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A monótona vida de Uóchinton Maria, a quem chamavam o Homem Porco

«Ergo-me ante o Sol que desce,

e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós…»

Álvaro de Campos

 

1.

Décimo segundo filho de uma numerosa prole de dezoito rapazes, não se pode dizer que Uóchinton Maria fosse um menino feliz. Desde cedo lhe foi detectada uma tendência indómita para a contemplação. Os olhos grandes, esbugalhados, fixavam-se facilmente em qualquer objecto, por mais desinteressante que fosse. O Dr. Aníbal Chimbica, do lugar de Oronhe, freguesia de Espinhel, catedrático e cientista caído no esquecimento de seus pares e até dele próprio, chegou a sugerir a evidência de uma clara disfunção no sistema sacro-craniano com espasticidade muscular cerebral, aconselhando o internamento imediato no Upleger Institute, em Perth, Austrália, onde Uóchinton Maria poderia conviver diariamente com golfinhos, mamíferos com uma actividade cerebral um pouco mais adiantada do que a sua.

Para o senhor Ôgénio Maria, pai de Uóchinton e dos restantes dezassete rapazes, esta sugestão não fez qualquer sentido.

O senhor Ôgénio Maria, do lugar de Falgoselhe, concelho de Castanheira do Vouga, não fazia ideia onde ficaria a Austrália e muito menos Perth.

O senhor Ôgénio Maria, do lugar de Falgoselhe, concelho de Castanheira do Vouga, não fazia sequer ideia do que era um golfinho. Por isso, coçou com vigor a nuca por debaixo da boina e continuou afincadamente a cavar o seu campo de batatas.

 

2.

Deus pode ter criado o Mundo, o que ainda não está provado, mas não foi Ele, com certeza, o responsável pelo aparecimento de Uóchinton Maria sobre a Terra. Quando Cármen Violada, neta da velha Sostênia Dias, deu à luz o seu décimo segundo filho homem num colchão de palha roído pela traça disposto na direcção do sol nascente junto à porta da cozinha da sua casa em Vale do Grou, a tez negra do recém-nascido brilhou aos primeiros raios da manhã. Eram seis horas e trinta e seis minutos do último domingo de Maio. E tão profunda a mudez de Uóchinton Maria, tão preta a cor da sua pele, que sua avó, a velha Sostênia Dias, mãos mágicas do Vale do Agadão, parteira e desmanchadora há mais de oitenta anos por todos os lugares que iam da Ínsua a Aguadalte e do Bustelo ao Gravanço, o julgou nado-morto e o despachou de imediato, de cordão umbilical amarrado à volta da cintura, para o balde da lavagem dos porcos onde passaria os primeiros tempos da sua estranha existência, sem queixume, entre cascas de melão, talos de couve e pevides de abóbora-menina.

Uóchinton Maria pode não ter sido um menino feliz, mas foi um menino de sorte. Apesar da tendência natural dos suínos para devorarem incansavelmente todos os desperdícios que lhes são lançados para a pocilga, escapou como por milagre à voracidade dos animais durante quatro anos, dois meses, treze dias e nove horas, exactamente. Toda esta estatística está devidamente alinhada nos apontamentos do Dr. Aníbal Chimbica e depositada na biblioteca da Casa do Povo de Óis da Ribeira para consulta dos interessados e para riqueza cultural dos vindouros. Aliás, seria o Dr. Aníbal Chimbica, catedrático e cientista caído no esquecimento, e veterinário sempre que a necessidade dos seus conterrâneos o exigia, a resgatar o pequeno Uóchinton Maria do chiqueiro onde o destino, pelas mãos mágicas de sua avó Sostênia Dias, o mergulhara. Era, então, uma criança gorducha, de olhos melancólicos, que aprendera a grunhir e a guinchar e só conseguia articular um som aparentemente humano: dâsse. Os apontamentos do Dr. Aníbal Chimbica, apesar de extensos e pormenorizados, não são muito claros no que respeita à aprendizagem da expressão por parte do petiz. Não são claros em vários aspectos: têm erros de ortografia, imprecisões de sintaxe, uma caligrafia incerta e desalinhada e nódoas de vinho tinto. Admitem, no entanto, a possibilidade de haver uma influência directa dos seus dois irmãos mais velhos, Diridório Maria e Nerço Maria, encarregados, por prática, da alimentação dos animais e frequentes utilizadores do fonema na sequência de obrigatórias caminhadas, a pé descalço, em charcos de restos de comida e fezes de porco. Além disso, refere o Dr. Aníbal Chimbica, numa nota à margem da página 63 de um livro de mercearia no qual registou o aparecimento de vários fenómenos infantis nos lugares de Falgoselhe, Falgarosa, Vale da Galega e Avelal de Baixo, e ao qual chamou pomposamente de «Breviário das Malformações e Insanidades Imaginárias dos Infantes de Portugal», que o pequeno Uóchinton Maria demonstrou desde logo ser «uma peça de mecanismo antropomórfico incompetente» (sic). Um diagnóstico que o acompanhou para o resto da vida.

 

3.

Como na parábola do Filho Pródigo, Uóchinton Maria alimentou-se de lavadura. Tal dieta não terá contribuído grandemente para o reforço do seu intelecto e, sendo negro retinto, não seria de esperar que desenvolvesse tons rosados de pele. Também esta especificidade não constituiu para o Dr. Aníbal Chimbica, do lugar de Oronhe, freguesia de Espinhel, um mistério intrincado, mesmo que seu pai, Ôgénio Maria, e Cármen Violada, sua mãe, fossem visivelmente brancos, de faces avinhadas pelos excessos alcoólicos e olhos azuis aguados pelo consumo diário e exagerado de fécula. Não se lhes conhecia, igualmente, qualquer desvio aos compromissos nupciais contraídos perante a figura paternal do padre Ocricocrides de Albuquerque, vetusto pároco encanecido da capela de Santo António de Barrô, não longe do Carqueijo, o mesmo que mergulharia dezassete dos dezoito frutos de tal união na água fresca e pura da pia baptismal. Uóchinton Maria escaparia à bênção da pedra. Só aos trinta e seis anos foi ungido com os santos óleos. Já não, contudo, pelo velho Ocricocrides de Albuquerque, entretanto promovido a mais altas funções no altar do céu em virtude de umas farinheiras semiputrefactas dissimuladas num cozido monumental, como que a servir de exemplo para a infame realidade que esconde o mais letal dos venenos nas mais cobiçadas iguarias.

Uóchinton Maria foi tirando ensinamentos de todos estes pequenos episódios da sua vida monótona. Devolvido ao seio da família e à companhia dos pais e dos irmãos, lentamente readquiriu uma certa humanização do trato e dos movimentos, sem nunca perder, no entanto, o seu registo vocabular monossilábico e o seu contemplar fixo das minudências do Universo.

Com o passar dos anos, a sua pele negra tornou-se mais negra. A despeito do advento da construção civil, um homem negro era invulgar no lugar de Falgoselhe, por esses dias mal medidos. A população demorou, por isso, a habituar-se ao seu vaguear constante por entre os milheirais, ao seu vulto sombrio que surgia, volta e meia, nas esquinas brancas das casas como se fosse uma sombra repetida, ao seu escurecer quotidiano que lembrava uma tarde caminhando suavemente para a noite. Descobriram-lhe a utilidade inequívoca de manter aos longe os pardais, os corvos, as gralhas e tudo quanto é ave destruidora de plantações. E, como geralmente sucede com a grandiosidade da natureza humana, passaram a suportar quem lhes prestava um serviço.  

Sabe-se como são cruéis as crianças perante a diferença. Os meninos do lugar de Falgoselhe, concelho de Castanheira do Vouga, não perdoaram a Uóchinton Maria a cor da sua pele, nem os grunhidos, roncos e guinchos que acompanhavam o seu discurso minimalista que se esgotava em dâsse. Chamavam-lhe o Homem-Porco e teimavam na irritante brincadeira de o atirarem, sempre que a oportunidade surgia, para dentro de uma lixeira ou de uma pocilga. Paciente, absorto, quase inerte, Uóchinton Maria aceitava a sua sorte sem um resmungo. Dezenas de vezes apedrejado na cabeça e cosido pelas mãos já pouco firmes do Dr. Aníbal Chimbica, declaradamente portador de uma Parkinson galopante, foi acumulando cicatrizes ziguezagueantes na testa, nas faces até às orelhas e no alto do crânio. Com o avançar da idade, o Dr. Aníbal Chimbica tornou-se negligente: cosia a cara e a cabeça de Uóchinton Maria, mas não lhe tirava os pontos. E o garoto, desfigurado, exibia também fios dependurados como se fosse uma árvore de sumaúma.

 

4.

Melaninas: constituem uma classe de pigmentos biológicos com função básica de fotoprotecção.

O melanismo é um fenómeno vulgar em certas espécies do reino animal: revela o excesso de pigmentação negra ou castanha.

Uóchinton Maria foi, sem dúvida, um caso raríssimo, quiçá único, de melanismo detectado num ser humano.

Há uma foto que exibe toda a família Maria: o pai Ôgénio, está ao centro, sentado num banco de três pernas; a mãe, Cármen Violada, está de pé a seu lado, com as mãos embrulhadas num avental; nove dos irmãos estão de cócoras, entre eles o inconfundível Uóchinton Maria; atrás deles e dos pais, os oito mais velhos: Diridório e Nerço; Eulâmpio e Deodárbio; Mílvio e Deolício; Eujácio e Floduval; um está estendido, de braços abertos, numa posição de cruz e olhos fixos no céu: Hilijudézio Maria, o mais novo dos dezoito, à data com apenas dez anos.

É perceptível pelos sorrisos de todos, excepto de Uóchinton Maria, que exibe um ar sonolento, que estão absolutamente inconscientes do drama que acaba de acontecer: Hilijudézio Maria está morto!

No preciso segundo em que o Sr. Otigibe Gomes, da Foto Gomes – Casamentos, Baptizados e Todo o Tipo de Festas Familiares –, acabava de disparar a sua máquina, um objecto pontiagudo caiu do céu na vertical com uma velocidade superior a 299,792 quilómetros por segundo, atravessando a calota craniana de Hilijudézio Maria, devastando-lhe as carótidas e acabando por sair-lhe pelo escroto, abrindo no chão um furo cilíndrico com uma profundidade aproximada de quinhentos e setenta metros. Só alguns anos mais tarde, e meramente por acaso, tal objecto foi recuperado. Tratava-se de um finíssimo estilete de quartzo resultante do fraccionamento de um granito moscovítico-biotítico, proveniente da zona mineira de Rebordelo-Ervedosa-Agrochão. Nunca houve explicação para o facto de se ter despenhado naquele preciso momento em que Hilijudézio Maria posava para uma foto familiar que seria única. Às vezes, a simples coincidência é a mais perfeita das justificações científicas.

 

5.

Aos dez anos, além do seu inseparável dâsse, já Uóchinton Maria sabia recitar de cor as Escrituras. Em pouco menos de hora e meia, era capaz de debitar o Antigo Testamento, respeitando em absoluto a ordem: Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Além disso, sabia também as canções de Habacuque e determinados diálogos de Naum, que a despeito de serem profetas menores não devem ser desconsiderados. Dava especial ênfase à exortação de Deus a Noé, que vem expressa no Livro do Génesis: «O Homem, feito à imagem e semelhança de Deus, também é criador».

O padre Ocricocrides de Albuquerque, educado com esmero no Seminário Patriarcal de S. José de Caparide, não apreciava sobremaneira a forma como Uóchinton Maria alteava a voz ao passar por esta frase no meio das suas recitações. Nestas coisas interpretativas, a ortodoxia católica não costuma deixar nada ao acaso. O padre Ocricocrides de Albuquerque entendia convictamente que só Deus é criador e quem ouse, sequer, imitá-lo é o Demónio. Movido por tamanha convicção, receoso de que Belzebu, o Senhor das Moscas, rondasse os pensamentos imperfeitos do jovem Uóchinton Maria, obrigava os irmãos Ipácio Peres Peres e Milzelino Peres Peres, seus acólitos, que ostentavam para cima de dois metros de altura e pesavam mais de dois quintais cada qual, a mergulharem Uóchinton Maria nas águas tantas vezes geladas do Alfusqueiro de forma a purificá-lo fosse lá de que maneira fosse.

De certa forma, foi como se Uóchinton Maria tivesse aí o seu Dilúvio. Os purificantes banhos dos manos Peres Peres tinham carácter bidiário, não tanto por ordem do padre Ocricocrides de Albuquerque como por néscio divertimento dos próprios. E, ao desagradável hábito de guinchar, roncar e grunhir por entre os monólogos, Uóchinton Maria juntou o fungar inevitável de quem vivia paredes meias com as gripes e constipações.

  Por largos meses e até anos, o padre Ocricocrides de Albuquerque sentiu a sua teimosia recompensada. «É tempo», chegou a verberar numa missa pascal, «de todos percebermos que a higiene do corpo e a da alma andam interligadas! É tempo de limparmos as nossas entranhas contaminadas pelos vapores do ódio do Porco Sujo! É tempo de clarearmos os sentimentos, de arearmos a prata das palavras e puxarmos o lustro ao ouro do coração!»

O padre Ocricocrides de Albuquerque convenceu-se intimamente de que tinha o dom extraordinário da palavra e de que a reconversão de Uóchinton Maria era um milagre a ser creditado no deve e no haver da hora da sua morte. Suspeitou mesmo que tal milagre lhe poderia valer mais do que a absolvição dos pecados da gula, da luxúria e da concupiscência, levados a cabo na figura de Dona Adelícia de Carvalho, do lugar de Bicaranho, sua anafada mulher-a- dias, e num exagero descontrolado de presuntos, paios, chouriços de sangue e garrafas de vinho morangueiro, e que poderia conduzi-lo a uma beatificação tão digna como a de António Estroncónio, o Bebedor de Salerno. Já toldado pelos efeitos de uma jeropiga matinal, perorou em gritos cada vez mais exaltados que ecoarão para todo o sempre na abóbada do século XVII da igreja matriz de Castanheira do Vouga: «Respira um ar sereno, brilhante de pureza/Do qual nenhuma exalação turve a clareza/Evita os odores infectos e vapores deletérios/Que sobem dos esgotos e empestam a atmosfera…/Queres dos teus prazeres prolongar o sucesso?/Do vício e da mesa evita o excesso…/Se o mal é insistente, cabe à arte reagir/Mais que curar o mal, a arte deve prevenir/O ar, o repouso e o sono, o prazer e a comida/Preservam a saúde do homem, saboreados com medida/O abuso torna em veneno este bem inocente/Destruindo o corpo e turvando a mente».

Três pessoas assistiam, nesse final de manhã, à missa do padre Ocricocrides de Albuquerque. O velho moleiro João Soja e Milho, já completamente surdo; sua esposa, Quintalina Quintina, cega do olho esquerdo por uma faúlha saída da caldeira do Vale do Vouga; e Espiritualíssimo José David, ferrador e dentista. Nenhum deles percebeu onde o padre Ocricocrides de Albuquerque queria chegar. Mais por hábito do que por outra coisa qualquer, soltaram em uníssono: Amén!

João Soja e Milho bocejou, levantou-se e saiu da igreja mesmo antes do Sursum Corda…

 

6.

A longa convivência com os suínos tornou o raciocínio de Uóchinton Maria confuso e a sua memória sujeita a quebras violentas e misturas fáceis. Se, para o padre Ocricocrides de Albuquerque isto significava influências malditas, eflúvios vindos do coração das trevas, ditames brutos daquele a quem insistia em chamar de Porco Sujo nas suas homílias, para o resto da família Maria não passava de um continuado aborrecimento. A qualquer momento, Uóchinton Maria soltava um brado. «Segundo as bênçãos dadas por Vosso povo a Aarão, conduzi-Nos pelos caminhos da Justiça, para que todos os habitantes da Terra saibam que vós sois Deus que contempla os Séculos!!!»

Não que este tipo de intervenções tivessem algo de ofensivo ou de escabroso, bem pelo contrário. Só que, proferidas em voz lancinante por diversas vezes ao longo de madrugadas a fio, seriam capazes de pôr em causa a santa paciência do próprio Jó, pai piedoso, provocado pelas privações ordenadas por Satanás e pelos conselhos blasfemos de sua esposa. Ora, paciência era virtude que não abundava na casa dos Maria, todos eles habituados a levantarem-se com o raiar das primeiras fímbrias de sol e a jornadas de labuta duras e penosas.

Os dezoito filhos de Ôgénio Maria e Cármen Violada dormiam na mesma água-furtada até à estranha morte de Hilijudézio Maria. A partir daí, a água-furtada passou a albergar apenas dezassete. E passou a fermentar, também, à medida que ia adensando o cheiro espesso a urina e peúgas por lavar, o ódio lento dos dezasseis irmãos de Uóchinton Maria pelo membro marginal de uma família até então quase harmoniosa.

 

7.

O primeiro a revoltar-se foi Trazílio Maria, o de sono mais leve e que dormia na enxerga logo ao lado da de Uóchinton Maria. Certa noite, o grito de Uóchinton Maria foi ensurdecedor: «Bem aventurado é o lugar! Bem aventurados são a casa e o coração! Bem aventurada é a cidade e a montanha, o refúgio a caverna e o vale, a terra e o mar, o prado e a ilha, e todos os lugares onde se haja feito menção a Deus e celebrado o Seu louvor!»

Movido por uma mistura de raiva, de sono e de impotência, Trazílio Maria desferiu um soco violento na escuridão da água-furtada. Talvez a sua intenção não fosse atingir o irmão e apenas travar aquela voz que lhe estilhaçava o repouso. Mal aventurados o momento e o movimento. O punho de Trazílio Maria, impulsionado às cegas pela mola muscular do braço, rebentou a cana do nariz de Uóchinton Maria, afundou-lhe um dos ossos da face e fez saltar dois incisivos, um canino e três molares. Uóchinton Maria não soltou um queixume. Abriu muito os olhos de espanto e contemplou, num horror absoluto, a catarata de sangue que lhe brotava do nariz e da boca. Trazílio Maria virou-se na enxerga, puxou os cobertores para cima da cabeça, e retomou o seu sono tão brutalmente interrompido. Nessa noite, Uóchinton Maria não proferiu mais nenhuma prédica. E na noite seguinte também não.

Os seus dezasseis irmãos sobrevivos tinham, assim, descoberto que a violência podia reduzir ao silêncio a palavra de Deus. Nada de novo ou de inédito, como está bem de ver. Tivessem os irmãos Maria, filhos baptizados e crismados de Ôgénio Maria e Carmén Violada, estudado um pouco da História das Religiões e saberiam que os exemplos abundavam um pouco por todas elas. Não o quis a sua modesta existência de campónios de Falgoselhe; seria a vivência a ensiná-los, do alto da sua provecta e inquestionável sabedoria.

Em quarenta e oito horas, Uóchinton Maria recuperou a incontinência verbal, embora tenha perdido os dentes para sempre. A sua voz tonitruante voltou a derrubar as barreiras dos sonos exaustos dos irmãos como o caudal furioso do Amazonas derruba os frágeis diques levantados em cana pelos índios Cubéus. Começou lentamente, ciciando, ao jantar. Os lábios intumescidos de feridas dificultavam-lhe o discurso e o facto de insistir em falar ao mesmo tempo que mastigava puré de batata não ajudava os seus esforços, provocando igualmente estragos irreversíveis na higiene de Maristevaldo Maria e de Apotaneu Maria, que se sentavam respectivamente à sua direita e à sua esquerda. Percebia-se que divagava sobre o admirável desenvolvimento do Menino, da revelação do Seu Espírito Divino e da profunda e feliz admiração da Sua Pessoa. Mas ninguém seria capaz de distinguir se falava dele próprio se de Jesus, dito o Nazareno.

Durante toda a noite e madrugada, Uóchinton Maria gritou como um possesso e arrancou cabelos e pestanas e sobrancelhas, rasgando a pele do peito com as unhas longas e sujas. Só que a sua inspiração saltara, repentinamente, de Deus para Nostradamus. À meia-noite em ponto, soltou uma maldição: «À noite, entrego-me a estudos secretos/Só, tomo assento no tripé de cobre/A minúscula chama surge da solidão/Faz progredir quem não é vão em crer». De imediato foi socado nos ouvidos por Cláuquio Maria que, de tanto usar o machado para rachar lenha e abater árvores, tinha mãos do tamanho de guardanapos desdobrados. A violência dos golpes foi de tal ordem que Uóchinton Maria ouviu claramente nas circunvoluções do cérebro a Ave Maria de Gunod tocada pelos carrilhões do Convento de Mafra. Como resposta, bradou: «A pedra contém nas suas profundidades barro branco/Sairá leite branco de uma racha/Desnecessariamente pessoas preocupadas não ousarão tocar nisto/Inadvertidamente que a fundação da terra é o barro!»

A insensatez tomou por completo conta dos restantes irmãos Maria. Eulâmpio Maria começou a uivar como um lobo com cio, ao mesmo tempo que desfazia as enxergas, lançando palha a todo o comprimento da água-furtada; Búrcio Maria atirou-se de encontro à parede, de cabeça em riste, esfacelando a testa, estremecendo a casa, e fazendo cair uma telha solta no quintal onde atingiu o cão, Unfrei Bogárte, no pescoço, decapitando-o, muito provavelmente sem dor; Deodárbio Maria, Aranízio Maria e Dorneles Maria desfizeram-se num pranto prolongado que durou até o sol já ir alto, diluindo-se em soluços pelo decorrer da tarde; Mílvio Maria mergulhou através da janela de guilhotina, vindo a tombar sobre o galinheiro, por entre uma chuva de cacos de vidro, esmagando duas pedreses e um galo garnizé.

Os olhos de Uóchinton Maria abriram-se desmesuradamente e ganharam um tom verde iridescente. Já rouco, ainda foi a tempo de gritar: «Eles serão afugentados por uma luta infinita/A zona rural será a maioria do greviously aborrecido/Cidade e país terão maior guerra/Carcassone e Narbone terão os seus corações sujeitos à tentação!»

Para a família Maria, esta última tirada foi para além do admissível. E decidiram, logo aí, no cenário macabro do seu lar à beira da destruição, que era necessário tomar medidas rigorosas.

 

8.

Uóchinton Maria cumpria trinta e três anos. Ou talvez cumprisse, já que nem sua mãe, Cármen Violada, conseguia recordar com certeza essa manhã fatídica em que o sentira esgueirar-se por entre as pernas, húmido, grosso e imóvel, tombando sem vagidos nas mãos retalhadas de rugas de Sostênia Dias. Trinta e três anos… Tão jovem ainda. Mas, como dizia Séneca, há vidas que se resumem a um dia. Talvez a frase não seja bem assim, mas não estarei a vilipendiar-lhe excessivamente o sentido…

Foi com lágrimas escorrendo-lhe pela face que Cármen Violada auxiliou o marido, Ôgénio Maria, e os seus restantes dezasseis filhos a regarem paciente e pormenorizadamente com benzina os fardos de palha que tinham transportado para o meio da sala e colocado sobre os móveis escassos e em mau estado. Eram cinco horas da manhã e um fio ligeiro de claridade colou-se ao horizonte como um sublinhado. Uóchinton Maria caíra num dos seus sonos imperfeitos, murmurando incongruências, soltando guinchos e roncos aos arranques, imprevisíveis e incontidos. Ficou absolutamente só na água-furtada, na casa. Restou-lhe, quando muito, a companhia dos ratos.

Foi a Infame Maria, o mais novo de todos os dezoito filhos de Ôgénio Maria e Cármen Violada, um personagem triste e mudo, de olhar baço e calvície precoce, quem coube acender o fósforo. Só o conseguiu à terceira tentativa. A falta de três dedos na mão direita e quatro na mão esquerda embaraçava-lhe os movimentos.

As chamas soltaram-se de imediato. Treparam umas sobre as outras como se empurradas por um pânico súbito. Invadiram espaços vazios; instalaram-se nos objectos; amarinharam pelas paredes. O universo avermelhou-se em todos os tons.

Desperto pelo fumo bruto, Uóchinton Maria veio à janela da água-furtada e contemplou a família como numa fotografia ainda por tirar. Pela primeira vez, esboçou um esgar que poderia ser confundido com um sorriso triste. Levantou a mão direita num aceno e uma palavra desprendeu-se-lhe dos lábios. Ninguém a ouviu.

De repente, as chamas engoliram-no. Ardeu até ao fim como um simples pau de fósforo

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