A brutal guerra civil na Síria gerou uma terrível crise humanitária. Dos quase 7 milhões de refugiados que abandonaram a Síria, mais de 5,5 milhões encontraram abrigo no outro lado da fronteira, no sudeste da Turquia. Com acesso mínimo a condições dignas, de educação, de assistência médica e outros recursos básicos. Homens, mulheres, crianças, velhos: é da História serem os mais frágeis dos frágeis os que se expõem à vulnerabilidade. Aqui, as crianças.
Publicado em 2021, i saw the air fly oferece um vislumbre íntimo do quotidiano de algumas dessas crianças. Em rigor, o ponto de vista dessas mesmas crianças. i saw the air fly é um retrato colectivo de superação e alegria, fascínio e curiosidade, que compila mais de 100 fotografias a preto-e-branco e que nos trazem o trabalho do Sirkhane Darkroom.
Sirkhane Darkroom é um programa de fotografia para crianças refugiadas na região fronteiriça entre a Síria e a Turquia. O programa começou em 2017, em conjunto com uma ONG, a Sirkhane Social Circus School. O fotógrafo Serbest Salih, ele próprio um refugiado sírio, é o director e cofundador deste programa em que as crianças são convidadas a participar, independentemente de origem, nacionalidade, crença, onde se integram, além de sírias, crianças curdas e iraquianas.
São distribuídas pelas crianças máquinas fotográficas compactas para que documentem livremente as suas vidas diárias. Elas próprias participam e aprendem o processo de revelação e impressão das suas imagens numa pequena câmara escura ambulante e improvisada. O projecto poderia ter utilizado máquinas digitais point-and-shoot com a mesma facilidade, mas Salih queria que as crianças experimentassem o processo de fotografar e a magia de revelar impressões. Salih elucida-nos como o processo analógico de revelação obriga à necessidade da paciência. Não há gratificação instantânea e não há como interromper o momento com a curiosidade de olhar para as fotografias (instantaneamente) no écran da máquina digital.
i saw the air fly é uma colecção de imagens que impressiona pela força e pela liberdade. Pela alegria. E é na alegria infantil, na diversão destas crianças em contexto adverso, que subjaz a força do livro. Em circunstâncias extraordinariamente desafiadoras os participantes apontam as suas câmaras – o seu olhar – para os seus momentos divertidos e alegres (quase) indiferentes à tragédia do deslocamento da qual são protagonistas. E é por isso que i saw the air fly é relevante: são imagens novas na história do sofrimento humano (passe a redundância), imagens protagonizadas e produzidas por quem antes estivera ausente da História.
Estas fotografias contam uma história nova do que acontece depois de as balas pararem de voar, enquanto homens, mulheres, crianças e velhos tentam juntar os estilhaços em que se espalharam as suas vidas. Como Salih observa: “Estas não são as fotografias que os adultos esperam ver de crianças que cresceram cercadas por conflitos, não são fotografias de trauma ou tristeza. Em vez disso, elas são um testemunho da imaginação infantil, do poder curativo da fotografia e uma perspectiva encantadora da infância”.
Há qualquer coisa de intemporal ao observarmos as crianças a brincar. O filme a preto-e-branco transmite e enfatiza essa atmosfera exterior ao tempo melhor do que os dispositivos digitais. Muitas das imagens tendem a ser um pouco ásperas, granulosas, quase artesanais, o que lhes confere maior densidade. Há horizontes inclinados, sobre-exposições, (des)focagem pelo facto do objecto estar demasiado próximo da máquina e outros “erros de composição” que transmitem com precisão o caos e o acaso da curiosidade infantil onde não há regras ou preocupações inúteis. Onde importa apenas descobrir e desvelar o mundo.
As fotografias são impressas uma por página ou dispostas em duas páginas como uma rajada, breve mas urgente, como um staccato a representar as circunstâncias em que as fotografias foram tiradas: por exemplo, a fotografia na página à esquerda mostra uma jovem a rezar numa sala vazia apenas coberta por um tapete, ao lado de uma cadeira de plástico que é um pouco mais alta do que ela; na fotografia à direita um menino brinca com uma argola de hula-hula. Algumas, poucas, imagens retratam adultos, mas na maioria são apenas crianças mergulhadas nos seus próprios mundos.


As circunstâncias da guerra são insinuadas, apenas entrevistas nas margens e em alguns detalhes reveladores. A representação mais directa e concreta da guerra aparece a meio do livro: um helicóptero paira num céu cinza-ardósia, granulado e monocromático, situado no centro inferior da imagem, que, representado em silhueta como vulto sinistro, se revela o significante do conflito em curso.
As fotografias são impressas sem legendas – apenas nos é dado nome próprio e idade do fotógrafo. Estas fotografias dispensam legendas. A ausência de informação ou catalogação convida-nos a reflectir e a experimentar o que cada um dos fotógrafos experimenta a cada imagem. E aqui reside a força e expressão deste pequeno e imprescindível livro de fotografia.
i saw the air fly, Sirkhane Darkroom, Mack Books, 2021.
160 páginas.
