Acabei por desenvolver com o namorado da Luísa uma relação interessante no plano da tépida cumplicidade de género depois de ele ter ficado para almoçar no dia em que me veio visitar com o intuito inaugural de me desfazer o trombil, ainda estou para descobrir se real ou figurativamente, por motivos que se prendiam, grosso modo, com o desconhecimento das minhas verdadeiras intenções para com a sua namorada, motivos que prontamente debelei apresentando-lhe a minha colecção de chávenas de café: Camelo, Rioba, Cubano, Delta, Candelas, Tenco, Indy, Nandi, Rio Bravo, Lunni, Lavazza, Cafés FEB, Sical, Buondi, Segafredo, Novo Dia, Sotocal, Nicola, Milenium, Leão, Flor da Selva, Tofa, Torrié, Perdiz, Negrita, Palmeira, Chave d’Ouro, Christina, Azkoyen, Continental, Brasília, Lusitana, Silveira e Meirelles, por ordem de sonegação em estabelecimentos, desde 2005.
Não posso dizer que descobrir o nome do namorado da Luísa me tenha apanhado completamente de surpresa. Pela tez acobreada em perfeito contraste com uma dentição definitiva radiosa, pelo fio de prata levitando sobre a penugem dourada do pescoço, pela tessitura da voz comprimida por anos de virilidade performativa, pela distância entre os olhos inversamente proporcional à distância entre os ombros, mas sobretudo pela concavidade da língua e suave retracção do palato que lhe sucedia quando era mesmo obrigado a pronunciar vogais tónicas, já havia reduzido as hipóteses a sete nomes, de modo que se tornava estatisticamente improvável ele não se chamar Tomás Maria, Vasco Maria, Manel Maria, Pedro Maria, Luís Maria, Francisco Maria ou Lady Marmalade.
Chamava-se Zé Maria. Servi-lhe batatas com presunto e o resto do empadão que havia engomado no fim-de-semana, aqueci para mim uma caixa da TV Box e fiquei a ouvi-lo nutrir-se e desabafar. Contou-me que andava tenso com a perspectiva de ser encarregado de vender o barco que era do padrasto da ex-namorada, sua prima em segundo grau, porque os tipos da marina queriam aumentar a renda desde que abrira um Honest Greens na antiga torre de controlo. Contou-me que não tinha arrependimentos na vida. Aliás, que a única coisa de que se arrependia na vida era de não ter papado a irmã da Luísa na secundária, disso e de não ter participado no mítico raide em alcateia no Bauhaus planeado no grupo de WhatsApp da antiga equipa de râguebi. E agora que pensava nisso, também se arrependia da tatuagem na clavícula que tinha feito no Sudeste Asiático, ou teria sido na Patagónia, de qualquer forma o centrocampista Costinha e o ex-ministro da Defesa do XIX Governo Constitucional José Pedro Aguiar-Branco acabariam por não ter a importância histórica que ele lhes vaticinava na altura, e a imagem deles deitados, vistos de cima, a fazer conchinha, era agora um borrão semelhante a um yin-yang desenhado na universidade sénior da Beira Interior. Contou-me, enfim, que lá no trabalho agora queriam retomar as reuniões presenciais com as chefias no sentido de dinamizar o follow-up dos projectos, facto que vinha interferir com o seu hábito recentemente adquirido de alegar problemas no wifi de casa, desligar a câmara do computador, abrir uma janela com pornografia feminista da década de 90 e ficar a masturbar-se enquanto ouvia o CEO queixar-se na sua voz balsâmica dos hábitos de consumo dos portugueses. E quando, a propósito de onanismo, finalmente me contou que a Luísa já só acedia a copular se ele vestisse calças reflectoras da Fubu, «como as do Sandro da Abóbada», engasguei-me com a inconfidência e fiquei com um pedaço de cartão canelado colado à garganta. Nunca fui de me queixar, muito menos de dar nas vistas ou de dar trabalho às visitas, por isso sustive a respiração e olhei fixamente para o infinito. Mais uma vez, deve ter sido a minha órbita direita a denunciar o meu estado de pré-asfixia, já que vi o Zé Maria saltar da cadeira, aproximar-se por trás, segurar-me timidamente pelos flancos e iniciar o que me pareceu ser uma convicta manobra de Heidegger com ascendente em Himmler. Aquilo deve ter durado alguns minutos. Depois, lembro-me de abrir os olhos e estava deitado no chão da sala, a olhar para umas sapatilhas brancas e imaculadas da Reebok e com uma açorda de celulose a escorrer-me da boca.
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Hoje li um artigo de opinião interessantíssimo sobre tardígrados. Aparentemente, há no seio desta comunidade de invertebrados um extremar de posições que opõe, de um lado, quem considere legítimas acções de luta mais musculadas que chamem a atenção para anos de violência e invisibilidade e desarmem o privilégio da identidade heteronormativa dos ursos-d’água-doce, e quem, do outro, invoque os perigos da ditadura da minoria, do politicamente correcto e das casas de banho mistas, contra-argumente que #TodasAsVidasTardígradasImportam e defenda que somos livres de bem escolher com quem queremos fazer a nossa partenogénese, desde que não seja à frente dos seus filhos.
Enfim, a opinião do colunista, gestor de carreira e tardígrado ele próprio, era a de que pôr as coisas nestes termos desviava o debate das questões essenciais do nosso tempo – a saber, a premente necessidade de imprimir celeridade na transição tecnológica do nosso tecido industrial, promover a progressiva flexibilização do mercado laboral e envidar esforços com o fito de reduzir a dívida pública num contexto geopolítico de crescente complexidade e imprevisibilidade – e condenava tardígradas e tardígrados moderados a uma luta fratricida sem rei nem roque, da qual só poderiam sair vencedores a intolerância, os axolotes e os pepinos-do-mar, mais interessados em acicatar as hostes do que em defender o Estado de Direito e os valores fundadores das democracias ocidentais de matriz judaico-cristã.
Da minha parte, evito falar disto cá em casa, sobretudo porque vivo sozinho e acabo por não ter ninguém com quem conversar. Mas também porque a questão me parece pouco controversa. Quase não damos por eles, esquecemo-nos de que existem, renegamo-los à ficção, seres monstruosos e inofensivos, excêntricos e irrelevantes, uma boca e uma cloaca almofadadas de cor-de-rosa. Mas os tardígrados existem, sabiam? E li no outro dia que eles hão-de cá estar para assistir da primeira fila à loucura da nossa extinção.
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Hoje cheguei a casa à hora a que devia estar a começar a reunião de condomínio.
– Então muito obrigado por terem vindo. Ficamos aqui apertadinhos, mas acho que cabemos todos. Estávamos só portanto à espera do senhor do bloco B, que deve estar aí a rebentar. A rebentar, por assim dizer, é uma força de expressão. Entretanto, se calhar, se concordarem, não era má ideia irmos começando.
Ana Paula, a dona da casa, solicitadora de execução de Mangualde destacada indefinidamente na comarca, começou a ler a acta.
– Ora… Aos treze de Fevereiro de 2023, reunidos portanto no terceiro andar, lote 1, bloco A, do imóvel sito no número 82A da Avenida da Restauração, recapitulando, prédio de placa construído em 1966, dois elevadores, garagem, serventia de logradouro de edifício confinante e outras comodidades, face tardoz em meia empena cega descrita na caderneta predial dois três…
Mas eu, chegado a casa ao fim de mais um dia a penhorar Toyotas Corollas de indivíduos sem a escolaridade obrigatória vítimas de ofertas comerciais de dependências usurárias com condições particularmente atractivas, não reunia o entusiasmo para me dirigir a casa da nova vizinha para discutir orçamentos para as obras na coluna de electricidade. Ainda assim, faltava-me uma razão válida para faltar à reunião. Aproveitei o tempinho que me restava para pegar em papel e numa caneta, abrir a torneira da banheira, despir o fato, a camisa, as cuecas, e submergir-me em água a ferver, meias calçadas e torradeira na mão.
«Caros co-inquilinos», lia-se na minha carta de suicídio. «Infelizmente não pude comparecer na reunião desta terça-feira, por motivos de óbito. Efectivamente, o meu falecimento ocorreu entre a assinatura deste bilhete e o início marcado para a reunião, facto pelo qual se tornou extremamente difícil estar presente. Lamento desde já o incómodo, seguro, contudo, de que da minha ausência na presente assembleia não resulta a inviabilidade de efectivar o quórum da convocatória, reunida que estará a maioria de dois terços para deliberar. De resto, prometo procurar tentar evitar voltar a prejudicar-me em termos destarte prolongados, ao ponto de, nomeadamente, tornar inviável a minha comparência em reuniões ulteriores.
Aproveito igualmente para alertar para o facto de o átrio do prédio cheirar constantemente a lixo.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com votos de elevada estima e distinta consideração, colocando-me à disposição para quaisquer dúvidas e esclarecimentos e agradecendo, desde já, a atenção ora dispensada.
Com os melhores cumprimentos,
Teixeira Sunshine»