Fotografia de João Amaro

Happiness is a warm gun

She’s not a girl who misses much
Do do do do do do, oh yeah

John Lennon

 

O poder da arte e da arquitectura na transformação do homem é fonte de suspeita. Já Platão considerava o actor um pernicioso ilusionista da realidade, máscara da verdade. A desconfiança não é nova, portanto.

Dado o carácter público da arquitectura é necessário encontrarmos um território comum que nos permita conviver quotidianamente com o mau gosto do vizinho da frente (desculpe, Dona Arlete). É a constituição pública da arquitectura que gera o conflito entre o mundo que escolhemos para habitar e a articulação dessas escolhas individuais com a dos outros indivíduos: o conflito entre a “liberdade colectiva” e a “liberdade individual” de Le Corbusier – prevalecendo, para este, o bem colectivo. É este o terreno de geografia de ásperas subjectividades onde a arquitectura se fixa. E a modernidade não veio ajudar. Pensar a arquitectura é também uma reflexão sobre a possibilidade e influência que a paisagem construída exerce sobre nós. E será um exercício cada vez mais urgente por arquitectos, urbanistas, políticos, et al.

Se até ao século XVIII as respostas eram simples de encontrar, essencialmente sistematizadas por Vitrúvio e verificadas por mais de mil anos de utilização, a modernidade rasgou a convenção. A redescoberta, no Renascimento, do cânone clássico, aprofundou o impulso arquitectónico fiel à utilitas, venustas e firmitas, aos ideais abstractos da ordem, simetria, proporção; Palladio e Alberti popularizaram o “gosto” e organizaram-no construtivamente, mas o século XVIII adquiriu novas apetências por narrativas “originais”. O “estilo” passa a questão central da teoria. Gótico, Medieval, Egípcio, Islâmico, Otomano, eclectismo carnavalesco à la carte para resolutamente não se conseguir afirmar o que é “belo”.

A cultura tecnológica e utilitária, a École Polytechnique de Paris, a filosofia dos engenheiros, as possibilidades dos novos materiais, encerram a polémica: o belo é o prático, tornar o prático belo é o “dever” da arquitectura. A beleza reside no “para quê” das coisas e na adequação tecnológica de “como” elas se erguem.

Este momento é crucial para o nosso entendimento do Movimento Moderno e da contemporaneidade: o debate estético é substituído por considerações de ordem prática e utilitária e na persecução de um programa da “verdade tecnológica”. O belo são os quatro degraus aritméticos, a tecnologia a Revelação.

Mas a machine à habiter emperrou. Tanto que o filho do casal Savoye teve de recorrer a um sanatório para debelar uma infecção do peito consequente às infiltrações do plano de nível da cobertura da Villa. Herdeiros das incoerências do modernismo regressamos ao carnaval e à questão que nos deixa sempre sozinhos: o que é o “belo” na arquitectura?

Alain de Botton avança com Ruskin: um edifício, uma casa, não são apenas abrigo, mas uma promessa de felicidade. São “visões de felicidade”. Como outros conservadores menos atreitos à linguagem do Movimento Moderno. Ou pela verificação das funestas consequências verificadas nas cidades e no habitar urbano. Roger Scruton talvez seja o pensador que melhor reagiu – e aqui a reacção é na popular acepção política.

A arquitectura espelha as qualidades humanas, as tonalidades emocionais, numa ‘fenomenologia do espírito’ aplicada ao ambiente construtivo. O belo é o reconhecimento da arquitectura como “transubstanciação dos nossos ideais individuais”.

Mas isto é esperar demasiado da arquitectura. É confundir o belo com os aspectos morais da felicidade, é querer acreditar ainda na capacidade salvífica da arquitectura, é esperar que a arquitectura legitime uma visão de nós mesmos na nossa casa. É, aparentemente, uma coisa simples, tornar a arquitectura ferramenta identitária num mundo que se revolve à velocidade digital. Para além dos aspectos propagandísticos – de um indivíduo ou de uma causa –, é esquecer as dificuldades do processo produtivo da arquitectura, as formas de propriedade e de promoção com que hoje os arquitectos se deparam.

A arquitectura é um esforço colectivo, e é neste cruzamento de vontades que de Botton ou Scruton ou outros nostálgicos se perdem na sua escrita comovedora, quase lírica e impregnada de melancolia redentora.

Crer na indomável capacidade de transformação moral do indivíduo pela arquitectura é esquecer também os patrocínios pouco recomendáveis de muitos dos edifícios que nos emocionam.

E daí, como dizia o Mestre Manuel Vicente, ‘perdoa-se tanta coisa em nome da beleza’.

Relacionados

A Vida de Brian e a JMJ
Cinema e Audiovisual
Pedro Goulão

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num

Ler »
Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade
Filosofia e História
André Canhoto Costa

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Depois de semanas de angústia, se o teu nome constar das listas de admitidos, espera-te a Universidade, templo de sabedoria, ringue de treino cognitivo, incubadora para os teus sonhos. Mas na primeira manhã de glória, no dia da matrícula, talvez te suceda seres vítima de um veterano trajado com gravatinha

Ler »
Viva eu
Artes Visuais
Veronica Stigger

Viva eu

         Quem é eu quando se diz eu na literatura e na arte? Arthur Rimbaud, em carta para seu professor Georges Izambard em 13 de maio de 1871, ofereceu uma resposta célebre ao afirmar: “Eu é um outro” (“Je est un autre”). Nessa frase curta e precisa – de uma

Ler »