O verão é tempo de blockbusters e se isso há uns anos era sinónimo de idas ao cinema para escapar ao torrão do sol e aproveitar filmes de acção, super-heróis ou dinossauros, em 2022 também foi sinónimo de ficar em casa e ver séries pensadas como grandes eventos. Foi o caso de Stranger Things para a plataforma Netflix — que chegou num momento bastante circunspecto da vida desta empresa de Silicon Valley.
Stranger Things é um dos grandes sucessos da Netflix, uma série que conseguiu penetrar o zeitgeist com uma visão nostálgica, a mais-do-que roçar o pastiche, dos anos 1980 e de filmes spielbergianos com miúdos em bicicletas a desafiar as convenções dos adultos.
Entre o final de maio e o início de julho deste ano, chegaram os episódios da quarta e penúltima temporada, em formato repartido (os primeiros sete episódios surgiram a 27 de maio e os últimos dois no dia 1 de julho). O regresso da série criada pelos irmãos Duffer coincide com um momento particular na história da Netflix: depois de uma década de crescimento imparável pelo mundo, somando subscrições de uma forma ainda não igualada por nenhuma outra plataforma, o crescimento do número de subscrições não se verificou (estimam-se perdas de membros em número a rondar os 2 milhões) e as acções da empresa começaram a cair no primeiro semestre de 2022 e, apesar de alguma recuperação a partir de Julho, estão longe do pico . Este volte-face já levou a cortes significativos não só em custos de produção futuros como a nível de recursos humanos. O proverbial cinto está a ser apertado e a viragem do vento levará inevitavelmente a perguntas sobre a estratégia de programação vindoura.
Stranger Things tornou-se, ao longo dos anos, uma das séries flagship da Netflix, com o seu ambiente de regresso ao passado, o seu casting irrepreensível e um mundo sobrenatural com suficiente profundidade e mistérios para conseguir captar a atenção dos espectadores numa paisagem mediática cada vez mais fragmentada. Se é difícil pensar no que se poderá escolher para ver num mar de filmes e séries que parecem não dar descanso com as suas sucessivas estreias (estamos sempre a perder qualquer coisa ou a não ver ao ritmo de toda a gente), é imperativa a existência de exemplos que são eventos em si, que agarram a atenção de forma mais ou menos generalizada e a prendem, o que é um trunfo que não se pode tratar com frivolidade.
A importância de Stranger Things como blockbuster no mundo do streaming é fácil de entender face à actual situação da Netflix. É um momento para voltar a seduzir novos subscritores e tentar mantê-los. Não será por acaso que a estratégia de estreia da temporada foi bifurcada — embora existam mais factores do que apenas a questão financeira. A queda da plataforma na bolsa levou a projecções até ao fim deste ano que assustaram os seus accionistas por contrariar as previsões anteriores. No início de 2021, por exemplo, a Netflix anunciou que já não precisaria de financiamento externo, algo que acontecia desde 2011. Isto parecia validar a estratégia da empresa no sentido em apostar na criação do seu próprio conteúdo de entretenimento, despendendo milhões de dólares no processo. Face à quebra do crescimento das subscrições, o objectivo até ao final do ano passava por melhorias nesta frente e era aqui que o sucesso do regresso de uma das flagships da plataforma americana entrava em jogo. Embora seja apenas uma série num mar de conteúdos, tem estado de forma consistente no topo dos conteúdos originais da plataforma desde (segundo a Parrot Analytics indicou à Buffering) que saiu a terceira temporada em 2019, algo raro. Outras séries de êxito conseguem manter-se alguns meses (como The Witcher), mas Stranger Things conseguiu persistir como a predilecta mesmo nos anos de “intervalo” entre temporadas.
O mundo, contudo, já não é o mesmo desde a estreia da terceira temporada. O binge mode tem sido uma estratégia cada vez menos usada, com a Disney+, por exemplo, a preferir o modo semanal de exibição. Desta forma, a “conversa” que se gera em torno de uma determinada série é expandida no tempo, dado que cada episódio é uma nova fonte de interacção nas redes sociais, uma nova inspiração para artigos, podcasts ou vídeos no YouTube, contribuindo para toda a cultura mediática de “acompanhamento” de séries que existe e funciona no sentido de contribuir para que algo rompa ou se mantenha no zeitgeist. Lançar os episódios de Stranger Things em duas fornadas é uma forma de contribuir para que a conversa em torno da mesma se dilate no tempo, mas não só: é uma forma de manter as subscrições de quem possa só estar interessado neste blockbuster da plataforma.
Três anos depois da última temporada, Stranger Things regressou com episódios de duração megalómana. Face ao ethos do blockbuster (sempre maior para ser melhor), os episódios têm durações excêntricas, como se cada episódio fosse um filme — a série expande-se também na geografia dado que a nova temporada decorre em múltiplas localizações, da califórnia à Rússia, estando sempre sediada em Hawkings, Indiana. Tal como Game of Thrones — cuja aproximação do fim levou a episódios cada vez mais longos com um orçamento cada vez maior para efeitos especiais —, assim se está a comportar Stranger Things, mostrando-nos que tudo nesta série aponta para ser um evento a não perder.
Tudo cresceu, incluindo os miúdos que protagonizam a série, agora já jovens adultos. Mas ainda é imprescindível possuir uma subscrição para se assistir a algo catalogado como imperdível.
Agora só falta ver como termina, na quinta temporada.