A Bruxa - Tarot Almanaque, Agosto 2023, por Lia Ferreira

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Carta XXIII – A Bruxa


(Ao que parece,) aspectos positivos
: Insegurança, frivolidade, falta de amor-próprio, corporativismo, capitalismo, domesticidade, saltos altos sempre!, expectativas irrealistas de beleza estereotipada

(Pelos vistos,) do lado negativo: Confiança (feminina), poder (feminino), assertividade (feminina), tranquilidade (feminina), realização profissional (feminina), laivos de feminismo, emancipação (feminina), questionamento (feminino), “feitiçaria”, sedução.

Ou vice-versa, dependendo do “Gaze

_____


A quantos graus Fahrenheit arde uma Barbie?


Estamos no ano de MMXXIII, 128 anos depois da invenção do cinema, 207 desde a da fotografia, com vários séculos de literatura e pintura, o canon, – tudo! – sempre ao serviço do male gaze, e vem um filmezito da Barbie, que nem é a coisa mais feminista que vão ver hoje (já que é a crítica monetizada pelo próprio sistema) e o machedo já queima bonecas. Isto é o conservadorismo (e, por conseguinte, o princípio do privilégio) explicado às criancinhas, e é útil.

Como qualquer bruxa que se preze, a Barbie tem o dom da feitiçaria: consegue converter em apoiantes os iniciais contestadores e em fervorosos inimigos aqueles que em tempos a exaltariam. É obra.

Que o universo Barbie aposte na artificialidade não é surpresa, e terá sido essa uma das múltiplas razões a alimentar argumentos contra e a favor; o que não deixa de me surpreender é a existência (e o sucesso) de pessoas tão caricaturais e tipificadas que o próprio Gil Vicente teria dificuldade em conceber, sob pena de ser acusado de inverosimilhança.

Convenhamos (e, nisto, até as mulheres com aparência de Barbie estereotipada – “Stereotypical Barbie” é a personagem principal do filme – deviam prestar muita atenção, principalmente na hora de votar, nos EUA ou em qualquer lugar): tipos que defendem a retirada de direitos entretanto conseguidos e instituídos (vossos e de pessoas que pelo simples facto de não corresponderem ao mesmo estereótipo ainda têm ou tiveram mais dificuldade em alcançá-los) e/ou propõem que nunca sejam alcançados (pelos mesmos), reclamem que agora não têm direitos nenhuns (têm os que sempre tiveram, de acordo com o seu género, etnia e classe social) porque não podem (e o facto é que geralmente podem!) ofender ou oprimir alguém (os que não tinham/têm esses mesmos direitos), garantirão que, depois de os colocarem no poleiro, nunca mais os poderão de lá tirar e eliminarão as conquistas que, a custo, começaram a equilibrar a distribuição de poder e liberdade. Darlings, ter poder ou estar ao lado de quem o tem não é a mesma coisa.

O filme Barbie, escrito (em parceria com Noah Baumbach) e realizado por Greta Gerwig, tem alcançado vários feitos com distinção: recordes de bilheteira (segundo a Forbes, “Barbie, um filme que foi apelidado pelos críticos de ‘lixo feminista de ódio aos homens’ e ‘poderoso’, ‘feroz’ e ‘divertido’ pelos fãs”, bateu recordes de bilheteira em quase 20 países, no fim-de-semana da sua estreia, superando até o “rival” antitético Oppenheimer, de Christopher Nolan), esgotou stocks de roupa cor-de-rosa, estimulou machistas de todo o mundo a lutar por uma causa adormecida, uniu feministas (mesmo aquelas que nunca gostaram de brincar com Barbies ou nunca as ofereceram às suas filhas) na luta contra a histeria machista, deu-nos o prazer de ver personagens femininas impor as suas vontades com assertividade e imaginar, ainda que de forma caricatural e simplista, o que seria um mundo não dominado pelo patriarcado e (paradoxalmente, ou não fosse, previamente ao filme, a Barbie estereotipada disso o significante) livre de female chauvinist pigs.

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Memes inspirados em “críticas de 1 estrela, de homens furiosos, no Letterboxd”, daqui.


Então, e vale a pena? – perguntarão os leitores.
“Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, como já dizia o outro.

Não sendo uma obra-prima, não deixa de ser divertido, numa série de apontamentos que questionam ou criticam o próprio conceito de Barbie – ou, atalhemos para: é a Mattel a conquistar novos mercados. Sim, é uma insinuação feminista dentro do próprio capitalismo selvagem que engole meninas e consome mulheres e as descarta, através de armas poderosas como a publicidade e os algoritmos.

Mas, se não conseguimos ganhar as lutas todas de uma vez, antes isso que coisa pior (que é aquilo que nos servem todos os dias).


Numa espécie de Interseccionalidade para Totós (afinal, ainda são precisos manuais deste género), enumerando todas as minorias discriminadas de que se lembra (mas, e porque não?), o filme quase consegue a proeza de conceber uma Barbie velha. Mas calma, calma; ainda não!


Para já, ganhamos com a persistência de Greta Gerwig em manter aquela que considera a cena essencial do filme e alguns bons conselhos que só as mulheres velhas sabem dar. Como bónus, talvez leve mais (jovens) mulheres a primeiras consultas de ginecologia.

Por fim, inspirados por uma boneca que defende que as mulheres podem ser tudo o que imaginam, tomemos a liberdade de considerar, até, que o filme seja mau: com quantos filmes maus, bons ou mais-ou-menos, já gramámos, que, ao invés de retratar o Mundo da Barbie, espelham o mundo como ele é, gerido por Bens?

Relacionados

Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »
A queda do Governo e o Império Romano
Em Destaque
André Canhoto Costa

A queda do Governo e o Império Romano

1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos portugueses na noite do dia 8 de novembro de 2023. Com efeito, os quatro cavaleiros saídos da abertura do primeiro selo do rolo manuscrito na

Ler »