O trigger veio do meu amigo Tiago Matias, actor e uma das melhores pessoas que conheço, portanto, realmente interessado em perceber o outro lado da história. O lado das minorias. Perguntava-me de forma directa: “qual a tua opinião sobre o que aconteceu no São Luiz – aproveitando para partilhar o manifesto valente de Keyla Brasil, que começava, naquele dia seguinte, a circular nas redes sociais.
Ao primeiro visionamento, atirei logo “estou absolutamente com ela!”. Sem rodeios, sem precisar de uma segunda visualização, sem “mas”.
Depois, veio toda a discussão a que assistimos nos últimos dias sobre arte, representação e dramaturgia, que só não teve mais expressão porque os professores fizeram greve e, em Portugal, só há espaço para uma manifestação por direitos humanos de cada vez.
A arte não existe só como arte, espaço de contemplação e partilha. A arte é, sobretudo, uma manifestação de expressão, uma manifestação política de liberdade.
Ouvi de tudo. “Ah, mas que há tantos homens que representam mulheres? Ah, mas então tem de se ser homossexual para se representar um gay? Quantas pessoas novas vemos, caracterizadas, a representar velhos? Ah, mas… Mas…” Para mim, à segunda, terceira, infinita repetição do visionamento do discurso da activista trans, continuava fortemente a não haver qualquer possibilidade de “mas”.
Eu ia devolvendo bolas: “E quantas mulheres vemos a representar homens? Quantos actores com deficiência vemos a representar pessoas sem deficiência? Quantos actores negros, ciganos ou de outras raças vemos, recorrendo a caracterização, a representar personagens brancas? Quantos? Quantos?”
A maioria das pessoas fica confusa.
E é isto que se passa: nós normalizámos actores em posição de privilégio (homens, brancos, jovens, sem deficiência, cisgénero…) a representarem qualquer tipo de papel e a terem acesso, por via da caracterização, da imitação mímica de gestos ou condições estereotipadas, a papéis representativos de pessoas de grupos minoritários ou vulneráveis. Não só lhes abrimos o acesso à representação ilimitada de papéis, como, na maioria das vezes enquanto sociedade, apreciamos, e atribuímos uma conotação de comicidade e algum sentido de ridículo a um determinado toque hiperbólico e exagerado nos maneirismos e estereotipias que ancoramos a essas minorias: o gay efeminado, a lésbica rude, a mulher fútil, a pessoa cigana astuta e a tentar contornar a lei.
Já houve caminho desde as primeiras novelas da Globo, bem sei, já não achamos aceitável os negros representarem os empregados, as mulheres serem apenas servidoras dos apetites dos homens ou donas de casa exímias mas, reparem, são pequenos passos que demoraram décadas a serem substituídos no imaginário da representação.
Não só não assistimos ao movimento contrário de dar acesso a papéis que representam personagens de grupos dominantes a actores de grupos minoritários como, inclusive, barramos-lhes o acesso a representarem personagens que representam as suas próprias comunidades de pertença. Não só as mulheres não representam homens, as pessoas de outras raças não representam pessoas brancas, como não existem pessoas com deficiência a representar papéis de personagens sem deficiência e – sim! – não existem pessoas trans a representar pessoas cis.
Então que espaço de palco resta para estes actores em posição de não privilégio?
Nenhuma.
A arte pela arte vale pouco se não passar a barreira meramente estética. A arte – como quase tudo, aliás – tem de servir, essencialmente, as pessoas.
A minha colega Catarina, uma mulher inteligentíssima, em conversa sobre o tema, deu um exemplo estupendo: na natureza, as espécies de plantas invasoras crescem e reproduzem-se rápida e intensamente nos terrenos, dispersando-se a grandes distâncias. Numa abordagem ecológica, são tidas como “colonizadoras” ou “pioneiras”, porque têm condições que as tornam dominantes, ganhando, com isso, uma grande vantagem de crescimento, proliferação e dispersão, capaz de modificar a própria composição, estrutura ou função do ecossistema. As plantas invasoras são, actualmente, uma das principais ameaças à biodiversidade, uniformizando os ecossistemas e travando a possibilidade para a proliferação e expansão das plantas autóctones, em posição de não dominância.
Existem métodos de controlo físico, químico e natural para travar a proliferação das espécies invasoras. O controlo natural consiste, por exemplo, na introdução de insectos que comem sementes ou larvas que comem folhas, reduzindo, assim, o vigor ou potencial reprodutivo das plantas invasoras. Este tipo de controlo baseia-se no princípio de que, retirando a vantagem competitiva das plantas invasoras face às espécies nativas e reduzindo o seu vigor para valores semelhantes aos das espécies nativas, limitamos e circunscrevemos a sua área de proliferação e permitimos às espécies nativas ganharem terreno e poderem começar a proliferar e a ter mais visibilidade, representatividade, expressão..
O mesmo acontece na arte. No teatro -na representação. Temos de travar a possibilidade universal de os actores de grupos dominantes poderem açambarcar qualquer tipo de papel e circunscrever a sua área de actuação. No mínimo, permitindo que os papéis que digam respeito a grupos minoritários e não dominantes possam ser reservados a estes, dando-lhes lugar na boca de cena, voz própria, visibilidade. Dando-lhes corpo, expressão pública e voz.
Para que se criem espaço e condições para que os actores que não estão em situação de privilégio possam ter espaço para crescer, ganhar terreno e proliferar.
Quando Keyla subiu ao palco, representou todas as minorias, não apenas a comunidade Trans.
Havia, na peça, dois papéis que representavam pessoas trans. O encenador apenas atribuiu um dos papéis a um actor trans. O outro atribuiu-o a um actor cis. A comunidade trans tentou chegar, por várias vias, à fala com o Teatro, alertando para a importância de ambos os papéis serem atribuídos a actores da comunidade. Sem sucesso.
Foi ignorada a voz de fala desta comunidade que, assim, se viu obrigada a fazer esta ação simbólica, brava, corajosa, de profunda resistência contra uma cultura em que, mesmo sobre temas que dizem respeito às minorias, se prefere substituir o lugar de fala destas, apropriando-se do mesmo, em vez de se insistir em permanecer como aliado.
Entenda-se que é preciso uma revolução. É preciso haver ações extremistas, colocar o dedo na ferida, abalroar palcos, gritar manifestos, recusar soluções pela metade. Não, não bastava que apenas um dos dois papéis trans fosse atribuído a uma pessoa trans: as minorias querem tudo. Porque tudo é tão pouco. E já vem com tanto atraso.
As Keylas desta vida, enquanto nem sequer conseguirem representar as Keylas desta vida, não terão espaço para representar nada mais. Continuarão na sombra, na invisibilidade.
Só a representatividade permite a visibilidade.
A revolução está viva. Viva a revolução!




