VERDADE – CRUELDADE – NATAL – FIM DO MUNDO – ANIMAIS
VERDADE
A Verdade deve ser mantida no congelador, entre 0 e – 14 graus celsius. A Verdade deve ser embrulhada, para se evitarem cheiros vizinhos, a alho, a frango estragado. Recomenda-se retirar a Verdade do congelador um dia antes de ser cozinhada. Afogue-se a Verdade num prato raso, mergulhada em molho de limão azedo, salpicada de pimenta e sim, alho. A Verdade pode comer-se de muitas maneiras. O hábito é comprar a Verdade seca, salgada ao sol, e demolhar a Verdade de um dia para o outro. A Verdade fresca é coisa de cozinha estrangeira. No Natal é hábito cozinhar Verdade, ou isso ou peru.
CRUELDADE
Naquele dia, acordou decidido a aceitar calmamente a Crueldade da vida. Calçou as suas meias de verão, uma delas amarela, a outra não. Cá fora, o clima era ameno e as muitas pessoas que se dirigiam ao trabalho com sensações de calma e felicidade, e só uma das duas era uma falsa sensação. Antes de se decidir a atravessar a rua no sinal vermelho, recordou apressadamente o que o trouxera ali, àquela hora: a Crueldade. Também se lembrou de que faltava pão em casa. Fez fila na caixa do supermercado. Um homem mais velho simulou um problema na perna para passar à frente. Ninguém se importou. Um miúdo trocou um pacote de leite meio gordo por outro meio magro. Ninguém lhe criticou o pessimismo. Sentiu uma tal paz na fila para pagar que começou a duvidar das suas intenções acerca da Crueldade. Distraído, sussurrou para si mesmo “Crueldade, Crueldade, Crueldade”. A senhora atrás dele disse “acho muito bem”.
NATAL
Já ninguém se lembra, mas as instruções de cima para salvar o Natal foram bem recebidas. Desde então tornou-se um hábito. Fazer terapia de casal, ajudar um idoso a calçar os sapatos, organizar uma festa de aniversário num infantário, tudo isso é salvar o Natal. Já se iniciaram guerras para salvar o Natal. Fizeram-se cirurgias para salvar o Natal, as dores eram imensas. Salvar o Natal será poesia, prosa poética? É eficaz, é como os sinais de trânsito. Do Natal, Natal, ninguém se lembra dos pormenores há bastante tempo. Havia um menino, um carpinteiro, uma mãe, reis e animais, e eram todos bons.
FIM DO MUNDO
O Fim do Mundo será uma batalha de símbolos. Do lado do bem e do outro lado, a coisa será toda comandada por publicitários. Haverá ecrãs por toda a parte, alguns com uma definição espantosa que distrairá o olhar da assistência da própria realidade. A dor, o sangue, o diálogo de espadas, tudo será a cores. Pensa-se que o Fim do Mundo acontecerá num domingo à tarde, na EuroDisney. Os transportes públicos serão prioridade. A violência do embate final despertará no mundo inteiro e ao mesmo tempo a curiosidade de sete anões e as piores doenças de príncipes e princesas. Mães e filhas puxarão pelos cabelos, umas mais e outras menos, e os homens chorarão como no dia do seu nascimento, agora sim, absolutamente seguros do fim. O espetáculo decorrerá com mortes, mas sem incidentes, até desaparecer da terra todo o fumo da esperança. Só então, em vez do Fim do Mundo, dizem-nos, se dará início a um intervalo prolongado, para publicidade, que durará demasiado tempo.
ANIMAIS
Os Animais andam nus com aquela ignorância própria do paraíso. Um homem sabe se está nu, goste ou não goste, esteja só ou acompanhado. Já os Animais, e falamos de cães, girafas e hipopótamos, abusam da sua nudez com a inocência dos ungidos, a alegria dos primeiros jardineiros, a naturalidade dos que não distinguem a mãe natureza da sala de estar onde foram domesticados. A nudez dos Animais não é motivo de desconforto, estes vivos nunca conhecerão a censura da ideia de Deus, nunca ouvirão as palavras proibidas do conhecimento, nunca sentirão a vergonha que precede o desenvolvimento da agricultura e, por que não dizê-lo, a tentação de chegar à lua fechado em grandes fatos de astronauta.