Na América, por volta das duas da tarde de um tempo que por cá passava da hora, um homem adulto indignou-se. A causa da sua indignação entrara-lhe com estrondo pelo rádio do carro que conduzia, torturando-lhe o filho adolescente, amarrado ao banco pelo cinto de segurança. De pouco lhes valendo o aviso prévio do conteúdo potencialmente ofensivo que se seguia, palavras foram ouvidas, todas ditas num único fôlego, brutalmente encadeadas como uma combinação de Sugar Ray Leonard: shit, piss, fuck, cunt, cocksucker, motherfucker and tits! Isto, relembre-se, por volta das duas da tarde. Por essa súbita violência, perpetrada por uma estação de rádio nova-iorquina que decidira passar um trecho do álbum Filthy Words de George Carlin, o homem adulto seguiu com uma queixa à Comissão Federal de Comunicações (FCC) – a ERC lá do sítio. Em imagens recentemente recuperadas pela primeira parte do documentário George Carlin’s American Dream (2022), o homem adulto justificava a sua acção: “Foi um ataque aos meus sentidos. Não procurei aquilo, não queria aquilo”.
Por outro lado, apresentando a oportunidade para escolher qual das versões lhe será mais ou menos aprazível, importa revelar também a alternativa oculta que indica que o homem adulto procurava exactamente aquilo: numa outra entrevista, o próprio queixoso, membro da influente organização sem fins cognitivos Morality in Media, assumia que “estava constantemente” a ouvir aquela estação “só para ver quão longe eles iriam”.[1]
Seja como for, em matéria de facto, o caso desenrolou-se durante cinco anos de litígio, cativado por um ambiente cultural que se entretinha a ensinar-nos os termos do debate sobre os limites da liberdade de expressão, a politização dos meios de comunicação social e, no meio disto, os melhores horários de consumo cultural das crianças; a década era a dos ‘70s, a discussão era a de sempre.
Numa decisão legal que culminou com um Supremo Tribunal dividido, mas que conferiu o direito à FCC de regular o conteúdo transmitido na rádio e na televisão, a linguagem de Carlin foi caracterizada como “indecente, mas não obscena”. Não sendo por isso alvo de multa, a interpretação digna de terceira via abriu um precedente na categoria cinzenta que desagua no nosso mais conhecido “é proibido, mas pode-se fazer; só que é proibido”. Tanto mais que, atentando-se contra as consequências nefastas dos comportamentos desviantes, grande parte da argumentação dos decisores se baseava na mera convicção de que, às duas da tarde, as crianças estariam “indubitavelmente presentes na audiência”. Assim sendo, bastava ao humorista ter a decência de ser indecente às horas certas: o horário tardio em que as crianças teriam o discernimento de estar, no máximo, dubitavelmente presentes na audiência, espreitando por fora do campo de visão de adultos que as presumiam num sono profundo, longe da rebaldaria.
Porém, o humor, a única coisa mais contraditória do que um cardeal-patriarca e mais resiliente do que um profissional de saúde, tratou de transformar a derrota em vitória. Como documenta o professor Adam M. Samaha, a disputa serviu os propósitos de ambos os lados: a facção conservadora, receosa de perder a mão à mudança, demonstrou a sua superioridade junto das mais altas instituições de poder; os activistas da contracultura provaram a “rigidez da cultura norte-americana e do seu governo”. No fim, Carlin agradeceu a quem fez dele “uma nota de rodapé na história do poder judicial”; e o homem adulto trocou a sua indignação por um elogio fúnebre ao comediante, “o melhor da sua geração”.
Mais do que insistirmos em ver o humor como uma luta entre a proposta de contracultura e a resposta reaccionária, importa entender a simbiose que permite a coexistência rentável de ambas num mesmo espaço. Um acordo é estabelecido entre a plataforma que procura promover o seu aparente arrojo e o humorista que é contratado para exercer a sua autodenominada liberdade descarada. Eis o teor daquilo que é acordado: produzir humor atrevido e de polémica presumível, acautelando-se o artista de que tal serve primordialmente o propósito de aumentar o tamanho da audiência. Nada disto é mais do que a renovação da garantia de que não se darão passos maiores do que as pernas. Por uma decisão tomada que tem em conta a maioria absoluta dos consumidores, repousam-se as suas almas na comédia sã e de senso comum, alicerçada em controvérsias tangíveis, repetitivas e maioritariamente artificiais. O que decorre desse compromisso poder-se-á observar por aquilo que aconteceu na rádio norte-americana a partir dos anos 80, como complemento mediático à maior relevância da FCC: o advento dos shock jocks, radialistas cuja personalidade insurrecta e discurso deliberadamente indecente atraiu magotes de novos ouvintes para uma nova forma de fazer rádio.
Por cá, a prova mais recente da lógica anterior tem sido o crescente sucesso de Joana Marques, a humorista conhecida pela sua rubrica de escárnio diário a uma antologia de personalidades que parecem ter vendido a sua credibilidade ao preço da uva mijona. Autora de “Extremamente Desagradável” na Renascença, o programa de rádio mais badalado dos últimos tempos, Joana Marques apresenta-se como um animal inventado por Kafka: metade cordeiro e metade gato, é as duas coisas em partes mais ou menos iguais, de movimentos que são ao mesmo tempo de fuga e de salto, sendo alvo das perguntas mais estranhas. Há algum animal semelhante? O que é que ela gosta de comer? Como é ser uma mulher no humor?
Numa carreira de guionista iniciada em 2007, o produto da formação das Produções Fictícias revelou-se como alguém que trabalha por antecipação: como argumentista, antecipou-se à conversa de que não existem mulheres no humor, surgindo pela mão de Maria João Cruz e escrevendo para a dupla consagrada de Ana Bola e Maria Rueff; como radialista, antecipou-se à explosão de rubricas de humor matinal, tendo aperfeiçoado a sua experiência junto do público-alvo da Antena 3 desde 2012; e, como humorista, antecipou-se ao obstáculo de ficar com o resto da sua carreira ligada ao Canal Q.
Olhando para o seu percurso, trata-se de uma mulher guiada por uma corrente veralagoniana, que sabe que a história a faz filha não apenas do seu tempo, mas principalmente do seu lugar. Deste modo, para quem vê a escrita humorística como um exercício de sebenta, Joana Marques apresenta-se como o epítome do humor que tem sido mais praticado no país. Apesar de ser um método intensamente treinado e com provas dadas nos novos meios, o mesmo não deixa de ser uma recauchutagem das estruturas finisseculares que ao longo das décadas deram asas a parodiantes de Lisboa, noites de má-língua, homens que mordem o cão e gatos que descobrem tesourinhos deprimentes. Em tudo o que Joana Marques faz, é notória a homenagem a um caminho que nos trouxe até à actual facilidade de equiparar a panóplia do que já existe ou existiu a algo novo. Ter chegado depois criou-lhe o desafio de ultrapassar um estado de estagnação gerado por comediantes-charneira, que de tudo um pouco fizeram. E, no entanto, é olhando para essa estagnação que nos apercebemos do quão exaustiva e solitária pode ser a busca pela nesga da inovação que se persegue. Então, se aquilo que o humor mais procura é a gargalhada comum, mais vale entender a necessidade da tal coexistência rentável com aquilo que na verdade mais desejamos: prestar-nos a um serviço de conforto, tão íntimo quanto gratuito, e que sem pedir grandes requisitos, nos alivia daquilo que é insuportável das nove às seis. Se for essa a nossa vida, num dia-a-dia igual ao de tantos outros, maior será a chance de participarmos na gargalhada comum e de mais nada sentirmos precisar. Seguindo por aí, a grande qualidade de uma humorista como Joana Marques estará na perspicácia de entender diariamente a fórmula que satisfaz esta exigência de alguns, e que não são poucos, são bastantes. Começa a ser comum observar, e ainda mais para quem tem tempo para ler quote tweets, que quando rebenta um cano de conteúdo viral, um dos maiores anseios é “Mal posso esperar para ouvir o que a Joana Marques tem a dizer sobre isto”. Com efeito, a produção fordista da humorista, a sua segunda grande qualidade, encarregar-se-á de ter coisas para dizer sobre aquilo.
Levando um formato televisivo para a maior acessibilidade da rádio, ajustando o tratamento desses conteúdos para o debate aceso na internet, é possível afirmar que, em termos de taxonomia, estaremos perante a primeira shock jock da rádio portuguesa, ainda que com o devido desconto de largos centímetros que a separam da essência pirómana do improviso de Howard Stern, e levando em conta o diferente nível de laissez-faire que impera nas respectivas entidades reguladoras – entender-se-á que a coisa funciona melhor por cá, apesar da pequena amostra dos casos que desafiaram verdadeiramente essa tolerância.
Num recente perfil de Joana Marques para o Expresso, no âmbito do quinquagésimo aniversário do jornal que coloca a humorista como uma das cinquenta personalidades que marcarão as próximas décadas, Ricardo Araújo Pereira elogia-lhe a capacidade de, sem olhar a condições, ridicularizar a vaidade de todos aqueles que tomaram a decisão de se expor em público voluntariamente (“Somos todos ridículos – incluindo, claro, os que ridicularizam”). De facto, e assumindo que ouvi o enorme bocejo que lhe acaba de sair pelo soninho causado por esta conversa, somos todos ridículos. Não obstante, essa lição-padrão de tábua rasa não se encontra no humor de Joana Marques, que até nos indica algo mais próximo da verdade. Seja na rádio, nas suas crónicas ou nos seus livros, a lição que se retira do humor de Joana Marques é a de que não somos todos igualmente ridículos, sendo-lhe então possível pegar em apenas alguns de nós para quinze minutos de escáfia até à decomposição da carne e do ego. Como aponta a pergunta retórica da autora no seu último livro,
“O que é que oferece melhor matéria para fazer humor? Um cromo como o Marco do Big Brother ou um cromo no sentido de melhor aluno da Nova que ganhou uma bolsa de milhares de euros na Sorbonne?”
“O que corre bem e merece elogio não serve o humor, que procura sempre a falha”, remata.[2]
Assim, para os profissionais da comédia, urge espremer algo que contenha mais sumo do que as lições para principiantes explicadas ad nauseam. Se o humor procura a falha, e se todos as temos, então porquê apontar sempre para as mesmas? Porque, dentro daquilo que são as falhas, nem todas terão o mesmo grau de importância. Temos todos falhas, sim; uns mais do que outros, sim; mas, mais importante para o humor, umas são piores do que outras. As piores, essas, apesar da decadência acelerada do catolicismo, são as conhecidas sete – e curiosamente, tantas quantos os palavrões de Carlin. Dessas sete falhas, o senso comum diz-nos que todas elas são nossas inimigas mortais. Então, o senso comum utiliza todas as suas armas, até o humor, numa senda copiosa que nos relembra de as evitar. Esse humor, diferente daquele que se relaciona com o bom senso – que me parece não ter condições para vingar para lá de algumas salvas de palmas –, prioriza a validação de quem com ele se ri porque, cumprindo a teoria da superioridade, se coloca num patamar moralmente superior face aos sandeus que desconstrói.
Mas fica a pairar uma inquietação. E se a contribuição humorística que aponta para a falha nem sempre funcionar como uma denúncia, mas por vezes for parte de um jogo arquitectado pelo ridicularizado, que aposta na explosão de reacções em menos de nada? Se a priori é possível calcular aquilo que será satirizável, então como é ainda possível acreditarmos que só cai no ridículo quem não se dá conta do mesmo? Por outras palavras, e se, com o treino, o ridículo percebeu o muito que tem a ganhar em ser ridículo? Terá a falha, se premeditada, graça? Se assim for, nem sempre serão as pessoas que se põem a jeito, sobrando as vezes em que será o humor a fazer o jeito de cair no mesmo: ser usado como trampolim por agentes de realidades ficcionais, que existem somente através de uma parametrização mediática que maximiza a sua rentabilidade, ao ponto de a sátira estar assente sobre uma outra sátira que em nada tem a ver com o que existe para lá dos ecrãs. Deve o humorista, se ciente desta dinâmica, fazer jeitos a alguma coisa ou a alguém? Está o humor refém de tal concordata?
No entanto, combinando o volume e a multiplicidade da oferta que permite quebrar com a unanimidade sentida nos anteriores vultos do humor em Portugal, a comédia de Joana Marques só é um ataque aos sentidos de quem não a procura, nem a quer, mas, por alguma razão, está constantemente a ouvir, para ver quão longe ela vai. Temo que a resposta não surpreenderá a audiência: por volta das dez da manhã, todas as palavras que forem ouvidas, brutalmente encadeadas numa folha de papel, cumprirão com o seu propósito de durarem um ciclo de exactamente vinte e quatro horas até ao novo dia de labuta. Nesse horário, está incluído o prazo para a entrada da consequente indignação em forma de providência cautelar que, caduca, nada mais é do que uma falha que deverá ser ridicularizada no dia seguinte.
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[1] Adam Samaha, “The Story of FCC v. Pacifica Foundation (and Its Second Life)” (University of Chicago
Public Law & Legal Theory Working Paper No. 314, 2010).
[2] Joana Marques, “Apontar é Feio”, (Contraponto Editores, 2022), p. 145.