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Excerto da “Vida e obra de Orgasmo Carlos Rodrigues” – “Os anos de repartição” – Tomo1 – 3ª parte, 4ª parágrafo.

Virou a esquina e esbarrou com uma luz incisiva que o cegou durante os dois segundos que demorou a bater com a testa no semáforo torto. A dor intensa levou-o a gritar um “foda-se” de gigante. Algumas senhoras de idade voltaram-se e murmuraram qualquer coisa sobre o estado actual da sociedade. Tinha-lhe caído uma gota de sangue sobre o fraque branco. Agora que examinava a nódoa verificava que esta era violeta e não encarnada. Estava atrasado. O inspector, se estivesse no escritório, ia berrar com ele, cuspindo perganhotos viscosos sobre a sua face.

Felizmente não estava no escritório. Estava a Carla, a despachar-se para sair. Imaginou num segundo que ela se preparava para cair, cair num abismo negro, onde a aguardava um polvo de charuto e pigode passa-piolho, encarnação octópode do seu amante. 

—Olá, Carla.

—Olá, Rodrigues.

—Então já se vai embora?

—Tenho que ir fazer um recado ao patrão.

—Pois…Está bem…

Olhou pela janela e viu o Capri 3000 do patrão.

—Então o senhor Mendonça dá-lhe boleia?

—Pois…A papelaria é a caminho…

—Tá bem, tá…

Carla soltou um riso simultâneamente frio, desdenhoso e pornográfico:

—Ah, ah, ah!

—Carla, você sabe que eu gosto muito de si…

—Pois…Mas eu não gosto nada de si, Rodrigues, a não ser que…

—Sim?…

—As minhas botas estão sujas…

—Não vejo…

—Lambe-me as botas, escravo…

—Eu?…

Rodrigues quis dizer que não, mas a sua língua já estava a lamber as botas de crocodilo de Carla. A sua alma descia uma escadaria vertiginosa. Ouviu-se uma sonora buzinadela, daquelas com o tema da “ponte sobre o rio Kwai”:

—Tenho que ir… Adeus…Bom fim de semana…

—Bom fim de semana…

Rodrigues ficou ajoelhado, com a língua seca e o coração a bater como uma bola de demolição descontrolada, quase a sair-lhe do peito. Levantou-se na altura em que o Ratinho vinha a passar. Chamavam-lhe o Ratinho porque tinha os dentes apropriados e orelhas salientes. Era um manga de alpaca diligente e tinha como objectivo passar os fins de semana a entreter-se com jogos de estratégia. Ucrânia contra Rússia…Tinha a casa cheia de diaporamas e modelos de fortalezas, exércitos, blindados, aviões e jogava com o Mendia, o chefe de repartição, com o qual partilhava o vício pela guerra de plástico.

Rodrigues saiu, de rompante, num súbito acesso de impaciência. Estava nitidamente a perder o seu tempo com esta gente. Rumou ao café.

 

Os MIGs do incrível Dr Fu Manchu passavam a toda a hora sobre o céu límpido da capital do império nacional português. A guerra durava há 30 anos enquanto se acumulava no mundo a inanidade frente à tragédia bíblica. Um Messias pobrezinho declamava na esquina:

— …E virão pragas de helicópteros, viroses extraordinárias, secas esterilizantes, o fogo do Inferno…

Deu-lhe uma moeda de tostão, tão preta que podia ser outra coisa.Pediu um carioca de limão e aguçou o ouvido para entender os idiomas da Torre de Babel em que se estava a transformar o bairro.

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Não perca o próximo episódio: O nascimento do Super Rodrigues
Episódio 3: Os Robots de Bratislava

 

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