
Carta XXIII – A Bruxa
(Ao que parece,) aspectos positivos: Insegurança, frivolidade, falta de amor-próprio, corporativismo, capitalismo, domesticidade, saltos altos sempre!, expectativas irrealistas de beleza estereotipada
(Pelos vistos,) do lado negativo: Confiança (feminina), poder (feminino), assertividade (feminina), tranquilidade (feminina), realização profissional (feminina), laivos de feminismo, emancipação (feminina), questionamento (feminino), “feitiçaria”, sedução.
Ou vice-versa, dependendo do “Gaze”
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A quantos graus Fahrenheit arde uma Barbie?
Estamos no ano de MMXXIII, 128 anos depois da invenção do cinema, 207 desde a da fotografia, com vários séculos de literatura e pintura, o canon, – tudo! – sempre ao serviço do male gaze, e vem um filmezito da Barbie, que nem é a coisa mais feminista que vão ver hoje (já que é a crítica monetizada pelo próprio sistema) e o machedo já queima bonecas. Isto é o conservadorismo (e, por conseguinte, o princípio do privilégio) explicado às criancinhas, e é útil.
Como qualquer bruxa que se preze, a Barbie tem o dom da feitiçaria: consegue converter em apoiantes os iniciais contestadores e em fervorosos inimigos aqueles que em tempos a exaltariam. É obra.
Que o universo Barbie aposte na artificialidade não é surpresa, e terá sido essa uma das múltiplas razões a alimentar argumentos contra e a favor; o que não deixa de me surpreender é a existência (e o sucesso) de pessoas tão caricaturais e tipificadas que o próprio Gil Vicente teria dificuldade em conceber, sob pena de ser acusado de inverosimilhança.
Convenhamos (e, nisto, até as mulheres com aparência de Barbie estereotipada – “Stereotypical Barbie” é a personagem principal do filme – deviam prestar muita atenção, principalmente na hora de votar, nos EUA ou em qualquer lugar): tipos que defendem a retirada de direitos entretanto conseguidos e instituídos (vossos e de pessoas que pelo simples facto de não corresponderem ao mesmo estereótipo ainda têm ou tiveram mais dificuldade em alcançá-los) e/ou propõem que nunca sejam alcançados (pelos mesmos), reclamem que agora não têm direitos nenhuns (têm os que sempre tiveram, de acordo com o seu género, etnia e classe social) porque não podem (e o facto é que geralmente podem!) ofender ou oprimir alguém (os que não tinham/têm esses mesmos direitos), garantirão que, depois de os colocarem no poleiro, nunca mais os poderão de lá tirar e eliminarão as conquistas que, a custo, começaram a equilibrar a distribuição de poder e liberdade. Darlings, ter poder ou estar ao lado de quem o tem não é a mesma coisa.
O filme Barbie, escrito (em parceria com Noah Baumbach) e realizado por Greta Gerwig, tem alcançado vários feitos com distinção: recordes de bilheteira (segundo a Forbes, “Barbie, um filme que foi apelidado pelos críticos de ‘lixo feminista de ódio aos homens’ e ‘poderoso’, ‘feroz’ e ‘divertido’ pelos fãs”, bateu recordes de bilheteira em quase 20 países, no fim-de-semana da sua estreia, superando até o “rival” antitético Oppenheimer, de Christopher Nolan), esgotou stocks de roupa cor-de-rosa, estimulou machistas de todo o mundo a lutar por uma causa adormecida, uniu feministas (mesmo aquelas que nunca gostaram de brincar com Barbies ou nunca as ofereceram às suas filhas) na luta contra a histeria machista, deu-nos o prazer de ver personagens femininas impor as suas vontades com assertividade e imaginar, ainda que de forma caricatural e simplista, o que seria um mundo não dominado pelo patriarcado e (paradoxalmente, ou não fosse, previamente ao filme, a Barbie estereotipada disso o significante) livre de female chauvinist pigs.

Memes inspirados em “críticas de 1 estrela, de homens furiosos, no Letterboxd”, daqui.
Então, e vale a pena? – perguntarão os leitores.
“Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, como já dizia o outro.
Não sendo uma obra-prima, não deixa de ser divertido, numa série de apontamentos que questionam ou criticam o próprio conceito de Barbie – ou, atalhemos para: é a Mattel a conquistar novos mercados. Sim, é uma insinuação feminista dentro do próprio capitalismo selvagem que engole meninas e consome mulheres e as descarta, através de armas poderosas como a publicidade e os algoritmos.
Mas, se não conseguimos ganhar as lutas todas de uma vez, antes isso que coisa pior (que é aquilo que nos servem todos os dias).
Numa espécie de Interseccionalidade para Totós (afinal, ainda são precisos manuais deste género), enumerando todas as minorias discriminadas de que se lembra (mas, e porque não?), o filme quase consegue a proeza de conceber uma Barbie velha. Mas calma, calma; ainda não!
Para já, ganhamos com a persistência de Greta Gerwig em manter aquela que considera a cena essencial do filme e alguns bons conselhos que só as mulheres velhas sabem dar. Como bónus, talvez leve mais (jovens) mulheres a primeiras consultas de ginecologia.
Por fim, inspirados por uma boneca que defende que as mulheres podem ser tudo o que imaginam, tomemos a liberdade de considerar, até, que o filme seja mau: com quantos filmes maus, bons ou mais-ou-menos, já gramámos, que, ao invés de retratar o Mundo da Barbie, espelham o mundo como ele é, gerido por Bens?