Paixão
Virginia Woolf
As ideias mais importantes saem de lábios inteligentes. Há pessoas que fecham os olhos, outros abrem a boca e imitam mudos. Às vezes, gritam. E o que fazem assim, de boca aberta? Há quem se apaixone, claro, esses são os melhores, aprendem a pensar com a língua sobre os pormenores em volta. Outros constroem pontes apaixonantes, a altitudes perigosas, e as suas obras de engenharia abrem as notícias da noite, filmadas de cima com aquele ruído de fundo, o som seco dos pássaros.
Solidão
Virginie Despentes
O homem tornou-se aquilo que os seus pais haviam sonhado, mas com mais educação e muito menos dinheiro. Aos amigos dizia que vivia no Canadá, mas não vivia no Canadá, gostava do Canadá apenas por causa do frio do Canadá. O seu fetiche eram os pés das bailarinas, mas no resto era um criativo. Sem sucesso, diga-se, as bailarinas não gostam que lhes gostem dos pés. Come enquanto fala sozinho, o que quer dizer que fala sozinho de boca cheia. A sua vida é como um quadro de Hopper, mas sem pessoas. O mais próximo que se sentiu de si mesmo foi num bar à noite, a olhar o copo cheio de ar entre o indicador e o polegar. Não deu por nada, mas de longe e de cima, alguém o observava enquanto fazia um desenho.
Regresso
Manuel Vilas
O passado leva tempo a desistir. Agora, o meu pai estava outra vez vivo, como uma boa máquina, a operação correra bem. Dias antes, quando voltou para casa, ouvi pela primeira vez a palavra pacemaker, sem saber que era uma das palavras inglesas mais amadas. Muitas pessoas pensam que se trata de um peacemaker, um fazedor de paz instalado pela ciência no coração dos homens. Fazer paz ou fazer ritmo? O meu pai nunca gostou de dançar, e ali estava ele, tão feliz e sossegado que me pareceu incompreensível.
– Pai, cheiras a santo.
– Não cheiro nada.
Eu era um bicho, tinha certezas. Fiz a minha pergunta de antigo menino com medo.
– Mãe, o que é um santo?
– Filho, não te metas nisso.
Separação
Lucia Berlin
Os dois percebemos que devíamos partir para Nova Iorque para salvar o casamento. Já nos víamos à sombra da Estátua da Liberdade, ao nascer do dia, ou a soletrar de cócoras o nome de família de gerações de imigrantes do século vinte, desenhados ao redor de uma ilha. Até ali, eu fora a heroína, mas heroísmo não tem nada a ver com emancipação feminina, heroísmo é uma coisa química, que não tem sexo. Ou seja, na verdade, os dois éramos heróis. Nunca ganhámos coragem para ir até Nova Iorque. Ficámos. Somos dois alcoólicos anónimos, trapezistas de circo a beber lá nas alturas até nos estatelarmos um dia no chão do circo, enquanto as pessoas aplaudem e gritam enfim os nossos nomes de solteiros.
“Virgínia Woolf”, Pastel de Óleo sobre papel, 32×41 cm, 2022, de Lia Ferreira.