Monstera5C

Simpatia Inacabada #2

MONSTERAS NA BIBLIOTECA

Um dos meus parágrafos preferidos de Walden, talvez o preferido, é este, na secção “Economia”: 

“Há muito tempo perdi um cão de caça, um cavalo baio e uma rola; procuro-os até hoje. Falei com muitos viajantes sobre eles, descrevendo os seus percursos habituais e os chamamentos a que respondiam. Um ou dois tinham ouvido o cão, o galope do cavalo e até visto a rola desaparecer atrás de uma nuvem, parecendo tão ansiosos por encontrá-los como se eles próprios os tivessem perdido.” (minha tradução, para a Relógio D’Água). 

Gosto particularmente desta passagem pelo facto de resistir às explicações dos comentadores,  que a consideram o momento mais enigmático do livro. Todos os livros deviam ter passagens que os leitores, os comentadores e os tradutores não conseguem perceber a cem por cento e que os autores não querem decifrar. Os estudiosos tentam identificar as possíveis referências do cão de caça, do cavalo baio e da rola que Thoreau menciona, especulando que devem ser pessoas, mas podem ser só ideias, sentimentos, encarnações de forças ou fraquezas, companheiros imaginários que o autor perdeu, ou tudo isto simultaneamente.

Não é bem a mesma coisa, mas podemos imaginar que a vida e as leituras de cada um têm companheiros ou figuras protectoras que assumem a forma de animais. Os que acompanham as minhas leituras são os gatos, os ratos e as corujas. Parecem animais incompatíveis: vigiam-se uns aos outros, caçam-se uns aos outros, fogem uns dos outros. Ao mesmo tempo, é como se se completassem mutuamente, não podendo existir uns sem os outros, apesar do perigo mútuo que representam. 

As palavras “gato” e “rato” diferem apenas pela letra inicial. O gato caça ratos, mas partilha das letras que formam a sua presa. Sem o rato, o gato não poderia ser como é. Mas não se trata de o rato existir só para concretizar o gato. Também ele caça alguma coisa. O rato rói para lapidar as coisas, libertando-as do que está a mais. Quanto às corujas, repetem parcialmente a anatomia dos gatos. As cabeças das corujas e dos gatos são parecidas. Como os gatos, as corujas caçam ratos e caçariam gatos também, se não fossem caçadas por eles.

O gato caça, dorme, precisa de atenção e é caprichoso; o rato é tímido, foge, mas pode fazer estragos e assusta algumas pessoas; a coruja é intensa, quando não sonolenta, mas, mesmo sonolenta, não tem paciência para inanidades, rapidamente desviando a atenção para o que lhe interessa, coisas que pode destruir com o bico e as garras. Alguém fez notar que, nos melhores textos, se sente o sabor do sangue do autor.

Pascal Quignard disse que a leitura é furtiva e predadora, como os gatos e as corujas, mas esqueceu-se dos ratos. O rato não é o texto em si, nem sequer as palavras, mas é como as letras, sempre em fuga, escondendo-se, permutando, multiplicando-se, turvando-se perante o olhar que envelhece e deixa de conseguir ler sem óculos. Os ratos dispersam-se, como a atenção dos leitores. Quando são perseguidos, refugiam-se nos erros e nas frases enroladas como tapetes à espera de dias melhores. Estão onde não deviam estar.

Invocações de animais como guardiões do sentido há muitas, mas ultimamente tenho-me perguntado se também haverá plantas que funcionam como uma espécie de assistentes da leitura.

Em Lisboa, a casa onde moro tem um painel de azulejos em que, ao lado de uma costela-de-adão, uma figura feminina ensina outra a ler. Por gostar da repetição, a primeira planta que comprei para esta casa foi uma costela-de-adão. Na varanda, torna o espaço menos inóspito, mas contorce-se em direcção à luz e, para se equilibrar, desenvolve raízes aéreas verdadeiramente assustadoras, dignas de pesadelos recorrentes na infância. É preciso cortá-las de vez em quando mas com cuidado, para a planta não ser arrastada pelo vento para os céus de Lisboa.

Antes disso, já houve costelas-de-adão noutra casa. Estavam do lado de dentro da garagem, junto a uma porta envidraçada que, com o tempo e a multiplicação das plantas, deixou de ser usada. Davam-se bem na penumbra, mas precisavam de saber onde as janelas e as portas estavam. Sempre que alguém da casa se interessava por elas e as regava, desdobravam-se em folhas grandes, como mãos estendendo-se para a luz. Quando alguém se aproximava para as regar, pareciam sussurrar no escuro, mas são plantas que sobrevivem sem muita água. Se, anos depois de terem sido regadas pela última vez, repararmos nelas, ressequidas e rodeadas de teias de aranha antigas, e tornarmos a regá-las, voltam a despertar.

Numa revista sobre plantas, li uma vez acerca de alguém que faz questão de ter na sala uma costela-de-adão. Também conhecida como Monstera deliciosa, a costela-de-adão é uma planta que cresce desordenadamente, por muito que tentemos domesticá-la. A essa pessoa, a presença desta criatura vegetal desgrenhada numa sala de outro modo impecável lembra que nem todas as coisas têm de ser perfeitas e que nem tudo pode ser controlado.

Talvez não seja má ideia termos livros que desempenham funções semelhantes às da costela-de-adão nesta sala. Umberto Eco falou da noção de antibiblioteca, aplicando-a aos livros das nossas bibliotecas que ainda não lemos, mas de que podemos vir a precisar. Eu estou a pensar mais nos livros que já lemos e achámos insatisfatórios, a ponto de acharmos que poderíamos livrar-nos deles.

Por exemplo, antes de mudar para esta casa, decidi aproveitar a ocasião para doar alguns volumes. Não é que lamente as minhas escolhas na altura, mas, entre os livros de que abdiquei, há um em particular que ainda hoje me faz sentir algum arrependimento: The Silk Road, de Edmund de Waal (publicado em português com o título A Rota da Porcelana, tradução de Maria Lúcia Lima).

Edmund de Waal é um ceramista inglês, mais conhecido entre nós como autor de A Lebre de Olhos de Âmbar, um ensaio sobre a colecção de esculturas japonesas pertencentes a um tio. É impossível ouvirmos a paixão com que fala das suas actividades profissionais e artísticas sem sentirmos vontade de ler os livros que escreveu. Um volume sobre as viagens que fez para aprender mais sobre porcelana teria potencial para ser realmente cativante. A Rota da Porcelana, contudo, é um livro totalmente falhado: demasiado longo, com pouca informação concreta, sobrecarregado de passagens pseudolíricas. Depois de ler mais de cem páginas, pu-lo de lado, pensando que preferia esquecê-lo para sempre. Saiu da minha casa entre os livros que seleccionei para doar.

Desde essa altura, já tive muitas vezes vontade de voltar a folhear A Rota da Porcelana. Preciso de verificar se a minha reacção foi exagerada, mas também quero perceber o que aconteceu à inspiração inicial do texto. É o género de livro cujo fracasso nos deixa perplexos. Terá falhado por excesso de ambição? Será que é mais difícil escrever sobre os temas mais próximos? Poderá ajudar-nos a não escrever maus livros? 

Na verdade, não existem assim tantos livros que não sejam medianos ou maus; há alguns bons e pouquíssimos inesquecíveis. Os livros que temos em casa, no entanto, desempenham mais papéis do que serem bons ou maus. Podemos precisar de livros que nos pareceram imprestáveis. Não é impossível aprendermos a gostar de um texto que antes nos pareceu irrecuperavelmente entediante e mal escrito. E, mesmo entre os livros de que nunca gostaremos e que nunca leremos até ao fim, há um ou outro que nos ajudam a perceber outras coisas. Os maus livros podem ser nossos amigos, se tivermos cuidado com as raízes e seguirmos as folhas que procuram a luz.

Há várias maneiras de um livro ser mau, embora os livros que saem bem dêem quase sempre um salto de fé, ou de falta dela, no vazio. De qualquer modo, este texto não é sobre livros bons ou maus, mas sim sobre elementos que inicialmente julgamos que não deviam estar onde afinal são imprescindíveis.

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