As didascálias podem ser ditas por um ou dois, ou mesmo três narradores. Ou em alternativa, podem ser ignoradas no momento da montagem da peça, correndo o encenador o risco do espectáculo não ser perceptível.
Ele está deitado. Dorme.
Mas não é noite. Ela entra.
Senta-se na cama. Ao lado dele.
Ela – Temos de falar. Se calhar não é o momento. Mas nem te sei dizer se o momento certo já passou ou se ainda não chegou o momento certo. Mas sinto que temos de falar.
Neste momento ela sente que é o momento certo e faz uma pausa dramática. Após a pausa dramática, olha-o, para ver o efeito dramático da pausa. E nesse momento percebe que ele ainda dorme. Ou que já dorme. Acorda-o.
Aqui a actriz tem espaço para decidir como se acorda um homem que dorme no momento do “temos de falar”.
O actor pode entrar no jogo e atrasar o momento em que decide acordar, obrigando assim a actriz a empenhar-se mais no acto de acordar quem dorme no momento do “temos de falar”.
Ele acorda. A forma como o actor acorda irá variar em função do empenho que ele pôs anteriormente no “não acordar” e no empenho que a actriz aplicou na urgência de o acordar.
Ela – Temos de falar.
Ele – Outra vez?
Ela – Como outra vez?!
Aparentemente ele cometeu uma gaffe. Eles afinal nunca tinham tido juntos o momento do “temos de falar”.
Ou ele se confundiu com uma memória difusa de uma vida anterior, ou, o que será mais plausível, confundiu a namorada com uma anterior.
Ou apenas confundiu a vida com um filme que pensa estar a reviver.
Ele – Acordaste-me… outra vez.
Por momentos a actriz tem de viver o drama interno de aceitar a explicação ou pedir explicações. É uma decisão recorrente na vida da maioria das pessoas. Seguramente na vida da personagem, mas também na vida da actriz, pelo que, também aqui, a actriz, tem o direito de optar. Poderá pedir explicações, iniciando um curto de momento de improviso, a que o actor terá de responder.
A única regra que o dramaturgo impõe é que, acabada esta sub-história, nada do que tenha sido dito comprometa o desenrolar da história escrita e que o mesmo ponto narrativo seja retomado no fim do improviso.
Ele – Era isso que eu queria dizer: acordaste-me outra vez.
Ela – Desculpa, mas temos de falar.
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Há aqui uma multiplicidade de opções quanto à forma como a frase “Mas nós ontem falámos” pode ser dita.
Pode ser puro gozo de uma personagem que gosta de humilhar os outros:
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ou a personagem pode mesmo ser burra e estar convicta do que diz.
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ou pode ser ainda efeito do sono que tantas vezes nos embrutece o raciocínio quando acordamos.
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Foi decisão do dramaturgo escrever a frase no texto, e foi decisão do encenador levá-la à cena, no entanto a decisão última é de quem a diz a frase.
E no teatro é tudo decisão, é tudo a execução de uma escolha.
Compete por isso ao actor a decisão de como vai soar a frase.
Um dramaturgo chato pode ter escrito longas didascálias para explicar a cena, e o encenador pode não resistir a fazer do actor marioneta, mas no fim, quem habita a frase dita é o actor, pelo que a decisão de como a diz é em última análise dele.
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos .
Depois cabe ao público a derradeira decisão do acto artístico: decidir o que quer ouvir no que o dramaturgo, encenador e actor optaram por dizer.
Deve o actor mostrar respeito com espectador no modo como diz a frase. Ela deve ser dita de forma que o público tenha espaço para ouvir ao seu modo. Não é bonito enfiar frases nos ouvidos do espectador como quem espeta dedos nos olhos de gente indefesa.
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ela – Falámos?
Ele – Sim, olha por exemplo, perguntei se querias mais batatas e tu disseste que não. E eu comi-as todas.
Ela – Não é desse falar que estou a falar.
A opção da actriz, na forma como diz esta última deixa, deve estar de acordo com a opção que o actor tomou anteriormente. Pode inclusive acrescentar algo que sublinhe o sentido que quer dar à frase.
Gozo
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ela – Não é desse falar que estou a falar, estúpido.
Ser burro
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ela – Não é desse falar que estou a falar, estúpido.
Ainda a dormir
Ele – A sério? Mas nós ontem falámos.
Ela – Não é desse falar que estou a falar. Acorda.
O livre arbítrio do actor está condicionado ao livre arbítrio dos outros actores e às intenções do dramaturgo e encenador. Não deve o actor confundir liberdade com rebaldaria, senão corre-se o risco de haver demasiadas histórias diferentes a serem contadas.
Ela – Não é desse falar que estou a falar. Isso não importa nada.
Ele – Eu digo-te que gosto de ti e isso não importa?
Ela – Tu perguntaste se eu queria mais batatas!
Ele – Porque as querias comer todas. Mas o teu bem-estar é mais importante para mim do que os meus próprios desejos. Por isso perguntei. Se tu quisesses mais, dava-tas todas. Porque isso é amor.
O mais difícil do trabalho do actor é saber o seu texto mas não ter conhecimento do que vai ser dito. Ele deve realmente ouvir o que é dito como se fosse a primeira vez que o ouve. Essa escuta activa, mais do que dizer correctamente o seu texto, é o que torna um actor num bom actor.
Cada peça de teatro, a menos que seja um clássico já muito visto, é uma nova história que se conta ao público. É obrigação do dramaturgo surpreender o público com as deixas, é obrigação do encenador deixar o tempo de silêncio entre deixas para que o espectador possa ser surpreendido. E para que possa ser surpreendido, o público tem que ter tempo de pensar no que poderá ser respondido pela actriz ao que acabou de ouvir.
Não deve portanto a actriz denunciar em demasia a deixa que vai dar a seguir.
Ela – E se te fosses foder! Essa merda é boa educação, não tem nada a ver com amor.
Ele – Mas se tu dissesses que querias, eu ia-te dar as batatas todas, mesmo eu também querendo comer mais.
Ela – Porque és parvo. Se ambos quiséssemos, partilhávamos. O amor é isso, é partilhar. Abnegação estúpida não ajuda o amor em nada.
Ele – És um bruto.
Pausa. Os actores, percebendo o erro de casting subentendido na fala anterior, trocam de lugar e recomeçam.
Ele – Temos de falar. Se calhar não é o momento. Mas nem te sei dizer se o momento certo já passou ou se ainda não chegou o momento certo. Mas sinto que temos de falar. Temos de falar.
Ela – Outra vez?
Ele – Como outra vez?!
Ela – Acordaste-me… outra vez. Era isso que eu queria dizer: acordaste-me outra vez.
Ele – Desculpa, mas temos de falar.
Ela – A sério? Mas nós ontem falámos .
Ele – Falámos?
Ela – Sim, olha por exemplo, perguntei se querias mais batatas e tu disseste que não. E eu comi-as todas.
Ele – Não é desse falar que estou a falar.
Ela – Eu digo-te que gosto de ti e isso não importa?
Ele – Tu perguntaste se eu queria mais batatas!
Ela – Porque as querias comer todas. Mas o teu bem-estar é mais importante para mim do que os meus próprios desejos. Por isso perguntei. Se quisesses mais, servia-te de todas. Porque isso é amor.
Ele – E se te fosses foder, essa merda é boa educação, não tem nada a ver com amor.
Ela – Mas se tu dissesses que querias, eu ia-te dar as batatas todas, mesmo eu também querendo comer mais.
Ele – Porque és parva. Se ambos quiséssemos, partilhávamos. O amor é isso, é partilhar. Abnegação estúpida não ajuda o amor em nada.
Ela – És um bruto.
O fade out final deve ser suficientemente lento para dar tempo ao espectador para pensar que nada do que viu faz sentido.