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Weimar #5

CONFISSÃO – AQUÁRIO DIGITAL – EMOÇÕES BRANCAS E VERMELHAS – HOLÍSTICA – PARTIDO DO BEM

 

CONFISSÃO

No futuro, a religião será praticada por dentistas especializados, financiados pelo orçamento do estado. Em cada boca aberta, será colocado um aspirador automático, dois rolos de algodão branco, uma broca grossa e uma fina, e um produto não comestível, que escorrerá da língua para as gengivas e para a garganta, sim senhor. A Confissão será iniciada apenas quando o paciente não puder senão manter a boca aberta. A dentista intimará, perante testemunhas de branco: “Confesse lá, pais, filhos, cúmplices. Somos todos ouvidos”. Quando o agente da polícia colocar as mãos atrás das orelhas, como um elefante de teatro, esse será o sinal para o aprofundamento da Confissão e da dor. Nesse instante, a luz forte no teto será apontada aos olhos do cidadão com problemas de dentes e ouvir-se-á o zumbido da broca. 

 

AQUÁRIO DIGITAL

As pessoas gostam assim. Voluntários distraídos, aprisionados um a um em pequenos aquários para peixes grandes, dias seguidos imersos numa penumbra fria e só os dedos visíveis do lado de fora do vidro. Encostadas ao Aquário Digital, as pontas dos dedos serão livres como bailarinas e, espera-se, simularão os movimentos de cozinhar uma refeição, amparar um animal doméstico ou encontrar um antigo parceiro sexual, à noite, no escuro, na mesma cama. A dança dos dedos imitará tudo ou quase tudo. Camionetas de excursionistas virão observar o bailado digital, em silêncio, e alguns forasteiros, os mais timoratos, encostarão a sua própria mão ao exterior do aquário, sobreposta à mão dos falsos peixes. Nesse instante, com a emoção do momento, haverá pessoas a filmar e a chorar, mais a filmar do que a chorar.

 

EMOÇÕES BRANCAS E EMOÇÕES VERMELHAS

Há Emoções Brancas e Emoções Vermelhas, isto disse um filósofo e esta parte é mesmo verdade. As emoções brancas são as que temos sozinhos, na cama, por exemplo, na cama e na casa de banho, quando estamos sozinhos. As emoções vermelhas são as que exibimos em público, diante dos outros, que é como quem diz na praça, na missa e quando discursamos contra a desigualdade. O objetivo das pessoas aparentemente boas é substituir as Emoções Brancas pelas Vermelhas, e para sempre. É um processo longo e muito bonito, que começa nas universidades e nos suplementos de autoajuda dos jornais e só depois é adotado por políticos e jovens preocupados com o clima. Um dia, nos jantares de família, se famílias e jantares ainda houver, todas as emoções serão vermelhas, serão públicas e mesmo os adolescentes, trancados há tanto tempo sozinhos na casa de banho, temerão o respirar perverso do pai ou a maldade da mãe, do outro lado da porta, à procura de certezas: “ó filho, a tua emoção, aí dentro, é branca ou vermelha?”

 

HOLÍSTICA

Nesse dia, a mulher sentiu o desconforto de ser depositária de um excesso de Holística. Era segunda-feira e a Holística estava-lhe no corpo e no espírito e no sangue. Estava atrasada para o emprego. O autocarro chegou completamente cheio e um homem encostou-se demasiado ao seu corpo. A mulher deu-lhe um pontapé nos tomates e as pessoas aplaudiram, encaixotadas. O passeio estava em obras e a mulher molhou um pé, não um, dois, dois pés e uma meia preta. Não teve tempo para café nem pequeno-almoço. Na verdade, chegou ao emprego tão já cansada que pensou na Holística como uma coisa boa, um animal pequeno ou um cartão de filiação partidária. Procurou a Holística na carteira e no chão, debaixo do pé mais curto da secretária. Nada. Teria de esperar. Se tudo corresse bem, reencontraria a Holística a caminho de casa, e desta vez não a acharia excessiva. Se tudo corresse bem, ia a tempo do autocarro das sete e durante a hora e meia da viagem nenhum homem, nem um, se atreveria a apalpá-la em público.

 

PARTIDO DO BEM

Desta vez, o Partido do Bem não cometeria o erro de definir a verdade. A verdade era coisa antiga e ingénua, a verdade matara muita gente. O Partido do Bem ia dedicar-se a definir a mentira. Nomearia uma comissão de sábios anónimos, entre eles um padre, uma socióloga e um sem-abrigo recentemente promovido pela estranha autenticidade da sua poesia. Haveria também comissários políticos do Partido do Bem, meros observadores, não fora as armas americanas, os cartões de crédito e aquela ansiedade com a questão da desigualdade. Como candidatas a mentiras perfilavam-se já a liberdade e a fraternidade, e só não se discutia a igualdade porque os sábios e os do Partido do Bem gostavam, depois do trabalho, de se reunir num restaurante japonês onde a maioria, por pudor, pedia cerveja, mas alguns, muito poucos, preferiam saqué.

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