Hoje, para me certificar de que não voltaria a acordar antes do despertador, adiantei o despertador para as quatro e meia da manhã. Às quatro e meia da manhã, como previra, acordei com o despertador, mas não consegui voltar a adormecer depois de o despertador ter tocado. Levantei-me da cama às sete, sete e cogumelos, enfiei os pés nas babuchas e arrastei-me até à cozinha: nada no frigorífico. Tenho de me lembrar de comprar um frigorífico.
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Hoje aconteceu-me uma coisa inexplicável. Do nada, deu-me um apetite. Não que me tenha alarmado, só confesso que estranhei. Olhei-me ao espelho, examinei a cara, as mãos, os pólipos nas clavículas, os sulcos dos metatarsos cravados na tijoleira… Bem, devia ser outra coisa qualquer. Mas, segundos depois, lá estava ele, o apetite. Não exactamente uma larica, mas uma espécie de ratinho no estômago: quanto mais nele pensava, mais ele me roía a barriga. Quis telefonar ao H., ele saberia tranquilizar-me com uma explicação lógica para o meu súbito desfastio. O problema, vim a descobrir, era que ninguém tinha um nome só com uma letra, muito menos a letra H, o que dificultou grandemente a minha tarefa. A fome acabou por desaparecer depois de comer umas nozes, mas ainda não estou convencido de que os eventos estejam relacionados.
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Hoje, eram exactamente cinquenta para as seis da tarde, desci para comprar leite, pão e um tapete de Arraiolos. Encontrei a mercearia fechada. Era domingo, e além disso o prédio da mercearia tinha sido demolido há dois anos. Por sorte ainda apanhei aberta uma casa de apostas com fabrico próprio. O senhor ao balcão, de uma simpatia extrema, informou-me: por fecharem aos sábados, aos domingos já só vendiam brochuras – mate, acetinadas, com fios-de-ovos, em offset –, mas que não era agora para eu lhe ficar ali estacado a babar a montra com o meu ar de caralho irresoluto, que a cozinha estava a fechar. Retribuí a gentileza e pedi uma brochura para levar, mais uma sandes de filete e uma cola. O filete era seco, ainda que o polme me tenha surpreendido pela positiva em termos de tempero; as brochuras não eram memoráveis; a cola era refrescante.
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Hoje pus-me a pensar no meu bairro, e no quanto isto tudo mudou. Aqui em frente costumava ser o hotel de quatro estrelas da minha infância, com longas filas de furgonetas metalizadas de vidros foscos estacionadas à porta e uma esplanada aquecida a gás propano, onde achávamos piada a que nunca nos deixassem sentar. Agora é mais um amontoado de casinhas caiadas, mal iluminadas, habitadas por gente inqualificável que aqui vai ficando de uma geração para a outra. No antigo quarteirão dos museus interactivos, que atravessámos só para observar os rituais de acasalamento dos bandos sazonais de turistas e escutar o estridular dos seus telemóveis, ergue-se agora um monocromático parque de pinheiros-mansos a perder de vista, com um lago e um salgueiro no meio – enormes, eufóricos, para inglês ver. Na varanda de onde admirávamos os autocarros de caixa aberta, onde passávamos tardes inteiras a inalar às escondidas os escapes dos carrinhos de golfe engalanados de grinaldas de polipropileno, hoje tresanda a carne assada e amaciador barato. O pronto-a-vestir da Zara, o botequim da Starbucks, os artesãos da Athlete’s Foot – extintos, na bravata contra o empreendedorismo. Deram lugar às retrosarias, chapelarias, ourivesarias, sapatarias, drogarias, mercearias, cafetarias, padarias e outros franchises acabados em «ias». O director de comunicação da IKEA perdeu o emprego com a chegada do amolador. O assistente comercial da NOS ganha a vida com a poesia, que é onde está o dinheiro. O ardina dos flyers da happy hour agora usa-os para enrolar castanhas. E umas atrás das outras desaparecem as lojas de recuerdos onde a minha avó se abastecia de camisolas da selecção. Cadê o 28 no globo de neve, a Amália sardinha, o saca-rolhas do Pessoa?
Valha-nos Moscavide, a nossa galinha dos ovos de ouro, última mina activa do El Dorado de outros tempos.
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Hoje lembrei-me de tirar do frigorífico os restos da brochura que tinha guardado num taparuere. Depois lembrei-me de que não tinha frigorífico, e de que o taparuere continha empadão. Nisto passaram-se umas boas quatro, cinco horas. Nos dez minutos que me restavam até serem horas da caminha, engomei camisas para a semana, dobrei o empadão e lavei a louça. Já era de madrugada quando fui dar com a brochura na mesa da sala. O título, em letras cursivas vermelhas sobre fundo mostarda, anunciava:
RUIBARBO E CIDADANIA: AS «NOVAS» JOINT-VENTURES
Não estava à espera de um título daqueles numa brochura. Um prospecto ou um folheto seriam suportes mais indicados para a impressão de conteúdos relacionados com questões fracturantes. Ainda assim, continuei a ler:
O ruibarbo é um legume ou um fruto? O emprego pouco qualificado das camadas mais jovens é fruto de políticas neoliberais ou legume de políticas neoliberais? Serão as camadas mais jovens as camadas mais jovens, ou haverá camadas mais jovens do que as camadas mais jovens? E quantas camadas mais jovens haverá? Mais de duas? Menos de uma? Quando alguém nasce, nasce selvagem?
Venha debater estas e outras problemáticas na partida de badmínton que se realizará na sala de condomínio do edifí
O resto da brochura, tinha-a comido no aniversário da Luísa – que, de resto, não me responde às mensagens desde esse dia. Admito que ter levado as minhas próprias provisões para a festa possa ter parecido um gesto indelicado, mas nada justifica os olhares de reprovação dos convidados, especialmente após ter-lhes detalhado os benefícios de uma dieta FODMAP rica em celulose para uma pessoa que, hipoteticamente, sofre da síndrome do intestino irritável. Não sou maluco nenhum, sei perfeitamente que as fezes acabam por constituir um assunto inconveniente no decurso de uma conversa, mas também sei que se mais pessoas tivessem o gosto e o hábito de examinar a consistência, a cor e o odor dos seus excrementos após cada dejecção, menos guerras eclodiriam no mundo.
O que me lembra que, a julgar pelas palavras indecorosas que me dirigiu e pela súbita efusão muscular que os seus amigos sentiram necessidade de conter, o namorado da Luísa não deve ter gostado nada da prenda que lhe levei. Se calhar já tinham um baloiço daqueles, e eu de facto não guardei o talão.
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Hoje, eram sete e um quarto da manhã em Bucareste, tocaram-me à porta em Lisboa. Fui à varanda e olhei lá para baixo. Era o namorado da Luísa.
– Abre a porta, ó palhaço!
– Quem é?
– Abre a porta se queres ver.
– Se quero ver o quê?
– Olha o caralho, abre a porta para a gente ter uma conversa.
Ainda não tinha tomado o pequeno-almoço, por isso disse-lhe:
– Ainda não tomei o pequeno-almoço.
– …
– Mas sobe, sobe.
Intrigou-me tal ímpeto discursivo num homem a quem nunca tinha detectado inclinação para a oratória. Podia ser que me enganasse e que estivesse na presença de um herdeiro de Fidel Castro, Oscar Wilde, Oprah Winfrey; e, contudo, ele tinha uns New Balance calçados. Em qualquer caso, que temas quereria discutir? Às sete e um quarto GMT+2 da manhã, o que seria tão premente que não pudesse esperar pelas sete e meia, ou mesmo pela segunda-feira às cinco e quarenta e cinco, altura em que ele, como fazia todas as segundas-feiras às cinco e quarenta e cinco, passaria à frente do escritório a ronronar numa motocicleta de cilindrada seguramente superior a 50 centímetros cúbicos, para levar a Luísa a casa? Subitamente, passou-me pela cabeça que o motivo da visita pudesse estar relacionado com o episódio do
– Vou-te arrebentar a boca, ó palhaço.
Espreitei pelo óculo da porta.
– Carregas explosivos de acção circunscrita? Deixa-me ver os teus bolsos.
– Abre o caralho da porta, puta da tua mãe.
– Não vou abrir a porta se não me deres a garantia de que não pretendes de facto fazer o que dizes que vais fazer.
– …
– Esvazia os bolsos.
– …
– Isso é algum tipo de engenho pirotécnico? Sabes que o meu primo Romualdo ficou sem polegar nas festividades em honra de
– Amigo, abre lá a porta. Vamos falar.
Não tenho o hábito de confiar em quem me chama Amigo, além de que toda a vida suspeitei de quem manifestasse a intenção de me arrebentar a boca, mas tratava-se afinal do namorado da Luísa, e a Luísa nunca escolheria para companheiro um sujeito violento. Gosto muito da Luísa, devo-lhe uma conversa franca com a sua cara-metade. Ela certamente admiraria o gesto. Acima de tudo está a nossa relação, que é uma forte relação no plano da cordialidade, independentemente de a Luísa ser tão bonita, porque isso não tem nada a ver. E é evidente que o namorado dela está a par destes sentimentos, razão pela qual me considera seu Amigo.
– Meu caro, acabámos por perder algum tempo nestas altercações, nisto são cinco e vinte da manhã e está na minha hora de ir à casa de banho. Vais ter de me desculpar. Mas vai entrando, o trinco está lasso, basta dares um encosto.
Fechei-me na casa de banho ao mesmo tempo que o namorado da Luísa investia noventa quilos de búzio na porta e se estatelava no chão. Perguntei-lhe da sanita:
– Estás bem?
– Hã?
– Eu disse-te que o trinco estava lasso.
– Não estava à espera que abrisse assim.
– Pois, eu disse-te que o trinco estava lasso.
– Já vi.
– Bastava dares um encosto.
*
Hoje recebi uma chamada de um número desconhecido. E isso só poderia querer dizer uma de duas coisas: ou era a minha avó, ou não era a minha avó.
Atendi:
– Está lá?
– Estou, sim, muito boa tarde?
– Boa tarde.
– Tenho o prazer de estar a telefonar para o dispositivo de recepção de telecomunicações móveis do senhor… Rui Teixeira?
– É o próprio.
– Fala-lhe Nélson Oliveira, da parte do MEO.
– Boa tarde.
– Boa tarde, senhor Rui. Estamos a contactá-lo no sentido de lhe perguntar se porventura já usufrui de um serviço de televisão, internet e telefone em sua casa.
– Boa tarde.
– Muito boa tarde, está a ouvir-me?
– Viva, como está.
– Bem, obrigado. Permita-me perguntar-lhe qual o serviço de telecomunicações de que usufrui em sua casa, se me permite a pergunta.
– Usufruir de serviços?
– Sim, se tem usufruto de serviços em sua…
– Está lá?
– Sim?
– Possuo usufruir de serviços de telecomunicações em minha casa, sim.
– Admite, portanto, possuir usufruto de serviços de telecomunicações na sua habitação, se me permite a pergunta.
– Está lá?
– Estou, sim?
– Em minha casa possuo adquirir serventia de serviços contratualizados, sim.
– Muito bem. E está satisfeito com o nível do…
– Diga?
– Se o senhor Rui Teixeira está satisfeito com…
– Diga, diga.
– Estou?
– Está.
– Pergunto-lhe se o senhor Rui Teixeira está satisfeito com o nível da serventia de telecomunicações contratualizadas de que desfruta.
– Extremamente.
– Muito bem. Vai desejar algum extra, pão de alho, bebida grande?
– Um extra, por favor.
– Fica em dez euros, o cu e uma fava. Vai desejar troco?
– Está lá?
– São nove da noite.
– …
– Senhor Rui Teixeira, posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
– Sim. Abrace-me, por favor.
– Trata-me por tu, Rui.
– Abraça-me, Luísa.
– Não me chamo Luísa. O meu nome é Nélson Oliveira.
– Abraça-me, Nélson Oliveira.
– Estou a abraçar-te, Rui Teixeira. Envolvo-te com a firmeza de um fórceps, o terror imponderável do grito primordial, o viço bioluminescente do meu ventre inteiro, dos testículos à traqueia. Sentes?
– Oh, meu amor, sinto…
– …
– Não me deixes nunca.
– Eu amo-te, Rui.
– Nélson, meu querido, meu grande amor…
– Vamos desligar?
– Sim…
– Desliga tu…
– Desliga tu primeiro…
– Não, desliga tu.
– Dorme bem.
– Dorme bem.