“Nobody’s perfect” é a deixa perfeita, a punch-line derradeira de Some like it hot, considerado por muitos o melhor filme de comédia de todos os tempos e tema principal desta crónica. Não faltam citações da mesma e foi usada inúmeras vezes como lançamento da resposta “but who wants to be a nobody”.
É também o nome de uma das biografias de Billy Wilder, o seu realizador e guionista, em co-autoria com o seu cúmplice habitual, I.A.L.Diamond. Escrita por Charlotte Chandler, a biografia de Billy Wilder, amplamente baseada nos depoimentos do próprio, é de uma riqueza extraordinária à qual regresso amiúde.
Nem sempre a deixa “Nobody’s perfect” foi estimada assim. Escrita por I.A.L. Diamond, enquanto final provisório, nas vésperas de ser filmado, não tinha as preferências da mulher de Diamond ou de Wilder.
Diamond bateu-se até à última para manter a deixa no guião. Isso ia em contracorrente com um princípio de comédia: sair na nota mais alta, eufórica mesmo. E essa era claramente a declaração da personagem de Jack Lemmon, ao mesmo tempo que arrancava a peruca e gritava ao seu noivo Osgood Fielding, o impassível Joe E. Brown, ”mas eu sou um homem!”.
Diamond levou a sua avante e provou que tinha razão, uma das coisas que torna o filme incontornável, hilariante e intemporal é a impassividade e aceitação da parte do noivo. Não era o detalhe de a pessoa por quem ele estava apaixonado ser um homem que o ia impedir de casar. O facto de o final ficar em aberto e sem julgamento moral sobre a escolha em si é pouco menos que revolucionário, tendo em vista que o filme data de 1959.
Terá sido por isso que a antestreia com público do filme foi um rotundo fracasso? Rezam as memórias dos participantes que, numa plateia inteira, só uma pessoa rira à gargalhada todo o filme: Steve Allen, o popular comediante, cabeça de cartaz do Tonight Show original, na NBC.
Os produtores, com a corda na garganta devido aos atrasos na rodagem, imploraram a Wilder que cortasse um mínimo de 15 minutos da película pois não havia memória de uma comédia com mais de duas horas, lembraram-lhe que já haviam cedido muito, aceitando que o filme fosse fotografado a preto e branco, e que Jack Lemmon fosse um dos protagonistas.
Wilder tinha como uma das suas principais características detestar que interferissem no processo da transferência dos guiões para a tela. Fora essa a principal razão pela qual se tornara realizador, evitar erros de interpretação e liberdades sobre o seu material.
Para protecção de ambos havia criado um método praticamente infalível: filmava como editava, ou seja, os takes e os planos que fazia eram pensados de modo a não dar hipóteses de serem cortados de outra maneira senão a que ele imaginara. Desse modo, mesmo quando queriam dar outro final a um filme dele, não tinham outro remédio senão ceder, ou então pagar muito mais do que o previsto para completarem o filme.
Em compensação, o período de edição do filme era extremamente curto. Some like it hot demorou não mais de duas semanas, desde o fim da rodagem a estar pronto.
Quanto aos 15 minutos de cortes exigidos, Wilder cortou 1. Uma nova sessão, desta vez para um público mais jovem, universitário, teve lugar. O filme foi um sucesso tremendo, que se viria a repetir no futuro, sempre que fosse exibido.
A propósito, Steve Allen havia recomendado tratamento psiquiátrico para os que não tinham rido com ele.
Tendo começado pelo fim, finalizemos pelo princípio.
A premissa inicial de Some Like it Hot era relativamente simples e é sobejamente conhecida: Dois músicos, desempregados, vêem como única solução disfarçar-se de mulheres e entrar para uma banda exclusivamente feminina, onde um deles se apaixona por uma das colegas.
O que pouca gente sabe, embora fosse assumido, é que se tratava de uma adaptação, ou um remake, de um pequeno filme alemão Fanfaren der Liebe, escrito por Michael Logan e Robert Theoren.
Wilder e Diamond escreveram um argumento de 60 páginas em que criavam a razão para os dois músicos se porem em fuga. Numa clara homenagem aos filmes de gangsters dos anos 30, toda a sequência inicial do filme se desenrola sem diálogo, os carros deslocando-se velozmente em Chicago, culminando na reconstituição do massacre de São Valentim, testemunhada pelos dois desafortunados instrumentistas. Descobertos pelos assassinos, perseguidos por eles e pela justiça, não lhes resta outra saída que não a de se travestirem e juntarem-se a uma banda feminina que partia em digressão de comboio, para irem tocar num grandioso hotel de praia, na Florida.
Wilder, ao contrário de muitos dos seus colegas, tinha recusado a circunscrever-se a apenas um género cinematográfico. Tinha porventura a vantagem, tendo sido primeiro guionista, de estar habituado a trabalhar em vários géneros e registos, tornando-se fluente nas várias linguagens e técnicas de contar uma história. Isso seria transposto para o seu papel como realizador. Dirigindo os guiões que escrevera, Wilder evitava ter de se subsumir a um género. Nem sempre isto é bom. Às vezes torna o realizador um especialista em coisa nenhuma. O certo é que onde alguns se poderiam ter tornado meros tarefeiros, ou simplesmente medíocres em várias áreas, Wilder revelou-se um mestre em vários géneros: poucos filmes serão mais emblemáticos do noir que o seu Double Indemnity, ou a sua incursão nos filmes de guerra passados em campos de prisioneiros, Stalag 17, ou retrataram com maior crueldade e beleza os podres da própria indústria como ele, em Sunset Boulevard.
Para Some Like it Hot, título retirado de uma frase de Tony Curtis num dos diálogos mais penosos de gravar da história do cinema, Wilder juntou um casting perfeito.
Os gangsters eram todos interpretados por actores quintessenciais do género, encabeçados por George Raft e Pat O’Brien. Joe E. Brown fazia um magnífico Osgood Fielding. O trio de protagonistas, óbvio, hoje em dia, foi mais difícil de encontrar.
Tony Curtis foi a primeira escolha de Wilder, que achava que ele poderia fazer qualquer dos dois músicos. Estava também interessado em Jack Lemmon. Os produtores discordavam. Jack Lemmon não era (ainda) uma estrela e havia dúvidas sobre a capacidade de trazer público às salas. Tinham decidido que o co-protagonista de Curtis seria, nem mais nem menos, que Frank Sinatra. Com duas estrelas garantidas, a actriz que completaria o trio seria Mitzi Gaynor.
Chamem-lhe intervenção divina, ou pura sorte, dois acontecimentos vieram alterar sobremaneira este estado de coisas.
Frank Sinatra não compareceu a um almoço marcado com Billy Wilder (em defesa de Sinatra, era um almoço, algo completamente fora dos seus horários).
Pelo contrário, Marilyn, que com ele já tinha feito o retumbante êxito The Seven Year Itch, escreveu-lhe a dizer que gostaria de voltar a filmar com ele.
Wilder agarrou a oportunidade. Com Marilyn, então no zénite do seu star power, já não necessitava de Sinatra para que o filme fosse financiado. Avançou assim para Jack Lemmon, que aceitou, mesmo sem ler o guião.
Porquê? “Era o Billy Wilder e assim podia ser que ele reescrevesse o papel a pensar em mim.”
Porque é que Billy Wilder queria Jack Lemmon? “Porque é o melhor actor de cinema que conheci”, disse, aquando da morte do amigo.
Marilyn, por seu lado, encontrava-se num período particularmente dramático da sua vida, o que não é dizer pouco. Casada na altura com Arthur Miller, e tendo perdido o filho de ambos por um aborto espontâneo, tinha sido aconselhada pelo marido a fazer uma comédia, para sair da depressão em que se encontrava. Esse período corresponde também à tentativa dela de levar a sua arte a sério e ser reconhecida enquanto actriz séria por público e crítica. Marilyn tinha entrado para o The Actors Studio e a sua professora, que viajava com ela para todas as rodagens era, nem mais nem menos, Paula Strasberg, esposa de Lee Strasberg, o introdutor do Método, de Stanislavski, nos EUA. Marilyn ensaiava com Paula, recebia instruções de Paula e era dela que esperava aprovação. Se entre os realizadores veteranos e colegas já era difícil lidar com os novos desafios que os actores do Método lhes proporcionavam, imaginem o desconforto de terem alguém presente no set a dirigir actores à sua revelia.
Marilyn tinha ainda uma cláusula no seu contrato com o Estúdio que a impedia de filmar a preto e branco.
Contrariando os produtores, que queriam o filme a cores por razões profissionais, Wilder convenceu-os – e a Marilyn – de que sendo o filme uma peça de época (a acção decorre no final dos anos 20) seria mais convincente a preto e branco e a isto juntaria outro argumento de peso, a maquilhagem de Curtis e Lemmon, a cores, seria muito menos discreta e verosímil.
Todos acabaram por aceitar.
Curtis e Lemmon, o segundo mais disposto a isso que o primeiro, passam horas diariamente a experimentar maquilhagem. Finalmente decidem realizar o teste definitivo. Frequentam a cantina e depois a casa de banho femininas. Toda a gente parece não achar nada de estranho nelas e só são reconhecidos no final por uma colega que se lhes dirige com um “hi, Tony”, à saída dos lavabos. Também Wilder concorda e as filmagens começam com a gravação das cenas de comboio.
Wilder está disposto a superar-se. Se no The Seven Year Hitch criou uma das mais icónicas imagens de Marilyn, de saia esvoaçante sobre a conduta do metro em Nova Iorque, aqui, o plano dá-nos o ponto de vista dos hipnotizados Curtis e Lemmon, fascinados com o movimento de ancas dela, sublinhado pelo vapor do comboio, tentando perceber como é que eles iriam corresponder com o seu fraco talento para uso de saltos altos.
Wilder é um mestre em estabelecer os perigos/compensações da premissa: Se são apanhados, os dois amigos serão revelados aos olhos dos gangsters que os perseguem; por outro lado, estão os dois enfiados num vagão dormitório com beliches com uma orquestra feminina inteira e a última das tentações, Sugar Kane, o nome perfeito da personagem de Marilyn.
Wilder transforma a sequência do comboio num festival de duplos sentidos e alegre anarquia, rigidamente coreografada (chegou a pedir a uma das actrizes para que mudasse a posição da sua bolacha entre os dedos da mão) com as situações cómicas a sucederem-se vertiginosamente. Visivelmente, o mais atrapalhado é Lemmon, perfeito na personagem tímida e desajeitada, muito menos experiente que a de Curtis. Curiosamente, é Lemmon o primeiro a cair na órbita solar de Monroe, que o elege como confidente.
Seguem-se as gravações em exteriores, mostrando o hotel onde se dá a segunda parte da acção da história e a praia ao largo da qual estaria o iate de Osgood.
Apesar das interrupções constantes por causa dos aviões, a rodagem corre às mil maravilhas: Marilyn sabe os seus textos e Wilder, sempre diplomata na sua intransigência, ao reparar que ao fim de cada take ela olha para Paula em busca de validação, interrompe um desses olhares perguntando “Está bom para ti, Paula? Podemos continuar?” Por momentos, a hierarquia no plateau havia sido restabelecida.
As coisas viriam a piorar consideravelmente no regresso ao trabalho em estúdio.
Marilyn entra numa espiral de insegurança. Está novamente grávida e teme, naturalmente, perder novamente o bebé, o segundo em meses. Há outro problema, o elefante na sala, Marilyn quer libertar-se dos papéis de blonde bombshell e embora Sugar Kane, a personagem, manifeste o mesmo desejo de libertação de só ser vista desse modo, a verdade é que ela simboliza o cliché da blonde bombshell em todo o seu esplendor, com o seu misto de ingenuidade e sensualidade num equilíbrio mais do que precário, para o qual contribui e de que maneira a sua beleza exuberante.
E Wilder quer Marilyn precisamente pelas qualidades dela, que ela quer pôr de lado. Dirá, muitas vezes que ela, quando acerta, é simplesmente perfeita, que outras actrizes, se calhar melhores tecnicamente, podiam aproximar-se, mas ninguém atingia aquele ponto. Só Marilyn podia fazer a persona de Marilyn, ou a sua variante, Sugar Kane.
Segundo Lee Strasberg, apesar de respeitar Wilder, Marilyn queixava-se de que não lhe davam personagens, que ela era apenas um caríssimo adereço.
Os atrasos sucedem-se. As faltas por doença. Para piorar ainda mais as coisas, Marilyn perde o segundo bebé.
Nos dias em que aparece para trabalhar, Marilyn parece incapaz de decorar o que quer que seja das suas deixas. O que em Brando, por exemplo, viria a ser por uns gabado, por outros glosado, nela é sinal da sua incapacidade.
Wilder continua a defender a sua dama. “Fazemos os takes que precisares, revelaremos o primeiro que esteja perfeito. É da responsabilidade dos rapazes estarem perfeitos em todos.”
Tony Curtis, que tem a sua “terceira” personagem no filme, quando o músico assume a persona do herdeiro da Shell, Shell Oil Junior, é a principal vítima. Uma deixa leva 82 takes até ser aprovada. 82 takes para quatro palavras “where is that bourbon?”.
A mais penosa das cenas de ser gravada é a do beijo, em que Sugar tenta curar a impotência do milionário Shell Jr. que falava como se fosse uma caricatura de um desajeitado Cary Grant (uma escolha de Curtis, que Wilder aprovou).
Era uma cena crucial do filme, e até Jack Lemmon decide assistir à rodagem apesar de não entrar nela. Wilder pede a Marilyn que ensaie, só para a colocação das luzes e câmara no local perfeito. Marilyn recusa, quer “estar presente” no momento.
Curtis nada diz, mas fica ofendido, acha que o que se está a passar é por causa de um caso fugaz que tinha tido com Marilyn uma década atrás. Acha que ela não lhe perdoou ele nem lhe ter ligado depois do envolvimento, e sabe que seguramente ela não o esqueceu: a primeira vez que o viu no set, perguntou-lhe se ele ainda tinha o carro que usara na altura.
Se é por isso, se é por não querer ser acusada de estar a beijar um notório mulherengo mais do que o estritamente necessário, se é para, segundo o Método, estar presente na cena, ou simplesmente porque não lhe apetece ou se sente em condições, ela não ensaia.
O que se segue são mais de sessenta takes da cena do beijo.
Wilder declara-se satisfeito, Marilyn retira-se para o seu trailer, alguém pergunta a Tony Curtis que tal foi, ele dá em voz alta a cruel resposta, que passará o resto da vida a desmentir, mesmo se o próprio Jack Lemmon a confirma: “Foi como beijar o Hitler”.
Marilyn, a mulher mais desejada do planeta, até àquele momento.
Abate-se o silêncio no estúdio. Se os olhos de Paula matassem, Curtis não teria sobrevivido.

Terá ela contado a Marilyn o que Tony Curtis disse? Nunca o saberemos.
O que sabemos, o que vemos no écran ou na tela, é que nada disso pareceu contar no final para o filme.
Marilyn é sublime, de beleza e timing cómico, Curtis consegue estar à altura, tudo funciona como um mecanismo de relógio suíço, sem que nos consigamos aperceber de qualquer problema.
Mais, ficamos com a certeza de que Wilder tinha razão. Ninguém conseguiria fazer a Sugar Kane como Marilyn e esta é de facto uma das suas mais brilhantes performances.
Em paralelo com o romance de Sugar com o suposto herdeiro da companhia petrolífera, ocorre o caso entre o verdadeiro herdeiro Osgood Fielding (um nome de personagem também ele maravilhoso, borderline jamesbondesco, no trocadilho quase infantil) e a Daphne de Jack Lemmon.
Se Sugar pensa que está a resolver a sua vida envolvendo-se e curando o falso bilionário, a Daphne cabe defender-se das investidas do verdadeiro bilionário, apaixonado por ela desde o primeiro estaladão que levou no elevador do hotel. Sucede que a persistência de Osgood é notável e que a resistência de Daphne à lisonja é ténue. O que começa por ser um mero esquema para sacar alguma vantagem, torna-se mais sério. Daphne dá por ela a sonhar como a vida dela poderia ser perfeita ao lado de Osgood, e é o seu parceiro (Curtis) quem lhe recorda que há um enorme problema a resolver ali, um problema insolúvel: Diz Daphne: “A minha futura sogra?” “Não, tu és um homem.”
É notável como podes usar um cliché tão abusado no humor, como é o humor de sogra, para conseguires mostrar uma coisa muito mais complexa, divertida e arejada: Daphne por momentos paira, na sua condição de mulher cortejada por um multimilionário, tão leve que se esquece desse pormaior do género, o que obviamente torna mais cómica e dramática o seu regresso à realidade. Daphne afirma que vai acabar com tudo, contar a verdade. Mas só o conseguirá fazer in extremis, na penúltima deixa do filme.
Lá regressaremos.
Se Some Like it Hot é uma comédia prodigiosa, isso deve-se obviamente a um enorme acumular de factores, do talento para os diálogos de Wilder e Diamond, ao desempenho dos actores. Mas é a Wilder que tem de ser assacada a parte leonina da responsabilidade.
Wilder domina todos os estilos de comédia em cinema e não só. Não há um tipo de humor a acontecer, há vários: a tradicional comédia de portas, o slapstick puro e duro, o musical e duelos verbais intensos, precisos e hilariantes, a comédia física e a sátira a um género fílmico (o filme de gangsters e o musical). Esta profusão de tipos de humor, muitas vezes justapostos, subverte completamente a comédia romântica clássica.
Tudo é cuidado ao pormenor, do casting ao guarda-roupa, que seria a única das seis nomeações do filme a ser premiada com o Oscar da categoria, nesse ano, premiando o trabalho fabuloso da dupla Orry-Kelly.
Até os nomes das personagens são piadas referenciais. Exemplo maior, um dos gangsters chama-se Little Bonaparte, o que é uma piada porque a alcunha é pleonástica, mas também é uma referência a Little Caesar, a lendária personagem e gangster por excelência de Edward G. Robinson.
Há muitas maneiras de se fazer uma comédia, mas ser comédia é muitas vezes o álibi do autor para não procurar a perfeição, quando não a convicção de que é nas imperfeições que se encontram os grandes momentos de comédia.
Wilder não acredita nisso, as suas referências iniciais são Chaplin e Keaton, mais o segundo, e principalmente Ernst Lubitsch, com quem trabalhou em Ninotchka, como argumentista. O “toque de Lubitsch” tornou-se lendário, era sinónimo de classe, bom gosto, perfeição.
Esse bom gosto e leveza permitem a Lubitsch fazer comédia com temas tão controversos como os associados a Ninotchka e Design for living. No primeiro, pegava em Greta Garbo e fazia-a desertar da União Soviética para os braços do capitalismo decadente de Paris e das suas meias em seda pura, e no segundo sucedia-se o quase inimaginável à época no cinema mainstream, dois homens a viverem com uma mulher.
Wilder seguiu-lhe as pisadas e tinha, na minha opinião, uma qualidade notável: conseguia por um longo período de tempo suspender o julgamento moral sobre o comportamento das personagens, por parte dele e, por consequência, do espectador. Sim, há consequências, obstáculos, perigos, mas vejamos as motivações das personagens principais em Some like it hot: Sugar Kane quer casar com um milionário que a remova da vida precária de cantora de orquestra e a mantenha afastada dos saxofonistas, a sua fraqueza maior. Osgood Fielding está na Florida, na sua excursão anual para encontrar uma corista com quem passe uma temporada e que irrite sobremaneira a mãezinha. Joe/Josephine/Shell Oil Junior quer fugir dos gangsters em vez de os denunciar, torna-se uma fraude na banda e cria um milionário, depois de saber qual é a fantasia de Sugar, para melhor a seduzir. Jerry/Daphne, em fuga, tal como Joe, cria Daphne, que primeiro usa para tentar seduzir Kane e depois, seja para ajudar Joe, seja para benefício próprio, passa o resto do filme a receber as atenções de Osgood a quem só revela a verdade no último instante.
E apesar disto, ou por causa disto, os nossos heróis são estas personagens, cheias de pequenos, grandes defeitos, que erram, se enganam mutuamente, até com as melhores intenções. Não há um segundo em que não estejamos a torcer por elas enquanto nos contorcemos de riso, a cada peripécia.
Voltemos ao princípio, o fim.
Wilder leva esta suspensão de julgamento até ao final do filme, até à punch-line das punch-lines “Nobody’s perfect”. Dita por um sorridente e imperturbável Osgood. A cara de estupefacção de Jerry é a nossa, do público (estamos a falar de 1959). Osgood acaba de dizer que não é por Jerry ser um homem que não se podem casar, equivalendo isso à confissão de Daphne de que fuma charutos.
É o próprio Wilder que diz, na sua biografia, que a América de 1959 não estava preparada para a resposta que ele daria se lhe perguntassem o que é que acontece depois do fim do filme.
A rodagem de Some Like it Hot excedeu em quase 50% os dias previstos de rodagem, custou mais meio milhão de dólares do que o previsto e não teve obviamente o selo de aprovação do Código Hays. E apesar disto, de toda a turbulência e problemas, dramas de bastidores, etc., é na minha opinião o mais próximo de uma comédia perfeita atingido até hoje e um dos melhores filmes da história do cinema.
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PS: Este artigo é dedicado à memória de Armando Sales Luís.
PS2: A maior parte das citações deste artigo referem-se a Nobody’s Perfect, Billy Wilder, A Personal Biography de Charlotte Chandler, e a Nobody’s Perfect, The Making of Some Like it Hot.