Laurent_de_la_Hyre_Gramatica_1650-Alegoria da Gramática, de Laurent de la Hyre (1650)

Simpatia inacabada #3

Apanhar amoras

Eu tencionava escrever uma crónica sofisticadíssima, dos pontos de vista literário, filosófico e lexical, mas ocorreu-me que será a primeira Simpatia Inacabada de 2023 e, no início do ano, prefiro dar um passeio. Depois de uma tempestade ou de um ano passar, como um comboio de alta velocidade, deixa incongruências e sinais que parecem dotados de uma história ou de um significado próprios, a que não temos acesso. O mundo está cheio de significados abandonados, diz o título de uma canção de Felicia Atkinson, citando Don DeLillo. Percorremos o mundo entre estas coisas secretas, passando por vários lugares.

Para o número de 22 de Setembro de 2022 da New York Review of Books, Jon Klassen desenhou uma capa com coisas que se apanham do chão durante passeios no Inverno – galhos, pedrinhas, cascas de árvores, penas, o esqueleto incompleto de uma folha, fragmentos da concha de um caracol, pétalas secas, sementes, vidro polido, algas, pequenas histórias, às vezes pura forma apenas. Há quem guarde estas coisas em caixas, em frascos transparentes, ou no barracão de jardim onde trabalha isolado, mas também podem ser guardadas nas frases. Quantas frases são escritas para proteger alguma coisa?

Será a gramática das frases como hera que desenha os contornos dos objectos dentro das caixas, do terrário ou do barracão no jardim, delimitando-os? Laurent de La Hyre (1606-1656) representou-a como uma mulher de aparência masculina. (Ou como um homem disfarçado de mulher?) A esta figura andrógina, o pintor associou objectos menores ou quotidianos: um jarro desgastado e dois vasos de barro invadidos por musgo e humidade em que parecem ter sido plantadas recentemente anémonas e prímulas de ar frágil. Com o jarro na mão direita, a Gramática rega um dos vasos com um fio de água. Na mão esquerda, ostenta uma faixa com a inscrição  “Vox litterata et articulata debito modo pronunciata”. Regar as flores é uma metáfora pictórica para o desabrochar das ideias: de acordo com La Hyre, graças à Gramática, o pensamento expressa-se com clareza; a Gramática ajuda as plantas e as frases a florescer.

Dir-se-ia que as coisas silvestres não interessam muito a La Hyre – ficam para lá do muro de pedra que demarca o terraço ou a varanda à frente de um loureiro e uma azinheira, mas a roupa prática com que vestiu a Gramática facilmente funcionaria como traje de passeio. No fim do ano, como no fim do mundo, se sairmos de casa podemos apanhar não só coisas que restam de tempestades, mas também palavras, como quem apanha amoras. Entre as silvas, veremos amoras verdes, vermelhas, púrpura, pretas. Nunca são muito doces. Mancham-nos as mãos, deixando-as pegajosas. Às vezes, picamo-nos. Como nem sempre estamos preparados com frascos ou taças para as recolher, há quem as apanhe para lenços, que ficam com nódoas para sempre. Depois de apanharmos amoras, chegamos a casa de sapatos enlameados, porque a terra está húmida e tem muito barro.

            Numa exposição de 2022, María Berrío imaginou os percursos de uma mulher que sobrevive ao fim do mundo. Esta figura vagueia sem rumo, não só por desertos, mas também por cidades abandonadas e pequenas aldeias despovoadas. Tem de se alimentar com o que encontra pelo caminho: cogumelos ou plantas resistentes e silvestres, que singram sem grandes cuidados de cultivo. No texto que escreveu para a exposição, Berrío esclarece: “Já algumas plantas irrompiam por entre as pedras e as cinzas”.

Interessa-me o acto de partir, passear, vaguear enquanto reacção a um fim – do sentido, do ano, do mundo, de uma fase da nossa vida em que simplesmente deixamos de encaixar no lugar onde estamos. Há muito tempo que penso na expressão “não saber qual é o seu lugar”. Apesar de tantas vezes ser usada para diminuir ou denegrir alguém, partindo da ideia de que todos ocupam uma posição superior ou inferior que não podem abandonar, sob pena de causarem desordens e dissabores impensáveis, sempre me pareceu uma boa descrição do modo como as pessoas vivem – entre espaços e tempos, nunca num só lugar.

No último mês de 2022, por acaso, encontrei numa livraria o ensaio Être à sa Place, de Claire Marin, com imagens de Helena Almeida na capa. Marin salienta que o “nosso lugar” não é nem a nossa origem, nem os sítios a que chegámos, mas sim aqueles em torno dos quais circulamos – e onde nem sempre nos convidam a entrar. O nosso lugar é aquele com que sonhamos, uma espécie de melodia que só nós ouvimos, às vezes sem dela termos consciência.

Segundo Marin, sair de casa, passear ou vaguear, ler livros e ver filmes são exercícios de liberdade que nos dão a conhecer formas de vidas a que supostamente não devíamos pertencer, pessoas totalmente diferentes daquelas que já conhecemos ou personagens fictícias que despertam em nós a consciência dessa melodia que nem sabíamos que tínhamos dentro. Mostram não só os lugares que podemos atravessar, mas também que nós próprios somos lugares de passagem, onde se cruzam vivos e mortos, pessoas reais e personagens fictícias, sonhos que outros tiveram e nós herdámos, mas temos de aprender a articular, a traduzir ou a concretizar.

Aos momentos em que estamos dentro do barracão do jardim, a trabalhar, ou no terraço, a regar as plantas recém-plantadas, esperando que desabrochem, quero acrescentar deslocações para lá das quatro paredes, dos muros ou da gramática dentro dos quais vivemos, e apanhar amoras e outras formas selvagens – superalimentos para a imaginação. Um 2023 com alguns passeios: é o que desejo tanto às pessoas que não sabem qual é o seu lugar como àquelas que pensam que sabem.


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Imagem: Alegoria da Gramática, de Laurent de la Hyre (1650)
Simpatia inacabada #3

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