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Wittgenstein em Alcochette

Não é raro o uso de alegorias fantasiosas para dar inteligibilidade a certos hábitos linguísticos; a origem da perturbação desses hábitos não se explica de outro modo.

Nada me autoriza a reclamar a verdade desta proposição; sei que é verdadeira porque aprendi assim. Eis ali o homem com desgosto de amor agravado pela propensão alcoólica: passa as noites nos bares, cotovelos fincados no balcão, a beber e a lastimar-se até o expulsarem; entra no táxi, a custo; uma voz saída do escuro pergunta-lhe se está bem, em resposta tartamudeia: “perfeitamente! doem-me é os cotovelos”. A pergunta viera, é claro, do taxista, que pode ter sido ou não ter sido fisioterapeuta; mas, com assinalável prontidão de espírito, logo ali associou a dor ao balcão do bar, e nesse instante decifrou o sentido da expressão dor de cotovelo. A Vénus de Milo, segundo a lição do grande José Sesinando, é que não se deixou impressionar, alegando não ter mãos a medir com outros idiotismos. Paciência.

Até aqui, o prólogo. Daqui para a frente, o assunto de fundo: nada menos que a origem da deformação das regras de bem expedir o desejo universal de bom dia. Durante muito tempo, os portugueses que acediam a algum espaço circunscrito e nele encontravam pessoas, desejavam-lhes bom dia dizendo: “Bom dia”. As mesmas  pessoas respondiam com as mesmas palavras; salvo se o sujeito mostrasse não se dar conta das horas, caso em que a resposta vinha animada de impulso correctivo: “Bom dia, não! boa tarde, que já passa das duas”. Desagradável, decerto; mas isto mesmo torna claro que, embora todos tivessem noção de que ninguém desejava nada a ninguém, o milagre do desejo de bom dia assim expresso consistia precisamente em tornar essa noção irrelevante. A excepção talvez fossem os elevadores: quem neles entrava, se desejasse bom dia aos circunstantes, raro obtinha resposta, e corria até o risco de receber um olhar recriminador que, posto em linguagem, significava: “seu palerma, agora distraiu-me da contagem dos andares”. Entretanto, como poucos usavam os elevadores, a harmonia era satisfatória.

E assim perdurou por muito tempo. Mesmo muito. Até que se deu o evento disruptivo: certo sujeito passou a saudar os amigos que encontrava em grupo no café que frequentava com a insólita frase “bom dia a todos menos a um”. De começo, as mentes rarefeitas presumiram que se zangara com alguém ali presente; já os que se supunham perspicazes acarinharam a crença de que era mero gracejo que inventara num golpe de sorte e repetia onde quer que fosse, embora atribuindo a invenção a um actor de teatro amador que conhecera em Santarém. (O mesmo mecanismo, portanto, da dor de cotovelo, mas sem desgosto de amor nem alcoolismo.) O raciocínio deste segundo grupo desenrolava-se do seguinte modo, segundo testemunho de um sobrevivente: quem chega, ao desejar bom dia, cumpre um imperativo de boa educação, a saber, saudar quem está; ora, “quem está” é por definição universal, não admite excepções; ainda que o fulano estivesse em maus termos com algum dos presentes, obrigava-se a incluí-lo na saudação; e se não o incluísse mentalmente, o efeito da convenção é incancelável. Daí a única inferência possível: só podia ser graçola. Parecia simples. Mas o disruptor é que continuava a dizer “bom dia a todos menos a um”. A convicção de alguns foi-se diluindo na maçada da repetição, e o problema ressurgiu. Um dos intelectuais do grupo, que já então lia Derrida em inglês, observou que se tratava de “um bom dia em diferença: diferenciava-se do desejo de bom dia sem deixar de ser um desejo de bom dia”. Chama-se iterabilidade, acrescentava em tom concludente. Outro membro do grupo, com formação jurídica incompletamente adquirida na Universidade de Coimbra, convenceu os restantes — incluindo o desconstrucionista — de que subtilezas não apaziguam inquietações: cumpria estabelecer um acórdão! Designado relator, logo ali rascunhou o esqueleto da coisa: a) “todos” é toda a gente, todas as pessoas, todo o mundo, o mundo inteiro, até Deus e o mundo; b) os presentes a quem é endereçado o bom dia, sendo em regra social e linguisticamente competentes, assumem esse significado instituído a um tempo pela gramática e pela regras de bem expedir o desejo de bom dia [nada de especial, mas faço notar o círculo: o facto de assumirem tal significado é que lhes atesta a competência, que depois é usada para atestar o significado, etc.]; c) em consequência, a inclusão de “todos” na frase não decorre da necessidade da expressão do desejo de bom dia, o que a faz incorrer no risco de redundância, extravagância ou mesmo exibicionismo, evidentes factores de dano na expressão do desejo, no plano semântico e no performativo [o jurista relator devia a incompletude da sua formação a uma paixão insana pelas ciências da linguagem]; d) não se verificando nenhum traço suplementar de acrimónia no pronunciamento da frase, e pelo contrário sendo dita de forma jovial e causasse no auditório não menor jovialidade, ficava demonstrado que a inclusão de “todos” era apenas justificada pelo intuito da correspondente exclusão do único, o “menos um”, a excepção insólita ou inesperada que torna o “todos” redundante e por esse mesmo motivo absolutamente indispensável ao efeito cómico. O júbilo do derridiano foi indescritível; convenhamos que não era para menos! O quase-jurista chegara, pelos próprios meios (aliás, nem por isso jurídicos…), ao resultado que ele havia intentado pela via do quase-transcendental desconstrucionista.

Mas o processo teria de ser longo e trabalhoso, como sempre são as reabilitações de rupturas pertinazes. E esta… se era pertinaz! Dúvidas e indecisões geravam ansiedade; alguns deixaram de aparecer com a mesma frequência, outros entraram a sugerir que o assunto não valia um caracol; o disruptor, por seu lado, desfazia-se em desculpas: que era uma graça, que tal alvoroço não estava nos seus planos, que tão-pouco tinha planos, a não ser o que agora enunciava e com que se comprometia a dizer, sempre e apenas, para que não houvesse dúvidas —“Bom dia a todos!”

  Aquele do grupo que representava a indiferença (não sendo nem pálido nem tímido, apenas portador de indiferença), que, de forma congruente, até ali ouvira em silêncio argumentos e sugestões, sem se incomodar com nada nem o seu contrário, explodiu: — Era o  que faltava! Obrigaste-nos a concluir que bom dia a todos só se justifica acrescentando menos a um, e agora queres retirar a única coisa que dava sentido a esta confusão em que estamos há meses? Isso sim, é ofensivo, e merece castigo, e castigo sério.

Ficaram atónitos, os que o ouviram, incapazes de entender a explosão e o ímpeto punitivo. O jurista inacabado tartamudeou qualquer coisa sobre o acórdão, que não previa a exclusão do bom dia a todos. E ficou ainda mais atónito quando reparou que a ninguém, senão ao indiferente, ocorriam os argumentos do acórdão, mas a todos acorria o desejo de tranquilidade no modo de começar o dia. Alguém avançou a possibilidade de dizerem Bonne journée!, e teve sorte porque se riram muito, momento de distensão que um deles aproveitou para concretizar o castigo. “Trabalho de campo!”, exclamou; e olhando para o disruptor: “— Vai ali à pastelaria da costeira e quando entrares exclama ‘bom dia a todos’. Depois voltas aqui e relatas. Podemos juntar um apêndice ao acórdão do Alcino [chamava-se Alcino, o jurista truncado]. Aproveitas e trazes uns almendrados.”

A aprovação foi geral e imediata (talvez porque todos gostavam da pastelaria da costeira, conhecida pela excelência dos seus almendrados). O disruptor desincumbiu-se lindamente do encargo, com verdade e rigor de exposição no relatório: “Confirmado! Todos estranharam; enquanto aglomerado heterogéneo de pessoas indistintas, todas me desconhecendo, nenhuma respondeu, e estou em condições de explicar o fenómeno pela suposição de que eu seria um estrangeiro com fraco domínio da língua portuguesa e nenhum conhecimento de regras e convenções: como se quisesse obrigá-los a ouvirem-me ou usasse de ênfase para garantir que nenhum se sentiria excluído de um desejo tão claramente fundado na mais elementar civilidade.”

Quando tudo parecia apaziguado, o indiferente, com apoio expresso do jurista e do desconstrucionista — os três meio enfermiços, traço que releva muito para o que segue —, deu-lhe novo encargo: “Agora vais à farmácia, entras e dizes apenas bom dia.”

O infeliz foi e voltou surpreendido: “Nada a ver! Disse bom dia, mas apenas o farmacêutico me respondeu, os clientes ignoraram-me, apesar de um deles ter virado a cabeça na minha direcção. Insisti então: Bom dia a todos! E aí uma pessoa de mais idade, que aviava uma considerável pletora de fármacos, exclamou: — Não seja impertinente! Todos ouvimos, mas estamos a tratar da saúde e não temos tempo para cortesias. Já a sua insistência dizendo que o bom dia é para todos é muito rude e nada compreensiva.”

Ora, este relatório, de aparência quase razoável (o discurso da pessoa idosa em situação de cliente de farmácia pareceu a quase todos implausível), foi de imediato alvo da impugnação do mais feroz do grupo. O radical viu ali uma oportunidade única, porque sempre fora desconsiderado por defender que a repetição da fórmula “bom dia a todos menos a um” tinha o objetivo obscuro de levar o grupo a um processo de auto-escrutínio de objetivo destrutivo sob a aparência de determinar quem, de entre eles, não merecia nem bom dia nem desejo de bom dia.

Reiterou a proposta, que era esdrúxula. Mas ganhou adeptos; e opositores firmes: auto-escrutínio é autodestruição, clamavam. A cisão desenhou-se tão rápido que o patusco do “menos a um” se viu ele próprio identificado com o único exceptuado: ninguém o ouvia, nem num grupo nem noutro, e muito menos lhe davam os bons dias. Pareciam saídos daquele filme gracioso de Ozu. Mas coisa singular ocorreu entretanto: ambos os partidos passaram a defender que se tornara impossível dizer simplesmente “bom dia” — era preciso, por imperativo ético e eficácia convencional, sublinhar que o desejo de bom dia se expedia para todos, salvo talvez na farmácia e no elevador. Mas estabelecida a legitimidade da redundância, uma segunda cisão, encabeçada pelo desconstrucionista, acrescentou uma dimensão inesperada em volta da problemática derridiana da adressea l’autre qui vien, a l’autre qui écoute, etc. —, como apelo, endereçamento, envio na direcção de quem está ou melhor — pois releva aqui o repúdio da metafísica da presença — de quem não está e se calhar nem nunca esteve nem virá a estar… Justamente quem não está: isso, e apenas isso, justificava que se dissesse “bom dia a todos”, sendo porém um todo inalcançável, insusceptível de presença actual e próxima: era bom dia expedido para todas as pessoas, toda a gente, todo o mundo, o mundo inteiro, embora não necessariamente Deus. Impossível excluir um que fosse, quanto mais uma tribo. Os adeptos desta tendência incorporaram-se numa seita, a seita isolou-se na montanha, e de lá gritavam todas as manhãs:

— Bom dia a todos, bom dia a todos!!!

No sopé, os brincalhões anónimos informados das origens do hábito riam-se muito e respondiam: menos a um, menos a um… Foi uma animação ao longo de meses. Forasteiros curiosos compraram passagens de comboio para assistir à brincadeira dos bons dias, como já era conhecida. Mas alguns dos autóctones desconfiaram de que lha vinham estragar. O município foi sensível, dificultou o ajuntamento no sítio dos bons dias. Sucederam-se altercações; o ministério público naturalmente abriu um inquérito. Até que os da montanha, quando se viram sem escrutínios, sem conflitos de interpretação e sem acórdãos, perderam o interesse pela qualidade dos dias alheios e a seguir dos próprios, emagreceram e hoje os poucos sobreviventes fabricam velas e sabões. Aos que os visitam intrigados, explicam-se com arrazoados rudimentares, pontualmente mais aprumados mas sibilinos, como quando disseram a um professor de natação que “ou a natureza repõe o equilíbrio ou o progresso é inexorável, uma das duas há-de recolher a simpatia e a solidariedade dos espíritos com que simpatizamos e estamos solidários”. E com tais dizeres lá iam agradando a todos — menos a um, aquele sujeito obstinado, embora retraído, que nunca se despedia sem pedir uma barra de sabão azul, acrescentando que a queria porque, na sua breve passagem por Alcochete, Wittgenstein demonstrara que, apesar de a capacidade de uma chávena não lhe permitir comportar mais de 180 ml de chá, é sempre possível despejar sobre ela um litro ou dois de qualquer líquido da nossa preferência. Mas os saponificadores nunca o entenderam; e não faziam sabão azul.

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