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Teatro cósmico #7

O segredo do Bichinho do Teatro

 

“Bichinho do teatro” é uma expressão usada por pessoas que se sentem próximas do teatro e que gostam de fazer ou de ver teatro. Usa-se para nomear o inefável ou explicar o inexplicável, bem como o que carrega alguma estranheza ou especificidade não familiar e que por isso não tem outra palavra para o descrever. Nesse sentido, aproxima-se da ideia de fantasma ou de ser invisível que contém o mistério de Godot ou Horla, figuras míticas da literatura, apetecíveis a leitores detetives que gostam de desvendar segredos. O Bichinho do Teatro é então o fiel representante do casulo do segredo ou da magia da profissão, da ideia de uma inclinação ou propensão para o Teatro, assim com maiúscula.

Apesar da presença da metáfora animal na expressão, o Bichinho do Teatro não é um “animal de palco”, porque, ao contrário de um animal de palco, ninguém é o Bichinho. O Bichinho do Teatro é uma entidade autónoma e independente que vive por aí e que “agarra” as pessoas. Também já escutei relatos de quem afirme ter sido “apanhado” pelo Bichinho do Teatro, habitualmente de modo inesperado, de tal forma que a vida do sujeito surpreendido nunca mais foi a mesma. Há ainda quem confesse que certa coisa terá “despertado” ou “despoletado” em si o Bichinho do Teatro, presumindo-se que o Bichinho já o habitava, mas que estaria adormecido. É por isso que certas pessoas afirmam ter nascido com o Bichinho do Teatro. Isto não significa que nasçam a fazer Teatro, mas sim que, mais cedo ou mais tarde, tal terá de acontecer, ou seja, que herdaram (geneticamente?) o Bichinho e que, com o tempo, ele foi crescendo dentro delas. Esta possibilidade de desenvolvimento ou evolução do Bichinho dentro de um corpo sustenta o pensamento de quem afirma que se pode “criar” ou “cultivar” o Bichinho. Na utilização concomitante destes dois verbos, nota-se a possibilidade de um Bichinho poder ser animal ou planta, uma revolução taxonómica que mereceria por si só um outro capítulo…

Já quem não nasce com o Bichinho, para além de poder ser “mordido” ou “picado” ou “agarrado”, como vimos, também pode vir a “encontrar” o Bichinho do Teatro, dependendo depois de cada um se o deixa ou não “entrar”, embora não se encontrem registos de quem se tenha com ele encontrado recusando-lhe depois o ingresso, talvez por o Bichinho, como um gatinho, ser irresistível (e o diminutivo desempenha por certo o seu papel).

É interessante notar que o Bichinho do Teatro só se torna relevante ou significativo, quando em contacto com o corpo de uma pessoa. Sabe-se que o Bichinho existe fora das pessoas (é por isso que o podemos encontrar, é por isso que morde), mas só começa a fazer coisas depois de encontrar um hospedeiro. O corpo humano é fundamental para a existência do Bichinho do Teatro, se entendermos existência enquanto “agência” ou “fazer”, e o Bichinho é fundamental para a existência da pessoa enquanto fazedora de teatro. Podemos por isso falar desta relação entre Bichinho do Teatro e pessoa como uma relação de tipo simbiótico, em que a existência de ambos depende da interação. Se assim o considerarmos, poderíamos pensar em qual das simbioses: mutualismo (benefício para ambas as espécies), comensalismo (um dos membros retira vantagens enquanto o outro não é nem beneficiado nem prejudicado) ou parasitismo (o parasita prejudica o hospedeiro). Delego o pensamento e as respostas em quem me lê.

Pelos relatos que escutei e que aqui reproduzi não precisarei de convencer ninguém de que o Bichinho do Teatro é evidentemente uma metáfora. Sem patas, pêlo, caule ou flor, serve sentimentos e considerações que não se podem reduzir a qualquer outra palavra, imagem ou corpo. É uma metáfora que indica um amor genérico pelo teatro, sendo o amor coisa sobre a qual nada se pode dizer que o encerre e conclua. Este amor revela-se num desejo, necessidade ou até impulso em fazer Teatro. Quem é mordido pelo Bichinho do Teatro não consegue deixar de fazer Teatro. O Bichinho funciona como uma força magnética que possui os corpos e que os empurra para o Teatro e é impossível explicar ou descrever o Bichinho a outras pessoas. Só quem o tem sabe o que é e mesmo essas pessoas afirmam que sentem o Bichinho, que sabem que o têm mas que, no fundo, no fundo, não sabem o que é. A impossibilidade de o descrever e definir fá-lo escapar a qualquer grelha de conhecimento.

Para isso é indispensável o facto de o Bichinho se manter invisível, um segredo. O Bichinho está por baixo da carne humana, dentro dela, escondido no interior de um corpo que faz teatro. Considera-se muitas vezes o nosso interior como a nossa essência, o que é exclusivamente nosso, mas, neste caso, tratando-se do Bichinho, parece entender-se esta essência como também universal, porque o Bichinho, embora revelando-se de modos diferentes na sua relação simbiótica com cada corpo, é também uma entidade universal: o Teatro. É por isso que supostamente, e para os crentes, todas as pessoas que fazem Teatro têm o Bichinho dentro delas, ainda que a sua manifestação seja depois distinta para cada indivíduo. Isto justificaria o facto de haver muitos teatros que são todos eles Teatro.

Para quem não esteja muito familiarizado com a expressão, importa notar que ela é entendida como caracterizando algo positivo e que é valorizado porque o Teatro, em geral e na sua essência, é entendido como coisa boa. É assim que muitas das pessoas do Teatro justificam a justiça de serem financiadas para fazer Teatro, para existir (porque existir é fazer). O Teatro é uma coisa boa e por ser boa o Bichinho do Teatro deve ser alimentado. Se o Teatro e o Bichinho do Teatro são coisas boas, então quem tem o Bichinho também é bom. O Bichinho faz as pessoas boas e as pessoas boas merecem ser pagas para ser boas e praticar o bem. É por isso que quem tem o Bichinho do Teatro não tem vergonha em o admitir, tem aliás orgulho nesse facto e olha para ele como um superpoder que o coloca do lado dos bons. 

Este fantasma animal e vegetal e abstrato tem-me assombrado desde que comecei a trabalhar na área do Teatro e a estudar Teatro. Nunca senti o Bichinho do Teatro nem me lembro de ter sido picado ou apanhado por ele e, portanto, tanto quanto sei (e isto significa que não sei), não o tenho dentro de mim, o que me poderia colocar em desvantagem quando tento escrever sobre ele. No entanto, e como vimos, quem o tem pouco consegue dizer sobre ele, pelo que me parece que partimos com desvantagens parecidas que nos levam a lugares idênticos.

Apesar disso, ou talvez por esse motivo, fiz em tempos (2016) um espetáculo com os meus camaradas do Teatro Praga em que dávamos corpo ao Bichinho do Teatro. O espetáculo chamava-se Zululuzu e, em determinado momento, entrava um corpo coberto por um fato preto peludo que o cobria por completo. Era um Bichinho do Teatro que andava ereto sobre duas patas e que surgia na penumbra acompanhado pelo som de um acorde misterioso. Foi o modo que encontrámos, com os recursos que tínhamos, de representar uma coisa que nunca ninguém viu. Decidimos dar visibilidade e corpo ao segredo. O interior virou exterior, o que é suposto estar por baixo, escondido ou obscurecido, apenas acessível a quem o possui (e por isso privado), tornou-se público e exposto.

A representação figurativa do animal por um corpo humano afirmava a nossa convicção de que não há segredos no Teatro, não há nada que seja apenas acessível a alguns (aos mordidos, apanhados, encontrados e eleitos). A representação do Bichinho que pica, agarra e nos empurra para o Teatro apenas existe porque é animada pelo corpo de uma pessoa. Alguém vestiu o figurino do Bichinho do Teatro. O Bichinho continua a precisar de um corpo dentro dele para poder existir (simbiose), mas a invisibilidade é a do corpo e não do Bichinho. O fantasma é o corpo humano e não a personagem. Não há interioridade porque o Bichinho é a pessoa que o veste.

Ao representarmos o Bichinho do Teatro estamos a desfazer a sua identidade que assenta na invisibilidade, no mistério e no segredo. Desfazer é muito semelhante ao momento em que as luzes da discoteca se acendem no final da noite ou as da plateia no final do espetáculo e em que podemos ver os figurinos com uma outra luz e a atriz despe parte do fato que lhe tapava a cara enquanto aplaudimos ou vaiamos. Acabou-se a magia, o segredo foi revelado, ou melhor, desfeito: não há personagem, não há Bichinho do Teatro. Desfazer o Bichinho do Teatro implica recusar a sua universalidade e assim também uma ideia universal do bem e do mal. Não há Teatro, diz o Bichinho do Teatro, porque a atriz, o corpo por baixo do fato, é o Bichinho do Teatro.

Este gesto pretende ser uma partilha, não por se tratar de um ato de generosidade (o Teatro não é bom nem mau), mas porque, ao expor o truque, desfazemos o Segredo e ao desfazer o Segredo, como escreve p. feijó em “The Architecture of a Secret: An Inquisitorial Machine in the Works”, “aprendemos a partilhar [os segredos] e a sua não-existência”. Quando leio não-existência prevejo uma existência, não excluo. Não há morte ou vida mas morte e vida. Não há hospedeiro e hospedado mas visitantes do nada. A relação simbiótica (mutualismo, comensalismo, parasitismo?) estabelece-se por isso entre um corpo humano e uma não-existência que não recusa palavras, que não é inefável nem inexplicável nem essencial, mas que está em movimento e é feita, neste caso, por quem assume a responsabilidade de a desfazer, expondo-se e assim substituindo o plural pelo singular, o universal pelo circunstancial e a maiúscula pela minúscula.

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