas dilacerantes, pois mesmo diante da mais brutal repressão a escolha é sempre uma possibilidade. Mas a complexidade dos resultados dessas escolhas e respetivas fragilidades humanas, a confusão diante de cálculos difíceis de representar, é a grande lição da multidão de mortos aos quais prometemos ser fiéis. Não é possível evitar o julgamento, mas é possível evitar a ignorância, mesmo que isso nos obrigue a percorrer o vale da morte.

Cara ou caro estudante de História, não tenho outra coisa para prometer. A vida pode ser o que quisermos, diz o slogan. E com muita razão, admito. Mas essa escolha pode atirar-nos para a morte, a exploração, o sofrimento e a desgraça, convém acrescentar. Edward Gibbon revelou como a sua intenção para a escrita da História do Declínio e Queda do Império Romano (1776-1788) foi ter constatado a ironia desse espetáculo de monges ignorantes, celebrando as suas cerimónias supersticiosas numa igreja situada precisamente onde antes estava um templo pagão. Ficou tão intrigado diante da mudança como diante da falta de consciência da mudança. Mas pode a consciência da mudança aliviar o futuro?

Talvez nos deixemos convencer pelo discurso que faz da política em sentido clássico e das grandes decisões os motivos de todas as nossas esperanças, mesmo sabendo que novas tragédias se erguem onde sonhámos uma aurora de felicidade. Não é isso que a História do século XX ensina? Não é o início do século XXI, quando nos tinham prometido a cavalgada a caminho do glorioso triunfo da tecnociência, um entardecer tenebroso de angústias climáticas e lunáticos armadilhados com geradores de texto e programas de multiplicação de realidades alternativas?

Talvez te digam que a citação correta de um documento raro, a identificação de uma personalidade desconhecida, a justiça feita a um grupo de oprimidos, a descrição de um objeto insólito, constituem apesar de tudo – como os mosteiros escondidos nos vales amenos das montanhas – um abrigo diante do mundo em chamas. Não sei, talvez. O que te poderei dizer? Terás de ser tu a descobrir. Boa sorte.

 


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Imagem a partir da original “Sebastiao Iose de Carvalho e Mello, Secretario de Estado & C. & C (purl.pt)”.

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