Isto anda tudo ligado #6

Nós somos o inferno do outro

 

A política é uma ferramenta para organizar comunidades. Mas a própria ideia de comunidade é uma construção política de um “nós” que, muitas vezes, só conseguimos perceber em função de um “eles” que nos seja estranho. É nos contornos da diferença que nos separa que desenhamos o que somos. E é por isso que o “outro” é um elemento essencial em tantas narrativas políticas.

O que é o outro? A resposta mais básica é: o que não é igual. Afirmamo-nos por negação e construímos o outro como aquele que é diferente. E o que é diferente é muitas vezes o inimigo. Inimigo é hoje uma palavra maldita na política. Preferimos falar de adversários. Mas a subtileza da linguagem que escolhemos esconde a profunda divisão que afasta os grupos em conflito na política. Não falo de quem está em pontos opostos do pensamento ideológico, mas nas próprias categorias que as ideologias tentam organizar. Classe, raça e género, mas também religião. Essas são as categorias em torno das quais se faz o jogo político.

É interessante recuar até à Europa do séc. XVIII para perceber como a discussão iluminista sobre o significado e a importância dos direitos ditos humanos tem impactos até hoje. Quando os iluministas começam a debater noções de igualdade, há todo um sistema económico que choca com essa visão do mundo. Uma parte substancial do trabalho mais árduo, sobretudo nas colónias fora da Europa, é feito por escravos. Para justificar as formas de dominação a que estavam sujeitos, começam a surgir teses que os descrevem como “selvagens”.

Nesta categoria de “selvagens” radica todo um projecto de desumanização. Um projecto que se foi consolidando em torno da ideia de raça, uma construção política poderosa que até hoje domina muito do debate público e molda as nossas percepções sobre o mundo.

Ao construirmos a ideia de que há indivíduos racializados, estamos a entendê-los como diferentes e, quase sempre, menos humanos, logo, mais justificadamente explorados e oprimidos. No reverso desta moeda, há um lado menos evidente, mas com enormes repercussões: a noção de uma “raça branca”. Raramente falamos da “raça branca”, porque ela se constrói sobre um contraste, mas ela não é menos política e socialmente construída por causa disso. Na verdade, é uma categoria essencial.

 

A armadilha do privilégio branco

Quase só falamos de “branquitude” para apontar o dedo ao “privilégio branco”. Mas a ideia de que a divisão racial beneficia de igual forma todos os que têm menos melanina talvez seja exagerada. Assad Haider alerta-nos para isso no livro Armadilha da Identidade, citando textos de Theodore Allen e Noel Ignatiev do final dos anos 50, nos quais se defende que “sugerir que a aceitação do privilégio branco é do interesse dos trabalhadores brancos é o equivalente a sugerir que engolir a minhoca com o gancho é do interesse do peixe”.

O pressuposto desta afirmação é inquietante: faz-nos pensar de que forma poderiam ser conquistados direitos num mundo em que se abolisse a noção de raça e a organização dos interesses se fizesse, em vez disso, tendo em conta a classe.

Sob a capa de “privilégio branco”, os trabalhadores mais pobres não só aceitam condições de vida e de trabalho miseráveis como se sentem socialmente superiores. Haider, autor americano de origem paquistanesa que se assume como “não branco”, vai buscar o exemplo da opressão a que os irlandeses estavam sujeitos pelos ingleses para apontar um caso de “uma forma de opressão racial que não é baseada na cor da pele e que na verdade precede a própria categoria de branquidade”.

O exemplo é tanto mais pungente quanto a história de Margaret O’Rorke, uma mulher que viu os seus dois violadores serem absolvidos numa sentença de 1278, na qual se diz que não houve crime porque “a dita Margaret é uma mulher irlandesa”. Para os sacerdotes anglo-normandos da época, “não é mais pecado matar um irlandês do que matar um cachorro ou outra besta”.

Decidir que há um grupo de pessoas que são infra-humanas dá a todas as outras categorias uma espécie de direito natural à sua exploração e opressão. Isso era verdade no tempo da escravatura, mas ainda é verdade hoje.

O racismo é uma ideologia. Tendemos demasiadas vezes a ver o racismo em expressões individuais, evitando a ideia de que vivemos em estruturas racistas. Mas essa é uma visão demasiado redutora e ainda mais ingénua. A discriminação pela raça que se manifesta num indivíduo é produzida por estruturas nas quais estamos imersos e que nos fazem associar determinadas características físicas a uma inferioridade social e moral que depois produz e legitima uma inferioridade económica.

 

No jardim ou na selva? Onde estão os selvagens?

É a desumanização das pessoas racializadas que nos permite ignorar quase por completo os milhares de cadáveres que se acumulam no fundo do Mediterrâneo enquanto nos entretemos a seguir com ansiedade as desventuras das buscas por um pequeno submarino onde viajavam cinco milionários numa expedição turística aos destroços do Titanic.

Soubemos, com notícias ao minuto, quantas horas de oxigénio poderiam sobrar aos eventuais sobreviventes do desastre do submergível. Foram convocados especialistas para os estúdios de televisão e encenados modelos 3D para ilustrar as notícias. A história de 750 migrantes naufragados a 80 quilómetros da costa grega, na mesma semana, não ocupou nem um quinto do espaço de atenção mediática.

Uns dias antes, Ursula Von Der Leyen tinha ido à Tunísia para, em nome da União Europeia, oferecer um pacote de ajudas de 900 milhões de euros, embrulhado num novo acordo para a imigração. As notícias sobre a viagem foram ilustradas com fotografias sorridentes, num jardim ao sol com vista de mar, e diziam pouco sobre o acordo que permitirá tentar fechar mais uma porta aos refugiados que tentam fugir para a Europa. É que a Europa, como disse Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, “é um jardim” e o resto do mundo “é a selva”, ou seja, o lugar onde vivem os selvagens que nos ameaçam.

O jardim em que vivemos esconde, porém, algumas sombras. A 21 de Junho, as autoridades portuguesas encontraram mais um caso de cidadãos imigrantes explorados a viver em condições desumanas. Rodeados de lixo e baratas, dormindo em camas encostadas umas às outras, cada um pagava cerca de 300 euros pelo alojamento. Curiosamente, segundo o DN, “apenas nove dos 243 imigrantes estavam em situação irregular”, o que mostra bem como a simples regularização da condição de imigrante não chega para proteger os seus direitos, quando o mercado laboral e de habitação está completamente desregulado.

 

Há pessoas ilegais?

A ideia da “ilegalidade” dos migrantes é, porém, central para muitas das narrativas que se fazem sobre o tema. Os “sem papéis” são infra-humanos. A sua perseguição é vista como sinal de força política. Emmanuel Macron sabe-o bem. É por isso que, face à pressão política feita à sua direita por Le Pen, a pequena ilha de Mayotte se tornou num símbolo.

Mayotte é uma colónia francesa, localizada entre Madagáscar e Moçambique. Em Fevereiro, Macron aprovou o envio de um reforço de 510 agentes policiais para uma operação de controlo de gangs na ilha. O mote é a repressão da alegada violência, mas a realidade é feita de ordens de demolição de bairros de lata e de uma perseguição sem tréguas a todos os ilegais, que estão a ser detidos e deportados.

Números revelados pelo The Guardian no final de Maio falam na deportação de 10 a 20 mil pessoas (a ilha tem cerca de 310 mil habitantes dos quais se estima que metade serão estrangeiros) e na destruição de mil casas informais. Na imprensa, o ministro do Interior francês Gérald Darmanin apareceu a denunciar a “delinquência” no território. Pobreza e imigração fundem-se com violência e crime. E isso não acontece apenas na anacrónica colónia francesa. Não há reportagem em Portugal que não identifique as zonas urbanas mais pobres como “bairros problemáticos”. A “problemática” devia ser a pobreza, mas o que sobressai é a ideia da criminalização das populações mais desfavorecidas.

Em Mayotte, foi montado aquilo que é descrito pelo The Guardian como “um estado policial”, com raides que aterrorizam as populações. Macron tenta aparecer como um político firme na política de imigração ao mesmo tempo que assegura o controlo de um território que lhe dá acesso a uma riquíssima zona marinha. A repressão e a exploração andam de mãos dadas.

 

Portugal não é racista?

Em Portugal, a negação do racismo vem de mãos dadas com a sua instigação. O Chega fez mesmo uma manifestação em Agosto de 2020 para dizer que “Portugal não é racista”. Mas a 21 de Abril deste ano, André Ventura partilhou no Twitter um vídeo curto no qual se mostram umas centenas de muçulmanos em oração, a festejar o fim do Ramadão, na Praça do Martim Moniz, em Lisboa. Dispensou-se de grandes legendas, porque o subtexto estava lá e encaixava nas mesmas teorias da “grande substituição” que são propaladas em França por Le Pen e Éric Zemmour ou nos Estados Unidos pelos supremacistas brancos.

O objectivo é que olhemos para os imigrantes pobres como uma ameaça. Rita Matias, deputada do Chega, escrevia a 6 de Junho no Twitter que “dizer que a imigração massiva não acarreta riscos para as mulheres e crianças é ser, no mínimo, irresponsável”. Está subentendido que os imigrantes são potenciais violadores. O ressentimento é uma semente que tem de ir sendo regada com o medo, para crescer e fazer florescer uma política que divide para tirar e cortar o maior número possível de apoios sociais.

Quando se faz um discurso sobre a “subsidiodependência” e se aponta o dedo aos ciganos, esconde-se que, segundo dados de 2019 da Segurança Social, só 3,8% dos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) são de etnia cigana. Muitos dos que aderem a este discurso serão os primeiros a perder apoios de que hoje dependem, sejam eles em forma de subsídios ou de serviços públicos gratuitos.

 

A diversidade não trava a desigualdade

O que une quem está na base da pirâmide económica devia ser superior a divisões de raça, género e religião. A manipulação do discurso político faz com que não seja assim. E, nesse capítulo, a esquerda não está isenta de culpas.

As políticas de diversidade, através de quotas raciais ou de género, e as “reparações” concedidas sob a forma de apoios especiais para os racializados, têm um reverso da medalha: mascaram a necessidade de combater a desigualdade de forma global.

Walter Benn Michaels é autor de The trouble with diversity, how we learned to love identity and ignore inequality e tem alertado para a forma como aceitamos a desigualdade crescente, desde que se assegure uma representatividade de género e raça na camada superior dos mais ricos. Em vez de lutarmos para que todos tenham acesso a habitação, saúde e educação, independentemente da raça ou género, aceitamos políticas que mitiguem algumas desigualdades provocadas pela raça e pelo género.

O resultado está à vista. Vivemos em sociedades com desigualdades cada vez mais gritantes. Pior: naturalizámos a desigualdade. E contentamo-nos com a ideia de que pessoas de cores, géneros e orientações sexuais diversas conseguem alguns dos melhores lugares, ao mesmo tempo que perdemos de vista a noção de igualdade, como se ela fosse um objectivo impossível.

Para todos os que acreditam numa sociedade mais decente, lutar para que haja condições de acesso geral a serviços de saúde, educação, segurança social, justiça e habitação não pode ser uma utopia. Acreditar nessa impossibilidade é uma desistência inaceitável. Significa aceitar que alguns terão tudo e outros nada. Enquanto assim for, seremos mesmo o inferno do outro.

Relacionados

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade
Filosofia e História
André Canhoto Costa

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Depois de semanas de angústia, se o teu nome constar das listas de admitidos, espera-te a Universidade, templo de sabedoria, ringue de treino cognitivo, incubadora para os teus sonhos. Mas na primeira manhã de glória, no dia da matrícula, talvez te suceda seres vítima de um veterano trajado com gravatinha

Ler »
A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo
Ciências
Inês Narciso

A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo

No passado dia 5 de junho, Vera Jourova, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e transparência, dizia, após reunião com os signatários do Código de boas práticas para a Desinformação, que a liberdade de expressão pertence aos Humanos, e não às máquinas.   O desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA)

Ler »
Um unicórnio em cada onda
Ciências
Leonardo Azevedo

Um unicórnio em cada onda

Após uma longa viagem pelos meus arquivos virtuais, lá consegui encontrar a primeira vez em que pisei um navio científico: foi em junho de 2008. Tinha 21 anos. Nesse primeiro cruzeiro científico, foram quase trinta dias sem pôr pés em terra: de Cádis, no Sul de Espanha, a Lisboa. Quase

Ler »