Virou a esquina e esbarrou com uma luz incisiva que o cegou durante os dois segundos que demorou a bater com a testa no semáforo torto. A dor intensa levou-o a gritar um “foda-se” de gigante. Algumas senhoras de idade voltaram-se e murmuraram qualquer coisa sobre o estado actual da sociedade. Tinha-lhe caído uma gota de sangue sobre o fraque branco. Agora que examinava a nódoa verificava que esta era violeta e não encarnada. Estava atrasado. O inspector, se estivesse no escritório, ia berrar com ele, cuspindo perganhotos viscosos sobre a sua face.
Felizmente não estava no escritório. Estava a Carla, a despachar-se para sair. Imaginou num segundo que ela se preparava para cair, cair num abismo negro, onde a aguardava um polvo de charuto e pigode passa-piolho, encarnação octópode do seu amante.
—Olá, Carla.
—Olá, Rodrigues.
—Então já se vai embora?
—Tenho que ir fazer um recado ao patrão.
—Pois…Está bem…
Olhou pela janela e viu o Capri 3000 do patrão.
—Então o senhor Mendonça dá-lhe boleia?
—Pois…A papelaria é a caminho…
—Tá bem, tá…
Carla soltou um riso simultâneamente frio, desdenhoso e pornográfico:
—Ah, ah, ah!
—Carla, você sabe que eu gosto muito de si…
—Pois…Mas eu não gosto nada de si, Rodrigues, a não ser que…
—Sim?…
—As minhas botas estão sujas…
—Não vejo…
—Lambe-me as botas, escravo…
—Eu?…
Rodrigues quis dizer que não, mas a sua língua já estava a lamber as botas de crocodilo de Carla. A sua alma descia uma escadaria vertiginosa. Ouviu-se uma sonora buzinadela, daquelas com o tema da “ponte sobre o rio Kwai”:
—Tenho que ir… Adeus…Bom fim de semana…
—Bom fim de semana…
Rodrigues ficou ajoelhado, com a língua seca e o coração a bater como uma bola de demolição descontrolada, quase a sair-lhe do peito. Levantou-se na altura em que o Ratinho vinha a passar. Chamavam-lhe o Ratinho porque tinha os dentes apropriados e orelhas salientes. Era um manga de alpaca diligente e tinha como objectivo passar os fins de semana a entreter-se com jogos de estratégia. Ucrânia contra Rússia…Tinha a casa cheia de diaporamas e modelos de fortalezas, exércitos, blindados, aviões e jogava com o Mendia, o chefe de repartição, com o qual partilhava o vício pela guerra de plástico.
Rodrigues saiu, de rompante, num súbito acesso de impaciência. Estava nitidamente a perder o seu tempo com esta gente. Rumou ao café.
Os MIGs do incrível Dr Fu Manchu passavam a toda a hora sobre o céu límpido da capital do império nacional português. A guerra durava há 30 anos enquanto se acumulava no mundo a inanidade frente à tragédia bíblica. Um Messias pobrezinho declamava na esquina:
— …E virão pragas de helicópteros, viroses extraordinárias, secas esterilizantes, o fogo do Inferno…
Deu-lhe uma moeda de tostão, tão preta que podia ser outra coisa.Pediu um carioca de limão e aguçou o ouvido para entender os idiomas da Torre de Babel em que se estava a transformar o bairro.
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Não perca o próximo episódio: O nascimento do Super Rodrigues
Episódio 3: Os Robots de Bratislava