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Ladies and Gentlemen, Simon and Garfunkel

Quando tinha 7 anos, e sem nunca ter saído de Portugal, o Central Park do outro lado do Atlântico tornou-se mais familiar que o Parque de Monsanto, mesmo ao lado de casa, em Lisboa. Depois de ver o concerto do Paul Simon e Art Garfunkel na minúscula televisão (provavelmente ainda a preto e branco), passei os anos seguintes a ouvir o LP vezes sem conta, memorizando letras, decorando as frases ditas entre músicas e seguindo os arranjos especiais para aquele dia.

Aprendi que algures na vida adulta haveria melancolia, amores perdidos, reencontros amargos e cinquenta maneiras de nos livrarmos de um namoro. Durante muito tempo a minha entrada preferida foi “when I think back on all the crap I learned in highschool, it’s a wonder I can think at all”, que cantava entredentes quando algum professor da escola me parecia injusto ou desinteressante. Ironicamente, eu nunca haveria de deixar a Academia.

Tantos anos depois, aquelas músicas e letras continuam a ser familiares e aconchegantes, mesmo que mudando a minha perspectiva sobre as letras das músicas. Com o tempo, consegui dar sentido ao “he kissed his boy as he lay sleeping, then he turned around and headed home again”, acrescentei camadas de leitura ao “she seemed so glad to see me, I just smiled”, e continuei a sorrir com a brincadeira de espiões “I said «be careful, his bowtie is really a camera»”.

A música e as outras artes têm a capacidade de nos agarrar pela emoção, por motivos que nem sempre identificamos e na verdade tanto faz. Tocam-nos em pontos especiais e dão-nos prazer, conforto, alegria, companhia, numa compreensão silenciosa. Quando um filme, um livro, uma música, ou um concerto inteiro nos puxam para dentro, parece que foram feitos especialmente para nós, como uma luva por medida para cada uma das nossas mãos, a direita e a esquerda.

Por outro lado, a ciência tem sido assunto que é compreendido essencialmente por quem vai lá dentro, a estuda e a constrói. A linguagem especializada usada entre os cientistas pode soar críptica, mas é necessária para descrever com precisão elementos, processos e interações, para que fique claro do que se trata – que é aquilo e não outra coisa qualquer. Por exemplo, uma planta pode ter nomes diferentes em terras diferentes, mas para um cientista em qualquer lugar do mundo tem exatamente o mesmo (que mais ninguém usa a não ser os peritos). As décadas passadas em hiper especialização têm um preço, normalmente pago em taxas de aborrecimento mortal se alguém passa pela asneira de querer saber o que um cientista faz para ganhar a vida. Se queremos ver uma pessoa perder pinga de sangue na cara é dizermos num encontro social que somos cientistas. De repente, a conversa de circunstância sobre as profissões de cada um remete os nossos interlocutores para um tempo de cadeiras de escola, em que se sentiam torturados pela tabela periódica, equações de segundo grau ou os detalhes biológicos da germinação de um feijão.

Na verdade, uma carreira dedicada à investigação científica é uma vida de criatividade, ideias, tentativas, muitos erros e uns quantos sucessos, viagens pelo – e inúmeros coffee breaks, almoços, jantares, saídas para copos e até (imagine-se!) dança. Mas aposto o mindinho do pé esquerdo que normalmente não é isto que se imagina quando se pensa na vida de cientista. Muito disso é culpa dos próprios, ainda que não de propósito.

As décadas passadas a apurar a linguagem para os termos técnicos adequados entre a comunidade científica fazem com que a maioria dos investigadores tenha muita dificuldade em perceber como falar sobre os seus temas de investigação, de forma a que outras pessoas os entendam e se possam entusiasmar com eles. Há imensa poesia, música, beleza, suavidade, paixão, arrebatamento, na ciência. O que há é pouca gente a dar por isso, como no poema de Álvaro de Campos que nota como o binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo (óóóó, o vento lá fora).

Alguns cientistas começaram a preocupar-se com a linguagem que usam, se querem que os não especialistas na sua área os entendam. Surgiu a necessidade de traduzir, com a preocupação de não trair o significado original. Usar palavras, frases, contextos que as pessoas percebam. As outras pessoas. Aquelas que não sabem o que são mitocôndrias, ácido acetilsalicílico ou o bosão de Higgs.

Os motivos que levam cientistas a querer que as pessoas percebam o que fazem nem sempre são apenas altruístas, têm também a ver com a necessidade de que haja compreensão, apreço e apoio pelas ciências. Não foi por acaso que Galileu escreveu o “Diálogos sobre os Dois Máximos Sistemas do Mundo” em italiano e não em latim. O latim era reservado para as elites, uma língua erudita que as massas papagueavam nas cerimónias eclesiásticas, mas sem a compreender. Se se queria que as pessoas percebessem era preciso falar-lhes em italiano. Ainda que a Igreja tenha demorado séculos a aceitar que a posição relativa dos planetas no sistema solar nada tinha a ver com a relevância da Terra no Universo (apenas um pálido ponto azul, de acordo com a selfie do sistema solar que a Voyager 1 tirou em 1990), o destino havia de dar a Galileu reconhecimento, fama e glória internacionais. Até lhe cantamos o nome quando fazemos sing-along do Bohemian Rhapsody dos Queen, não por acaso com um doutorado em astrofísica na guitarra, Brian May. 

Já não se fica sem cabeça ou a liberdade por defender factos cientificamente comprovados, ainda que se perca frequentemente a paciência quando em praça pública (em especial em discussões em redes sociais) se confundem factos com opinião. Existem algumas pessoas que resistem à prova dos factos, que demonstram que determinada matéria tem ou não base científica para se poder dizer “é assim” e não “é de outra maneira qualquer”. Normalmente os motivos têm a ver com resistências emocionais ao tema, seja porque os factos não estão alinhados com aquilo a que se está habituado a ver ou a pensar, ou porque são demasiado estranhos para se considerar possível no grande esquema das coisas. Existem inúmeros autores que se têm dedicado a estudar o motivo que leva pessoas a acreditarem em coisas palermas ou bizarras, como a teoria da Terra plana. Ou a acharem que se rebatem artigos científicos com revisão pelos pares com um vídeo no Youtube “que eles não querem que nós saibamos”. Na verdade ainda estamos a aprender a lutar contra estas marés, que sempre existiram mas agora parecem querer levar-nos para fora de pé.

Alguns de nós, apaixonados pela descoberta guiada pela curiosidade, não conseguimos conceber o mundo sem uma aproximação analítica ao que nos rodeia. Fazemos questão de basear as decisões no melhor conhecimento científico à data. E parece-nos que algumas coisas têm provas tão robustas que não precisam de defesa ou de embaixadores. Mas na verdade vivemos numa bolha. Para as pessoas que não têm os conhecimentos, recursos ou vontade de procurar as respostas nos sítios que consideramos fiáveis e rigorosos, as suas fontes, o seu conhecimento e as suas ferramentas são as que lhes parecem as mais adequadas. Como é que podemos dialogar com pessoas adultas, capazes, inteligentes, mas que não ouvem a mesma canção? 

Em vez de os enterrarmos em bibliografia, talvez tenhamos de aprender a melhor forma de ligar a razão às emoções, como  as artes sempre fizeram. Os que são naturalmente encantados pelo olhar científico do mundo dispensam esse empurrão, mas se queremos que mais pessoas se interessem por compreender do que falamos, precisamos de procurar as chaves de leitura que lhes faltam. Aproximar as pessoas cientistas das não cientistas pela parte que faz delas pessoas, aproximar o conhecimento de quem não o tem pelos ângulos de maior interesse, aproximar o glamour do prémio Nobel da Química ao da Literatura, o prémio Nobel  da Física ao da Paz.

Quanto ao Simon e Garfunkel, a todos aqueles de nós que continuamos de coração despedaçado pelo fim do dueto, a ciência vem em nosso auxílio. Em 2015, Stephen Hawking deu uma conferência sobre os temas de ciência que estudou a vida toda: o  Universo, os seus mistérios e o que já sabemos sobre ele. Uma pessoa pediu a palavra para fazer uma pergunta, queria saber a opinião do físico vivo mais famoso do planeta sobre o efeito cosmológico da saída de Zayn Malik da boy band One Direction, que partiu milhões de corações adolescentes. “Finalmente, uma pergunta sobre algo verdadeiramente relevante”, exclamou Hawking. Deu então os melhores conselhos que qualquer pessoa triste com o desenrolar de eventos pode receber: prestem muita atenção à investigação em física teórica, porque um dia destes pode chegar a prova da existência de universos paralelos. “Se assim for, não será impossível que algures, noutro Universo que não o nosso, haja um mundo onde o Zayn continue nos One Direction.”

A física teórica pode bem vir a ser a cura para a melancolia, impedir que amores se percam, fazer com que os reencontros sejam sempre doces e que nunca, nunca, levemos uma tampa. Fiquemos atentos. 

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