Basquiat

Simpatia inacabada #4

Problemas de tradução

Vejo um vídeo com uma entrevista ao artista Jean-Michel Basquiat. Fora de campo, alguém pergunta: “Há raiva dentro de ti?” Ainda muito jovem, como sempre foi, o artista responde calmamente e com toda a naturalidade: “Claro que sim.” O entrevistador tenta então aprofundar: “Estás zangado com quê?” Basquiat cala-se. Atravessam-lhe o rosto toda a espécie de pensamentos amargos e emoções sombrias. A seguir, ainda em silêncio, tenta articular uma resposta. Pelo esforço que o momento exige, percebemos que Basquiat não quer ser muito desagradável – prefere traduzir aquelas emoções em palavras aceitáveis. Depois, no entanto, chega à conclusão de que talvez não valha a pena falsificar a resposta. Por isso, suprime-a. Faz um sorriso encantador e declara: “Não me lembro.”

Tudo na expressão de Basquiat mostra que, se não respondeu, foi por saber exactamente o que o deixa zangado e achar que dizer a verdade não só não seria de bom tom como também não serviria de nada. Até Basquiat, artista rebelde, interiorizou a ideia de que estar zangado “é feio”. Não é considerado inaceitável que uma pessoa com poder e dinheiro tenha chiliques de fúria por motivos insignificantes, mas, quando alguém sem poder se zanga, mesmo justificadamente, é descrito como “alguém que não sabe o seu lugar”.

São sempre conversas difíceis, se não absurdas e impossíveis, aquelas que temos com alguém que sabe qual é o nosso lugar e, portanto, acredita que conhece melhor a nossa situação ou profissão do que nós próprios. Não só o poder que se preza exerce sempre alguma arbitrariedade, como frequentemente se autopreserva por não ceder um milímetro do terreno que ocupa, sobretudo quando isso implica demonstrar um mínimo de consideração por pessoas que em nada podem contribuir para a sua influência e importância. Numa situação de desigualdade, o único recurso que resta aos mais fracos é zangarem-se, mas até essa possibilidade tentam roubar-lhes, desvalorizando não só a possibilidade de protestarem mas também quem o faz.

O desconforto e os “maus sentimentos” fazem parte da natureza humana e não serve de nada escamoteá-los, como se não existissem injustiças no mundo. Se uma situação é injusta, calarmo-nos é compactuar. Quando o outro lado não ganha nada em discutir, o valor do protesto está em forçar a discussão e a reflexão. E ser a favor do protesto não é o mesmo que defender a cedência imediata a qualquer pressão; é simplesmente lembrar que queremos uma realidade em que a diferença e a complexidade sejam tomadas em consideração.

Por não disfarçarem os “maus sentimentos”, leio sempre com interesse livros com narradores zangados. Não há muitos. Um deles é A Idade da Inocência. Muitos de nós contactaram pela primeira vez com este livro de Edith Wharton graças ao filme de Martin Scorsese com o mesmo título. Entre o texto e o filme, há, contudo, uma diferença muito importante, que sobressai quando voltamos a ler o livro depois de vermos o filme – é uma diferença no tom da narração. No texto, a voz que narra é amarga, sarcástica e está zangada; no filme, o tom é mais elegante, sofisticado, ligeiramente irónico. A voz-off do filme conhece o seu lugar; a voz da narração do livro, não.

Ellen Ollenska, a protagonista de A Idade da Inocência, não sabe qual é o seu lugar. Muito jovem, casou com um nobre polaco. Quando o casamento chegou ao fim, decidiu regressar a Nova Iorque, onde, na década de 1870, toda a gente conhecia bem o lugar dos outros. A dada altura, comenta-se que Madame Olenska passou tanto tempo fora que já fala mais francês do que inglês, por isso tem de estar sempre a traduzir – da segunda língua para a primeira. Apesar de ter voltado ao lugar de origem, deixou de encaixar totalmente nele e passa o tempo todo a tentar ajustar a sua realidade a uma interpretação dela com que não se identifica. Exigem-lhe que se transponha para uma linguagem que não a traduz, porque pertence a uma sociedade que classifica toda a gente.

Como zangarmo-nos é feio, o filme de Scorsese parece bem mais bonito do que o livro, sobretudo por disfarçar uma história de poder arbitrário sob as roupagens e adereços de uma história de amor. Só depois de o vermos várias vezes captamos bem a frieza e a crueldade com que as personagens, mesmo o par de protagonistas, se tratam umas às outras. O fim é deceptivo: apesar de não ser feliz, também não é amargo. Parece sancionar um conceito de vida sossegada, em que conseguimos viver sem nos zangarmos. As personagens principais foram sacrificadas a este ideal duvidoso, mas a sociedade em geral já terá evoluído para lá dele. São mencionadas personagens mais jovens, a quem foi permitido ocupar lugares que no passado não lhes pertenceriam.

Quanto a mim, das primeiras vezes em que, por estas ou outras palavras, supostamente mais subtis, fui acusada de “não saber qual é o meu lugar” (já ouvi isso com frequência ao longo dos anos), senti uma espécie de vergonha, como se reconhecesse uma imperdoável falha moral ou uma lacuna lamentável no meu conhecimento do mundo. Demorei algum tempo a perceber que, invariavelmente, a acusação se dirigia não a mim pessoalmente, mas ao género feminino e, dentro deste, às diferentes idades que tive ao longo do tempo. O poder que se preza é mau tradutor – reduz as pessoas às suas categorias. Se tivesse de traduzir a palavra “siamês”, preferiria um equivalente de “gato”. Não tem consciência dos problemas de tradução.

Com o tempo, talvez passemos a zangar-nos menos do que deveríamos, mas há uma coisa que me tem feito sentir zangada ultimamente, ainda que, ao escrever a palavra “zangada”, tenha imediatamente vontade de a suavizar ou rasurar. Em países como Espanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos, os meios de comunicação, entre os quais se incluem os sites e a publicidade das editoras e das livrarias, têm o cuidado de identificar os tradutores dos livros, mesmo que estes não sejam conhecidos por motivos não relacionados com a tradução. Em Portugal, poucos destes meios de comunicação se preocupam com isso.

Os tradutores não sabem qual é o seu lugar. Por um lado, vivem entre línguas diferentes, sem pertencerem a nenhuma delas realmente. Por outro, mesmo trabalhando durante meses ou anos nos livros que traduzem, em Portugal raramente vêem o seu nome referido quando o livro é mencionado, como se não existissem sequer.

Os meios de comunicação que omitem o nome dos tradutores sabem qual é o lugar dos tradutores: são uma categoria que não tem direito ao próprio nome. Ainda não acredito que a tradução automática de literatura seja capaz de superar um tradutor humano, a não ser que as máquinas desenvolvam certas características como individualidade, empatia, sentimentos, dúvidas e alguns mecanismos complexos da interpretação, mas, num universo em que não se faz referência à tradução nem aos tradutores, não será difícil publicar traduções (medíocres ou más) feitas por máquinas. Para quê pagar a um tradutor para fazer um trabalho em que ninguém repara?

Isto faz-me sentir zangada, embora sinta automaticamente vontade de trocar a palavra “cansada” por “desanimada”, e apesar de já ter ouvido várias vezes que sou só uma tradutora e que zangarmo-nos não é bonito e não serve de nada. O facto de saber tudo isto não altera a situação: apagarem o nome dos tradutores é como apagarem o nosso rosto. Por isso, não vou traduzir mal a palavra “zangada”, tão-pouco rasurá-la, como me rasuram a mim.

Na Internet, encontra-se uma imagem da estreia de A Idade de Inocência com um Scorsese impecável, sentado à mesa a ouvir alguém, enquanto Winona Ryder e Michelle Pfeiffer, de pé, se cumprimentam, se possível ainda mais belas do que no filme. Os que representaram aquelas emoções violentas saíram do filme ainda mais atraentes, como se não tivessem sido tocados por elas. As pessoas do cinema são sempre mais bonitas do que as palavras e as pessoas fora do cinema.

Simpatia inacabada #4
Michelle Pfeiffer, Winona Ryder, Dominica Scorsese e Martin Scorsese na estreia de A Idade da Inocência em Nova Iorque, 1993.

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »