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Os Ciúmes Assassinos do Doutor Jivago

Desconfio que o ciúme é um sentimento adolescente. Comecei a desconfiar quando percebi que nunca me passou pela cabeça ter ciúmes da Michelle Pfeiffer e que os meus sentimentos já amadureceram muito desde os primórdios da Debra Winger, apesar de ainda ter ficado absolutamente convencido de que aquele sorriso estonteante de felicidade da Gwyneth Paltrow na Paixão de Shakespeare

This is a new world!,

era dedicado em exclusivo ao estonteado senhor do assento G18 da Sala Estúdio do Cinema Monumental que, de tão surpreendido, se sentiu corar e por acaso até era eu.

Estou na dúvida se a primeira vez que senti a picada humilhante desse sentimento adolescente foi por causa da Ginger Rogers, da Maureen O’Hara ou da menina lourinha que, no liceu finalmente misto, se sentava a meu lado por via da abençoada regra da ordem alfabética. A Ginger Rogers e a Maureen O’Hara não eram especialmente bonitas, mas uma dançava sem parar e em qualquer lugar(até no tecto!!!) com o Fred Astaire, e a outra, além de ser a ruiva mais ruiva que jamais vi a preto e branco, balouçava-se sem parar em lianas pelo meio da selva com o Tarzan, o que fazia delas mulheres fascinantes e me fazia, a mim, querer dançar em qualquer lugar como o Fred Astaire (massacrando a vizinhança com o desatino dos sapateados)e balouçar-me pela selva em lianas como o Tarzan (massacrando a vizinhança com gritos desafinados), tarefas em cujas tentativas acumulei sucessivos insucessos. A menina lourinha que se sentava a meu lado por via da abençoada regra das ordens alfabéticas chamava-se Ana Cristina e era lindíssima como nenhuma outra! Além do mais, corava muito e eu, vendo-a corar, via-a ainda mais lindíssima.

A partir daí, o ciúme devastou-me a adolescência…

Ferveu-me o sangue nas veias quando o Robert Redford/Sundance Kid se escondeu no quarto da Katherine Ross/Etta Place enquanto ela se despia lentamente na penumbra. E ferveu-me ainda mais quando ela, apercebendo-se da sua presença, em vez de o escorraçar pela janela, se limitou a dizer:

You know what I wish? I wish for once you’d get here on time.

Hoje, ao rever o filme, o sangue já não me ferve nas veias, mas continuo a desejar pedalar na bicicleta em lugar do Paul Newman/Butch Cassidy com a mesmíssima Katharine Ross/Etta Place sentada no guiador e a ouvir o J.H. Thomas cantar o Rain drops falling on my head. A Katharine Ross foi uma fonte inesgotável de ciúmes. Agora me recordo que em A Primeira Noite fiquei com uma inveja terrível do Dustin Hoffman que ainda por cima tinha também um caso com a mãezinha dela, a muito apetecível Anne Bancroft a fazer de Mrs. Robinson. Acho que foi esse o momento em que percebi, finalmente, que nem todas as mulheres a partir dos quarenta estão condenadas a ser só mãezinhas.

Da Natalie Wood tive ciúmes de roer unhas e sabugo. Gostava de ter emoldurada na sala, talvez por cima da lareira, uma fotografia daquela cena da banheira do Esplendor na Relva, ou com um sorriso de Maria no West Side Story, ou eternamente Rebelde sem Causa sem James Dean nem Warren Beatty nem nenhum desses molengas que a beijavam sem jeito nenhum, aposto que só para me encherem de nervos. Eu bem via como eles olhavam para mim com ar de gozo, exactamente o mesmo olhar de gozo que o Omar Sharif me deitava pelo canto do ecrã quando se abraçava à Julie Christie no Doutor Jivago. Eu fazia de conta que não era nada comigo, mas tudo piorava quando ele se virava de costas lá nos confins da Sibéria e, de repente, a sala do Cinema Paris ficava toda azul daquele azul dos olhos de Lara, daquele azul que era mar e céu num dia feliz. Ficava atormentado na cadeira, queria que o filme durasse horas e horas (e por acaso até durava), queria que o Yuri ficasse estraçalhado debaixo de um comboio, dava-me uma satisfaçãozinha vingativa (é muito feio, bem sei, mas o ciúme é mesmo assim) quando o via sair do eléctrico a correr e a deitar os bofes pela boca e a rebentar do coração, e ela sempre a andar, sem o ver bater desesperadamente nas vidraças do eléctrico, sem ver os olhos de carneiro mal morto a esbugalharem-se como olhos de garoupa, andando sempre pela rua alheia a tudo, alheia a todos, eu ria-me por dentro, lá muito no fundo, a sala do Cinema Paris ficava ainda mais azul, convencia-me de que ela caminhava ao meu encontro num ponto qualquer da plateia antecipadamente combinado, num ponto qualquer da Rua Domingos Sequeira ou do Jardim da Estrela, perto dos repuxos da água, por exemplo, ou do coreto, e o Dr. Jivago agarrado ao coração, de braços estendidos em desespero, muito morto na calçada e com ciúmes de nós.

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