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Isto anda tudo ligado #2

O que é um fascista?

Antes de se converter em acções, a política nasce em palavras. Em política, as palavras contam, porque é essa a matéria de que se fazem as ideias, mas também porque o que se diz estabelece os limites do que se pensa e, em certa medida, do que se pode fazer. Não é por acaso que desde sempre o poder passou pelo controlo do que é dito.

Em tempos antigos, a escrita era sinónimo de poder. Capturar conceitos e ideias, difundir informações e construir narrativas eram acções do domínio de muito poucos. Hoje, as redes sociais e a profusão de plataformas existentes para comunicar e partilhar opiniões dão a ilusão de uma democraticidade sem precedentes. Mesmo que muito poucos nos oiçam, temos a pretensão de nos dirigir a todos. É como se cada um de nós pudesse ter um palco. Não sabemos quem está realmente na assistência a ouvir-nos, mas as ferramentas tecnológicas de que dispomos dão-nos a capacidade de tentar projectar o nosso pensamento para um espaço virtual que pode, no limite, ser global.

Não será talvez por isso de estranhar que estejamos no meio de uma guerra sobre a forma como falamos. As palavras estão em disputa, porque há uma noção do seu impacto político e social, mas também precisamente pela forma como, em teoria, qualquer um as pode usar e difundir com efeitos imprevisíveis.

Uma luta que acontece nas bibliotecas das escolas

Como em todas as guerras, há grupos organizados para lutar de cada lado das barricadas. O The New York Times tem acompanhado uma das facções envolvidas nestas lutas: a dos grupos de pressão que se estão a constituir nos Estados Unidos para banir alguns livros das bibliotecas escolares. Não são, nota o jornal, livros quaisquer: são quase sempre obras “de e sobre” pessoas negras e LGBTQI.

This book is gay é uma das obras que mais vezes aparece nas listas de livros que estes grupos de pais querem banir das escolas dos seus filhos. Basta atentar no título para perceber porquê. Os autointitulados “defensores da inocência das crianças” não querem os jovens a ler textos que façam a defesa de teorias críticas da raça ou que “normalizem estilos de vida que são escolhas sexuais” (nas palavras de Keith Flaugh, um dos fundadores da Florida Citizens Alliance).

Ouvimos nos porta-vozes destes grupos de pressão o eco da discussão que, em Portugal, se levantou em torno dos pais de Famalicão que recusavam que os filhos frequentassem a disciplina de Cidadania Cívica, apesar de isso lhes poder custar o chumbo numa cadeira obrigatória e uma longa luta nos tribunais.

Queremos os pais a decidirem aquilo a que as crianças têm acesso em vez de termos escolas do Estado a endoutrinar os nossos filhos.” É Keith Flaugh quem o diz ao The New York Times e a razão pela qual isto nos parece familiar é porque está a crescer uma corrente de pensamento que põe em causa a ideia de um Estado que partilha valores – até há bem pouco tempo considerados consensuais na maioria das democracias ocidentais –, em troca de uma suposta liberdade individual, que, sendo defendida em nome de uma moral profundamente conservadora, muitas vezes se apresenta como libertária, porque visa romper com uma mundivisão liberal que tem sido mais ou menos dominante nas últimas décadas no mundo ocidental.

Inventar palavras para ganhar espaço no mundo

Não são só, claro, os ultraconservadores que estão nesta disputa pelo que pode ser dito. À esquerda, multiplicam-se as correntes identitárias que fazem da linguagem o centro das suas guerras políticas. Muitas afastam-se da clássica resposta marxista da luta de classes, preferindo ver o mundo através das lentes das chamadas “identidades” e da sua defesa.

Um dos campos dessa batalha é a língua. Para representar cada uma das identidades – e talvez haja tantas quantos seres humanos no mundo –, constroem-se novas palavras: demissexual, sapiossexual, cisgénero, intersexual. São palavras novas que ajudam a colar etiquetas a realidades que sempre existiram, mas que ganham assim uma visibilidade que lhes dá validação política.

Entram nesta guerra as batalhas em torno dos pronomes e a defesa de uma linguagem neutra, mesmo em línguas em que essa neutralidade não existe gramaticalmente. Propõe-se o “todes” para que lá caibam todos, numa novilíngua que se quer inclusiva, mas que resulta tão artificial como caricatural.

Curiosamente, estão também nessa luta aqueles que se apropriam de palavras que eram historicamente pejorativas para as resgatar como afirmação de identidade. O “queer”, que era insulto, passa a bandeira. O “nigger” era uma palavra tão racista que a certa altura se tornou indizível e passou a “the n word”, mas hoje ressurge muitas vezes nas bocas daqueles que pretendia humilhar como se a sua apropriação fosse em si mesmo uma forma de vitória simbólica sobre o racismo.

De um ou de outro lado da guerra pelo controlo das palavras, ultraconservadores e progressistas Woke parecem partir da noção de Ludwig Wittgenstein: “Os limites da minha linguagem são os limites do mundo”.

Como podemos pensar aquilo que não podemos dizer? E se não o podemos pensar, como podemos agir? A política não existe sem ideias que a estruturem e se convertam depois em linhas de acção.

“Fascismo” e “feminismo” como palavras malditas

Mas e se o que pensamos não puder ser dito? Há marcas históricas que algumas palavras e ideias carregam que as tornam difíceis de assimilar e difundir. É notório o desconforto da extrema-direita em apresentar-se enquanto tal. E isso não acontece por acaso. Há um rasto de vítimas que tornam o próprio uso desse espaço político pouco confortável, mesmo para quem encontra nele muitas das ideias que defende.

Em Junho de 2021, fui numa reportagem para a revista SÁBADO à sede do Chega em Lisboa para conhecer as três mulheres que tinham acabado de chegar à direcção do partido de André Ventura. Curiosamente, a conversa andou quase sempre à volta de conceitos.

Nenhuma das três se sentia confortável com a noção de feminismo, que entendiam como a defesa de uma superioridade das mulheres sobre os homens. “A defesa dos direitos das mulheres não faz de nós feministas no sentido de nos querermos afirmar contra os homens”, dizia então a mais nova de todas, Rita Matias.

Para as dirigentes do Chega, a luta pela despenalização da interrupção voluntária da gravidez não corresponde à defesa de direitos das mulheres. E a mera presença de figuras femininas de destaque em partidos como o Vox – que em Espanha tem votado contra leis de combate à violência de género – é para estas dirigentes do Chega suficiente para afastar sombras de machismo.

Mais surpreendente, porém, terá sido a forma como uma destas mulheres, Marta Trindade, falou com candura acerca do seu desconhecimento sobre o fascismo. À data da entrevista, tinha 41 anos e uma vida toda feita no Barreiro, mas mesmo assim assegurava não saber o que era um fascista.

“Eu sou de Artes. Em cultura política estou ao nível do cidadão comum. Quando me começaram a chamar fascista, tive de ir ler sobre o fascismo. E, de facto, não me parece que seja uma coisa boa de voltar”, disse, então, à SÁBADO.

Vale a pena determo-nos sobre esta afirmação, porque a noção de “fascismo” está também ela em acesa disputa. E não faltam debates sobre se podemos ou não chamar “fascista” a alguns dos intervenientes na ala mais extremada da direita política actualmente em acção.

O regresso do “Deus, pátria e família” é fascista?

Quando Giorgia Meloni chegou ao poder em Itália, em Setembro de 2022, José Miguel Júdice usou o seu espaço de comentário semanal na SIC para tranquilizar os que se assustavam com o triunfo de uma política que na juventude era admiradora confessa do próprio pai do fascismo, Benito Mussolini, tendo estado nas fileiras da Frente da Juventude, uma organização do antigo Movimento Social Italiano (MSI), partido neofascista fundado em 1946 por seguidores do falecido ditador. “Não vem aí o fascismo ao virar da esquina”, proclamou o comentador.

Palavras como as de Júdice não tranquilizaram todas as mentes. Antonio Scurati, escritor italiano e biógrafo de Mussolini, não deixou passar ao lado o facto de Meloni ter resgatado para a campanha o slogan do fascismo, “Deus, pátria e família”, enunciado nesta forma e ordem, a meio de um debate eleitoral. “E não foi por distracção. Foi com orgulho”, escreveu Scurati num artigo para a edição de Outubro de 2022 da revista Piauí.

Para Antonio Scurati, Giorgia Meloni representa “o triunfo da direita pós-fascista em Itália”. E o prefixo “pós” assegura a actualização do conceito sem deixar cair o “prepotente e descarado valor reaccionário” de uma proposta política que defende o regresso aos valores conservadores de “Deus, pátria e família”.

Não é difícil entender que a defesa desta tríade conservadora, por si só, não comporta necessariamente a repressão violenta que associamos ao fascismo histórico. Muitos conservadores defensores da democracia liberal revêem-se na defesa da religião (embora seja problemática a ideia de a fazer através do Estado), de uma certa dose de patriotismo nacionalista e da família como célula social primordial.

O problema das propostas da extrema-direita – e nas quais os conservadores moderados nunca se poderão rever – é a forma como este enunciado de “prepotente e descarado valor reaccionário” pretende restringir ou anular os direitos conquistados pelos grupos de classe, etnia ou identidade de género que não se encaixam neste normativo. Será que aí já será lícito falar de “neofascismo”? Ou teremos de esperar para ver os métodos que utilizarão os defensores destas ideias uma vez chegados ao poder?

Olhar para o Brasil como uma bola de cristal

Chamamos ao Brasil “o país do futuro”, pelo que talvez valha a pena olhar para esse lado do Atlântico como quem vê uma bola de cristal.

No dia 8 de Janeiro de 2023, uma multidão de apoiantes de Jair Bolsonaro, o candidato derrotado à Presidência, invadiu as sedes dos Três Poderes, em Brasília. A invasão tinha uma enorme carga simbólica, porque representou a vandalização dos locais onde funcionam os pilares do sistema democrático brasileiro: o Congresso Nacional, sede do poder legislativo, o Palácio do Planalto, sede do poder executivo, e o plenário do Supremo Tribunal Federal, sede do poder judicial.

A invasão ocorreu uma semana depois da tomada de posse do Presidente eleito Lula da Silva, pelo que os primeiros comentadores ficaram presos à ideia de que, ao contrário do que aconteceu a 6 de Janeiro de 2022 com a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, não havia uma tentativa de usurpar o poder.

A análise feita por vários órgãos de comunicação social às mensagens que circularam pelas redes sociais antes da invasão apresenta uma história um pouco diferente, que aponta para uma tentativa de golpe de Estado.

A informação que estava no WhatsApp dos manifestantes que invadiram as sedes do poder em Brasília era a de que uma ocupação destes espaços por pelo menos 72 horas obrigaria o exército a intervir e a tomar o poder. Era uma informação falsa, mas que foi tomada como verdadeira por quem participou na invasão.

Com a praça dos Três Poderes ainda ocupada por manifestantes que transmitiam em directo nas redes sociais a destruição de símbolos, obras de arte e todo o tipo de material e documentos que encontraram pela frente, Lula falou às televisões para lhes chamar “fascistas”.

Nas televisões portuguesas, multiplicaram-se os comentadores que se arrepiaram com a utilização do termo “fascista”. Muitos insistiam que se tratava apenas de “manifestantes” e que alguns deles nem saberiam bem ao que iam, tendo sido empurrados por uma enxurrada de desinformação que os manipulara para chegarem a Brasília.

O Presidente brasileiro viu fascismo no desrespeito pela democracia, no ataque concertado a símbolos democráticos, nas acções violentas de vandalismo com propósitos intimidatórios e nesta tentativa (mesmo que tosca e falhada) de golpe de Estado. Terá ido longe demais ao chamar “fascista” a quem assim tentou subverter os resultados eleitorais obtidos nas urnas?

Ou, como defenderam muitos comentadores na noite dos acontecimentos, fará diferença chamar “fascista” a quem assim se comporta? Será o uso desta palavra que os afastará irremediavelmente do resto da sociedade? Será esse o insulto que cortará o último laço, impedindo que se regenere pelo diálogo quem assim se comporta? As palavras contam. Mas talvez não tanto.

Não são novas as acesas disputas académicas em torno do que é ou foi o fascismo. Em relação a Portugal, por exemplo, são vários os académicos que recusam a ideia de um “salazarismo fascista”, notando as nuances nacionais do corporativismo ideológico que afastam a ideologia do Estado Novo de outras experiências totalitárias na Europa do século XX.

É fácil às esquerdas atirar um “fascista” em jeito de insulto a quem está na barricada ideológica oposta. Mas, para lá do folclore e do excesso de linguagem usado em discussões inflamadas, há uma ideia clara do que é o fascismo: uma ideologia ultranacionalista, reacionária, que pode chegar ao poder por vias democráticas, mas que o mantém pela força e pela repressão, na defesa de um modelo político onde não há margem para a liberdade política, económica ou religiosa, e onde todas as vias são usadas para manter uma hierarquia social rígida, vista como sendo a que melhor defende os interesses da nação.

Se olharmos para este conceito como se olha para uma receita culinária, vemos que muitos dos projectos da extrema-direita actual têm alguns destes ingredientes. Mas o bolo ainda não está pronto, porque subsistem instituições democráticas (seja à escala nacional ou até europeia) que têm impedido que toda esta massa que já fermenta se transforme em tudo o que almeja ser.

Costuma dizer-se que “a melhor prova do pudim é comê-lo”. Será essencial chegar a esse ponto para perceber o que já se cozinha sob os nossos olhos?

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