Fotografia de Helena Araújo

Bretanha – Guerra e Paz

“Fantástico! Finalmente é segunda-feira, posso voltar ao trabalho!”

Imagino que tenha sido este o sentimento de muitos franceses na véspera daquele dia 11 de Maio de 2020, a data marcada para aliviar bastante o pesado confinamento de quase dois meses (*) imposto à população francesa. Nós, não. Foi dia de gazeta ao trabalho, porque valores mais altos se alevantavam: tínhamos de ir fazer uma incursão na paisagem.

Escolhemos a península de Crozon, que fica na outra margem da rada de Brest. Talvez por ter sido o nosso horizonte durante tantas semanas, ou talvez por algo que acontecera cinquenta anos antes, no tempo em que as informações sobre bons apartamentos de férias passavam de boca de druida a orelha de druida, e alguém revelou aos meus sogros um endereço perto da plage de l’Île Vierge. Eles rebateram o banco traseiro da carrinha, acamaram bem a bagagem e, por cima dela, confortavelmente deitados num colchão de campismo, os três filhos pequenos: para fazerem a dormir os mil quilómetros de travessia nocturna. Partiram sem saber muito bem o que os esperava do lado de lá, e devem ter encontrado algo realmente especial, porque, quando chegou o nosso primeiro dia de liberdade condicionada, o Joachim nem hesitou: “Vamos a Crozon!”

Se soubesse o que sei hoje, diria que a península de Crozon é a região turística menos interessante da Finisterra. Sim, tem a simpática Camaret que nesse dia se esmerou oferecendo-nos a baía tingida de tons de esmeralda; tem a torre Vauban, tem as falésias e as praias, tem o alinhamento de menires de Toulinguet… Mas, quando se fala da Bretanha, isto é uma espécie de serviços mínimos, como viria a descobrir mais tarde.

Naquele dia, tudo me pareceu perfeito – a princípio. Era Primavera, o tempo estava bastante bom, passeámos longamente junto às falésias e encostas íngremes, no meio do verde tenro e de enormes manchas de flores garridas. Mas quando chegou aquele momento em que se vai beber uma água para poder usar as instalações sanitárias do café, ocorreu-nos que, na França inteira, não havia um único restaurante, café ou snack-bar aberto. Por sorte, nessa manhã os franceses tinham ido trabalhar e os turistas ainda estavam na terra deles. Com toda a costa da península só para nós, nesse dia tivemos “casinhas” como a do Vinicius: não tinha tecto / não tinha nada. Um quarto de banho com vista para as mais belas paisagens, no meio das colinas de giestas e de tapetes de armeria maritima, virado para o mar.

É bem verdade que as epifanias acontecem quando menos se espera. Assim imersa na natureza, e, de facto, muito mais imersa que de costume, pressenti o fervilhar da vida à minha volta, e fui tomada de um enorme respeito. Pensei nos vídeos que vira no tempo do confinamento, mostrando animais selvagens que conquistavam os jardins e as praças das cidades, e imaginei como teria sido feliz a vida destes aqui, os da península de Crozon, durante os dois meses de tranquilidade que a pandemia lhes oferecera. A sensação de paraíso começou a abrir brechas: senti-me uma intrusa naquele espaço. A nossa presença naquele caminho junto ao mar tinha algo de sacrílego, éramos os conquistadores de um território virgem. Pela primeira vez na vida, reparei realmente nos contrastes da paisagem: de um lado a natureza selvagem, misteriosa, bruta, variada e cheia de cor; do outro, o verde uniforme dos campos cultivados. Lado a lado: um antes e um depois da expropriação. Nós contra eles. Os humanos contra os restantes seres do planeta. Esta nova consciência do conflito que existe desde o início da nossa civilização viria a ganhar cada vez mais força durante essa estadia na Bretanha, sobretudo quando passeávamos nas zonas da costa, onde a tensão está mais presente porque é aí que persistem alguns espaços de natureza não domada.

Esse não é, contudo, o único sinal de conflitos que a península de Crozon nos oferece. Na realidade, por todo o lado encontramos vestígios das tensões entre humanos que se fazem inimigos uns dos outros. E todos se situam em lugares belíssimos. Não, Dostoievski, lamento, mas temos de concluir que não: a beleza não salva o mundo. Nunca salvou.

O mais antigo testemunho dessas guerras será talvez o ópido de Kastell Lostmarc’h, uma fortaleza entrincheirada que se pensa ter sido construída por volta de 500 a. C., num promontório rodeado de altas falésias. Era ali que a população celta se refugiava em caso de perigo temporário. Seria, provavelmente, seguro – mas só até lhes acabar a água. No entanto, mesmo sem ter fontes de água doce, esta fortaleza foi usada até à Idade Média. Ainda hoje é bem visível, à entrada do promontório, uma linha dupla de muralhas de terra, de 2 ou 3 metros de altura, sobre as quais se erigiam as paliçadas, e também os dois fossos que faziam parte do conjunto de defesa.

O testemunho mais recente é o “muro do Atlântico”, a série de bunkers construídos em 1942 pelo exército alemão. Em 1990, recuperaram uma casamata em frente ao oceano, perto de Kerbonn, para fazer um pequeno museu a lembrar a batalha do Atlântico e as suas vítimas.

O mais belo é, sem dúvida, o forte de Vauban, construído numa língua de terra em frente a Camaret. Tão bonito que uma pessoa até se esquece de que aquela torre foi feita para melhor posicionar os canhões.

O mais insólito são os velhos navios de guerra que, numa baía à entrada da península, esperam o momento em que serão convertidos em sucata.

E há também a Ponta dos Espanhóis, que foi a última etapa da nossa visita à península de Crozon nesse dia. Um bastião estratégico para dominar a entrada na rada de Brest e, portanto, para controlar os movimentos do seu arsenal. Assim chamado devido a um combate ocorrido em 1594, onde morreram mais de três mil homens, sendo que, do exército invasor, só 13 espanhóis sobreviveram. Um século mais tarde, Luís XIV deu ordens para erigir uma linha de protecção da rada de Brest, e Vauban melhorou a antiga fortaleza dos espanhóis, que assim ficou durante dois séculos e meio, até ser parcialmente destruída nos terríveis combates de Brest da Segunda Guerra Mundial.

Hoje, tudo isso faz parte do circuito turístico da península de Crozon. Os fortes estão devidamente recuperados e assinalados nos mapas, e até criaram um jogo para os mais pequenos se interessarem por aqueles locais: o “jogo das crianças e das fortalezas”.

Também nós passeámos por lá com o interesse de quem visita o passado. Brutal, mas passado. De tão passado e tão longínquo, nem estranhámos os termos do anúncio do prospecto turístico: “um rico património histórico”.

Caso para dizer: em 2020, éramos felizes e não sabíamos.
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(*) Só agora me dei conta de que no texto anterior – e na vida em geral – dizia que o primeiro confinamento francês durou dois meses e meio. Agora, ao verificar as datas, vejo que não chegou a dois meses. A minha subjectividade acrescentou-lhe duas semanas e meia, vá-se lá saber porquê…

 (Continua)

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