Problemas de tradução (2)
Tradutor: imitador; falsário; traidor; criatura abnegada e generosa que cultiva o apagamento.
Se incluísse uma entrada dedicada aos tradutores num novo Dicionário das Ideias Feitas, um Flaubert dos tempos modernos teria muito que tomar em consideração. Há séculos de lugares-comuns sobre tradução literária. Estes chavões obscurecem a prática, em vez de a descreverem correctamente, e têm contribuído para a desvalorização e o apagamento do trabalho dos tradutores.
Para alguém que começa a traduzir, o primeiro esforço tem de ser ultrapassar esta tralha verbal enunciada e repisada sobretudo por pessoas que não traduzem. Entre os tópicos que tive de questionar para conseguir traduzir, um dos mais repetidos é o de que o tradutor é um imitador ou falsário, associado à ideia de que traduzir é uma actividade que implica acima de tudo fingimento e despersonalização.
Um tradutor não precisa de enganar ninguém: quando lêem uma tradução, os leitores sabem que não estão a ler o original – o facto de o texto estar escrito numa língua diferente torna isso evidente. Quando se muda de língua, tudo muda. Entre duas línguas tão díspares, como, por exemplo, o inglês e o português, está afastada à partida qualquer possibilidade de replicar ou copiar o original palavra a palavra na língua de chegada. As versões em que se tenta fazer isso não são boas traduções porque não captam o sentido e o tom do texto. Os bons tradutores não interpretam só as palavras. Têm de interpretar o que está em questão no texto – que inclui conteúdos e informação que escapam às palavras. Não se traduz palavra a palavra: traduz-se frase a frase, parágrafo a parágrafo, tendo em consideração o texto integral e também a sua relação com outros textos no passado e no presente – na língua de partida, na língua de chegada e noutras línguas também.
Imitar (em sentido não aristotélico) é o que os robôs e a inteligência artificial fazem, produzindo textos próximos dos enunciados humanos, mas com um tom estranho. Os textos literários não se coadunam com imitadores. As obras dos imitadores soam a falso, têm problemas de ritmo e parecem forçadas e artificiais. Em vez de imitar ou falsificar, o objectivo do tradutor tem de ser produzir um equivalente, algo que valha tanto como o original. Se não valer por si como texto literário, o texto traduzido não valerá como tradução.
A impossibilidade da réplica ou cópia na tradução costuma ser descrita como uma desvantagem, mas é uma vantagem. Num mundo cada vez mais globalizado e homogeneizado, a tradução valoriza e trabalha a diferença, ampliando o universo linguístico e cultural não só do texto de partida, mas também da língua de chegada. Isto é um ganho, não uma perda. Um tradutor integra palavras, expressões e referências estrangeiras na língua de chegada, permitindo que as diferentes línguas continuem a existir sem serem colonizadas por outras com mais falantes. Que haja atritos, colisões, resistências, imperfeições e reformulações neste processo é não só inevitável, mas também essencial.
Por vários motivos, pouquíssimos autores traduzem os seus próprios textos, mesmo quando dominam a língua de chegada dos países em que o livro é traduzido. Falta-lhes tempo, disponibilidade mental e interesse na actividade, mas também a agilidade interlinguística, o distanciamento e a resistência física e mental necessários. Nesses casos, quem cria o texto de chegada é o tradutor, não o autor. Este processo funciona porque, para traduzirem, os tradutores empregam as mesmas estratégias dos escritores. Tanto os autores como os tradutores exploram a linguagem e um conjunto de referências culturais, apropriando-se delas: nenhum texto é criado do nada.
Os tradutores não se despersonalizam nem encarnam os autores. Podem e devem imaginar como o autor escreveria aquele texto na língua de chegada e tentar produzir uma versão que seja o mais próximo possível do original, mas na tradução não há magia, práticas mediúnicas, nem falsificação. É impossível traduzir com os conhecimentos, as experiências e os pensamentos do autor: ninguém tem acesso à cabeça de outra pessoa. Os tradutores traduzem com tudo o que sabem, com tudo o que viveram e com todas as palavras que conseguem convocar a partir dos textos do autor. O mesmo texto pode ser traduzido de maneiras distintas, dependendo da interpretação do tradutor e das relações que é capaz de estabelecer. E traduz-se o texto e não só o autor: os autores morrem, mas alguns textos continuam a ser lidos, transcendendo de muitos modos as intenções originais.
Um tradutor profissional passa o tempo fechado em casa, concentrado, a trabalhar, às vezes sem fins-de-semana nem férias. Depois de um dia de trabalho, fica totalmente exausto, o que não é o estado ideal para defender a visibilidade da sua profissão. Estas circunstâncias favorecem o desconhecimento que existe em relação à tradução e facilitam a sua secundarização. Traduzir, no entanto, não é um acto de generosidade, abnegação e apagamento voluntário. Descrever essa prática deste modo retira-lhe valor e é condescendente. É errado descrever a tradução como processo neutro e impessoal.
No nosso país, há tendência para destacar nomes de pessoas conhecidas que traduziram um ou dois livros, mas não são tradutores profissionais. Muitas vezes (embora não necessariamente), são traduções com um valor inegável, mas esta situação contribui para se formar a ideia bizarra de que os melhores tradutores são aqueles que traduzem por passatempo ou para instruir e esclarecer as massas – quando, na realidade, traduzir é uma actividade em que a experiência, a perícia, o tempo investido, a atenção e a dedicação fazem toda a diferença. Não nomear os profissionais que dedicam a sua vida à tradução é injusto tanto para os tradutores como para os leitores.
No passado, os tradutores literários tiveram de lutar para que o seu nome fosse apresentado num lugar visível e não só na ficha técnica. Fora de Portugal, os tradutores são identificados quando os livros em que trabalharam são referidos. Em Portugal, no entanto, com a transição para o digital, o reconhecimento da importância dos tradutores parece ter sido esquecido. Várias editoras e livrarias online omitem o nome dos tradutores nos respectivos sites, materiais promocionais e redes sociais.
Esta desvalorização é reforçada pelo facto de alguns meios de comunicação social não terem como regra a identificação dos tradutores. Esquecer o nome dos tradutores dá a entender que não se compreende o processo e a importância da tradução. É uma falha particularmente grave em profissionais que trabalham com livros.
A quem interessa que o nome dos tradutores seja rasurado? Quem ganha com isso? Os leitores não ganharão com certeza, tendo em conta que o tradutor é, a seguir ao autor, o elemento mais decisivo para a qualidade do texto que poderão ler. Indicar o nome do tradutor responsabiliza-o pelo seu trabalho, seja este bom ou mau. Quanto mais responsabilizarmos os tradutores pelo trabalho que fazem, mais estes lutarão para assegurar a qualidade dos serviços que prestam.
Ultimamente, tenho sentido que os lugares-comuns que tive de ultrapassar para conseguir traduzir vão acabar por transformar os tradutores em meros revisores de robôs que imitam tradutores. Os países que não dão valor à tradução nem aos tradutores serão os primeiros em que isso acontecerá. Rever más traduções de robôs não é suficientemente interessante para mim. Por isso, decidi escrever este texto enquanto ainda me deixam trabalhar em tradução. É um texto fastidioso e explicativo, mas parece-me que já chegámos ao ponto em que é preciso lembrar tudo isto mais uma vez.
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Imagem: São Jerónimo no Seu Escritório, de Niccoló Antonio Colantonio (1444).