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Estou Cansada

“A mulher que não gosta de ações de sensibilização com cadeiras de rodas!” – anunciou o moderador, entre o divertido e o irónico, perante uma plateia de pessoas que me iam ouvir a falar sobre deficiência, a propósito do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, que se assinala (não se comemora,  há muito pouco para comemorar neste campo) a 3 de dezembro e cujas ações se estendem entre duas semanas antes e duas semanas depois do próprio dia. 

A reação das pessoas foi de alguma estranheza, notei nas testas enrugadas e nas expressões faciais confusas da plateia, pelo que não me restou outra opção que não a de iniciar a minha talk a justificar-me da provocação. 

Desde há uns anos, as ações que assinalam o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência têm, volta e não volta, um guião muito parecido. Pedem-se umas cadeiras de rodas emprestadas a associações parceiras, reúne-se um grupo de pessoas (normalmente colaboradores de empresas, estudantes universitários, alunos de escolas secundárias) e convidam-se as pessoas para que se sentem na cadeira de rodas e percorrem um pequeno trajeto. As reações são diversas: primeiro começam atrapalhadas com a condução do produto de apoio; depois continuam divertidas com a própria atrapalhação e a novidade de experimentar circular numa cadeira de rodas pela primeira vez e, finalmente, sentem a culpa judaico-cristã a bater à porta, que isto de obter prazer infantil em circular numa cadeira de rodas, caraças, Deus ainda me castiga!

As ações de “sensibilização” são, geralmente, de curta duração: dez minutos até se esbarrar com a primeira escada ou com o primeiro desnível do chão, a dificuldade em encaixar a cadeira de rodas debaixo do tampo da secretária do escritório ou  conseguir transportar o tabuleiro do refeitório enquanto se conduz. Seguem-se debriefings, quase sempre, muito iguais: que difícil que é circular para quem tem mobilidade “reduzida”, que horror haver tantas barreiras arquitetónicas em todo o lado e, caramba, “só quando nos sentamos nelas é que damos conta de que, de metro a metro, há obstáculos à livre circulação” para terminar, regra geral, na conclusão capacitista de que incríveis e guerreiras que são as pessoas que se deslocam de cadeiras de rodas. 

Finda o dia, finda a experiência e no dia seguinte toda a gente segue a sua vida. “Isto das acessibilidades é mesmo um problema, alguém tem de o resolver: os arquitetos têm de deixar de construir espaços com barreiras, os designers de produtos deviam construir secretárias com tampos mais altos, as senhoras do refeitório têm mesmo de ajudar as pessoas de cadeira de rodas a transportar o tabuleiro para as suas mesas e, se se for para a rua, as autarquias devem mesmo pensar em tirar os mupis do meio dos passeios e  tornar as cidades mais acessíveis.”  Os outros. Que resolvam, sempre, os outros. 

Passada uma semana já ninguém fala disso. E como, realisticamente, não há representatividade significante das pessoas com deficiência nas escolas, nas universidades e nas empresas, o tema vai adormecendo até ao próximo ano. Em que se volta a repetir a dose e tudo, dando a volta, fica exatamente igual. 

Estou cansada. Sinceramente estou muito cansada. 

Cansada de que resumam ter uma deficiência a andar numa cadeira de rodas e encontrar obstáculos durante dez metros e depois levantar o rabo, assinar a folha de presenças da ação de sensibilização e retomar a passo largo a vidinha. Porque ter uma deficiência não pode ser resumido aos obstáculos perante barreiras arquitetónicas. Porque ter uma deficiência não pode ser resumido às dificuldades de acessibilidade física. Porque ter uma deficiência não pode ser objeto inspiracional para ações de sensibilização. Estamos cansados de vos sensibilizar, de vos inspirar, de que nos achem guerreiros, heróis e inspiradores: queremos é o vosso compromisso, caramba!

Porque ninguém se lembra de sensibilizar para a discriminação de género que sofrem as mulheres oferecendo aos homens uma experiência de dez minutos a andar de saltos altos. E – que chatice! – as pedras da calçada, e o desconforto na coluna e que maçada!  Porque não se pode resumir a experiência identitária de ser mulher, a luta diária, a disparidade salarial, a discriminação de género, a sobrecarga na conciliação entre vida familiar e profissional, a falta de cumprimento de direitos humanos básicos em países vários, recorrendo a um artefacto e a uma ação de sensibilização folclórica. 

Porque ninguém se lembra de sensibilizar para o racismo e a discriminação racial pintando a cara de pessoas caucasianas durante dez minutos. Porque é ofensivo resumir a experiência de se ser negro em Portugal, o preconceito, a ostracização, a discriminação recorrendo a uma ação de sensibilização teatral. 

“Então, porque continuamos a fazer isto com a comunidade de pessoas com deficiência?” – perguntei eu, à plateia, que me ouvia de olhos bem abertos. Acho, agora, que talvez me tenha entusiasmado no tom de indignação (mas indigna-me!). 

Respondeu-me um rapaz, entre o receio e o interesse genuíno: “Porque queremos perceber o que vocês sentem! Porque nos queremos pôr no vosso lugar!”

Aí eu sentei-me (já disse que estou cansada?). 

Se querem perceber o que nós sentimos, chamem-nos, ouçam-nos, convidem-nos a apresentar soluções (ao invés de vocês chegarem a conclusões acerca das nossas necessidades. Não vale a pena: o vosso referencial de partida não é o nosso!), ouçam-nos, leiam e pesquisem sobre deficiência, ouçam-nos, juntem-se a nós como aliados para reclamarem connosco (e não por nós) os direitos humanos que nos subtraem todos os dias, ouçam-nos, sigam pessoas com deficiência nas redes sociais, ouçam-nos, contactem ONG de pessoas com deficiência e perguntem como se podem juntar à luta pela causa, ouçam-nos, assistam a documentários, séries e filmes sobre deficiência, ouçam-nos. Já disse “ouçam-nos”?

Vamos chegar a um ponto de entendimento: não é possível que se ponham no nosso lugar. 

Ter uma deficiência não pode ser resumido a uma viagem de cadeira de rodas durante dez minutos. Ter uma deficiência não se resume a obstáculos nas acessibilidades no passeio: juntem a falta de acessibilidades nos acesso aos transportes, aos serviços públicos, aos eventos de cultura, desporto, lazer, participação e cidadania, aos sites, aos telejornais, à comunicação social; para muitos de nós, às dificuldades em ter autonomia nos domínios da higiene, da alimentação, das idas a supermercados, à manutenção da saúde, assistência doméstica e cuidados pessoais, à dependência forçada das famílias que passam, sem grande opção de escolha, a ser cuidadoras. Às dificuldades no acesso atempado e célere a produtos de apoio, a políticas reais e inclusivas de educação, formação profissional, frequência do ensino superior ou investigação. Às dificuldades reais de acesso a emprego. A habitação acessível.  À criação e desenvolvimento de redes sociais de apoio. À luta contra a institucionalização forçada e como resposta única em muitos casos. Ao direito à tomada de decisão sobre a sua própria vida. À luta por direitos humanos universais. 

Não queiram pôr-se no nosso lugar. Ajudem-nos a alcançar esse lugar de privilégio que é o vosso e que devia ser de acesso universal: o lugar de uma vida plena, com direitos humanos básicos assegurados – saúde, habitação, educação, emprego, vida conjugal e familiar, vida social, potencial em ocupar as cidades, visibilidade, representatividade e participação cívica. 

Querem ajudar? Contribuam para que sejamos nós a pormo-nos no vosso lugar. Que devia ser o de todas as pessoas. 

Já disse “ouçam-nos”? 

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