Roman Opałka, Do Interior

Descrição do mundo

Procuramos o infinito de maneira obsessional, enquanto que somos nós o infinito.

Giordano Bruno

 

No capítulo XIII do Gênesis, Iahweh diz a um já velho Abraão: «Tornarei a tua posteridade como poeira da terra: quem puder contar os grãos de poeira da terra poderá contar teus descendentes!».[1] Esta frase foi tomada de empréstimo por Roman Opalka para o título de uma de suas águas-fortes, realizada em 1970 – ano em que fez suas últimas gravuras –, como parte do ciclo Opisanie świata. Explica Opalka: «Todos os grãos de areia da ampulheta ou de todos os desertos têm em comum as relações infinitas fundadas sobre suas similitudes ou sobre suas dessemelhanças, cada um destes elementos possui sua única particularidade, como já tentei exprimir numa gravura em que o título é extraído da Bíblia».[2] Na gravura, a descendência de Abraão se traduz em pequenos traços verticais e horizontais – como sinais de mais e menos –, dispostos um fundo esfumaçado e informe. Os traços – quase grãos se vistos de longe – e a névoa que os roubam o lugar do que poderia haver ali de humanidade.

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Opisanie świata é como se costuma traduzir para o polonês o livro de Marco Polo Il Milione (que, no Brasil e em Portugal, foi traduzido como Livro das maravilhas, Livro de viagens ou apenas Viagens), recuperando aquele que talvez seja seu título original, em franco-italiano: Le Devisement dou monde (A descrição do mundo)[3]. É, portanto, uma expressão que se refere às viagens e ao conhecimento. Na série de Opalka, realizada entre 1968 e 1970, esta mesma expressão não remete a uma descrição qualquer do mundo. Sobretudo, não se trata de um relato de viagem, mas de tentativas de reinvenção da criação bíblica do universo. Constitui-se, então, como que uma descrição genesíaca do mundo. Adão e Eva é outra gravura desta série. E são desta mesma época – e partilham a mesma técnica da água-forte e as mesmas dimensões (48 cm x 60 cm) – A Torre de Babel (1968) e O dilúvio (1969).[4]                     

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Do interior, gravura que faz parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP), integra o mesmo ciclo da gravura de 1970. Nela, a partir de um buraco negro, vê-se – não sem alguma dificuldade – um sem-número de minúsculas pessoas amontoadas. Algumas parecem estar sentadas, outras, de pé, como a que se acha bem defronte à área escura. As que se encontram sentadas estão, em sua maioria, de costas para o centro negro. Seria arriscado tentar definir-lhes o sexo. Mas a carência de qualquer indicativo de feminilidade naqueles quase imperceptíveis seres nos leva a crer que se trata de homens. Eles são muitos, incontáveis, quase infinitos. Conforme se afastam do buraco negro, se transfiguram em traços. De onde eles ? – poderíamos nos perguntar. A expressão «do interior» («z wnętrza», em polonês) indica claramente uma proveniência: de dentro. E este dentro coincide com o centro da gravura. Lá, está a abertura para o interior noturno. Em torno e acima desta área escura, uma região branca – e indefinida – capta o olhar e o conduz ainda mais para dentro. Esta mancha branca figuraria seres alados? Ou simplesmente uma espécie de névoa? Na segunda criação bíblica, uma névoa emerge do interior da terra, umidificando a areia e transformando-a em barro. É deste barro que Deus molda o homem. Na tradução de Haroldo de Campos:

 

  1. E uma névoa §

    ia subindo da terra §§§

    E umedecia §

    toda a face da terra-húmus

 

  1. E afigurou O-Nome-Deus § o homem §

    pó § da terra-húmus §§

    e inspirou em suas narinas §

    o respiro dos vivos §§§

    E ficou sendo o homem § alma-de-vida[5]

 

Eis descrito o princípio potencial de uma descendência – uma descendência que talvez se torne tão numerosa quanto os grãos de poeira.

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Do interior partilha alguns aspectos em comum com Tornarei a tua posteridade como poeira da terra… Por um lado, ambas as gravuras trabalham a partir da repetição exaustiva de um mesmo componente básico: traços em Tornarei a tua posteridade como poeira… e minúsculas figuras humanas e traços em Do interior. Desta repetição exaustiva, decorre, inevitavelmente, uma saturação na superfície do papel e uma certa ideia de movimento. Em Tornarei a tua posteridade como poeira…, os traços parecem se mover como ondas, que acabam se encontrando no centro da gravura. Em Do interior, a aglomeração de minúsculas figuras humanas em torno de um centro negro suscita um movimento circular e centrífugo.

Por outro lado, por meio justamente da repetição exaustiva e da saturação, ambas querem totalizar uma incontável descendência. A gravura de 1970 leva ao pé da letra a comparação ditada por seu título, Tornarei a tua posteridade como poeira…: a posteridade a que se refere é apresentada em traços, em grãos. Do interior, ao contrário, exibe a transformação da posteridade – representada por um sem-número de figuras humanas – em seu termo de comparação, os grãos de poeira. Em outras palavras, enquanto Tornarei a tua posteridade como poeira… mostra uma superfície já esvaziada de qualquer vestígio de humanidade, Do interior registra o processo mesmo de esvaziamento. O que chama a atenção nesta última é precisamente o progressivo desaparecimento das figuras humanas – um desaparecimento que estabelece uma espécie de quadrado de relações entre o vazio e o cheio, de um lado, e o humano e o não-humano, de outro.  Ao passo que as figuras se afastam do centro e vão, pouco a pouco, se transformando em traços, mais saturada e repetitiva se torna a superfície da gravura. Quanto mais cheia de elementos, mais vazia de figuras humanas. Assim, ao gradual enchimento corresponde um paulatino esvaziamento do que havia ali de humano.[6] É como se esse processo de esvaziamento ilustrado por Do interior antecipasse outra passagem do Gênesis, a que dá ensejo ao dilúvio – e, lembre-se, Dilúvio é o título de outra água-forte do mesmo ano: «Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continuamente mau todo desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração. E disse Iahweh: “Farei desaparecer da superfície do solo os homens que criei – e com os homens os animais, os répteis e as aves do céu –, porque me arrependo de os ter feito”».[7]

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O que aqui designamos esvaziamento do humano está associado ao que Opalka chama de desaparecimento: «Eu poderia encher os espaços em duas dimensões com uma quantidade aleatória de elementos dicotômicos a tal ponto aproximados que eles chegariam a desaparecer, sem poder decidir parar antes que a estrutura estiver totalmente desaparecido e que estiver se tornado visualmente ausente».[8] É esse caráter de suas obras que fez seu amigo Dieter Honisch qualificá-las de «uma ponte em direção a nada».[9] 

Quando gravou Do interior, em 1969, Opalka já estava há quatro anos envolvido no grande projeto de sua vida e para o qual se voltaria exclusivamente a partir do ano seguinte: OPALKA 1965/ 1-∞. Este projeto, que fez de Opalka um artista conceitual – e conceituado –, consistia na produção ininterrupta de uma tela por mês, sobre a qual eram pintados, com tinta branca um fundo cinza escuro, números em sequência crescente. A contagem se iniciou em 1965, com o número 1. Em 22 de julho de 2004, Opalka já havia atingido a cifra de 5.486.028 e realizado 227 telas.[10] Quando exposto, cada quadro, chamado Detalhe, vem acompanhado de uma fita cassete em que Opalka lê em voz alta e em polonês os números pintados e de uma fotografia sua tirada com camiseta branca sob fundo igualmente branco, sempre na mesma posição e com o mesmo olhar fixo para a câmera. A série só se completou com a morte de Opalka, em 2011.

O processo de esvaziamento do humano que Opalka anuncia e representa em Do interior se transforma, na obra que enceta antes mesmo de ter realizado a gravura em questão, numa espécie de diário em que registra, a conta-gotas, não mais o esvaziamento do humano de forma geral, mas o seu próprio desaparecimento. Comenta Natacha Wolinski : «Esta obra matemática não é senão, pois, uma gigantesca tumba, a crônica cifrada de uma desaparição anunciada».[11] Uma desaparição não só prevista mas até mesmo ansiada pelo artista: em 1972, quando chegou ao 1 milhão, Opalka decidiu reduzir em um por cento o escuro do cinza do fundo. Assim, o fundo começou a se tornar cada vez mais claro, cada vez mais próximo do branco dos números. Comenta Opalka: «Estas obsessões – a morte, o apagamento [l’effacement], a irreversibilidade do tempo – são concepções difíceis, corajosas, suicidas. Minha atitude esteve frequentemente associada ao suicídio, a um sacrifício. Acreditavam que eu era prisioneiro desta ideia. No entanto, eu não poderia simplesmente fazer o contrário. Esta era a melhor resposta a este fato que nos transtorna de tal modo: nós estamos condenados a morrer, nós devemos desaparecer!».[12]

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  1. O ano em que Opalka finalizou Do interior foi também o ano em que Theodor W. Adorno morreu, deixando sua Teoria estética inacabada. Nesta, logo no início, Adorno faz um diagnóstico do período – faz ele também a sua descrição do mundo:

 

a liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular, entra em contradição com o estado perene de não-liberdade do todo. O lugar da arte tornou-se nele incerto. A autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da função cultual e dos seus duplicados, vivia da ideia de humanidade. Foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana. Na arte, as constituintes que dimanaram do ideal de humanidade estiolaram-se em virtude da lei do próprio movimento.[13]

Em sua Descrição do mundo, Opalka promove um retorno ao princípio de tudo, ao Gênesis, como se propusesse um novo começo para esta sociedade cada vez «menos humana», como se quisesse recriar o mundo e a humanidade. No entanto, como na Bíblia, a humanidade que faz surtir do buraco negro em Do interior já vem fadada a desaparecer. Assim, ela não tem outro caminho a seguir do que aquele da sua própria destruição. O fundo escuro da gravura parece ecoar as palavras de Kakfa a Max Brod segundo as quais há «infinita esperança» no mundo, «mas não para nós».[14]

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[1] Gênesis XIII, 16.

[2] Roman Opalka, «Rencontre par la séparation», de 1996, disponível em <http://perso.orange.fr/roman.opalka/L’oeuvre%20de%20Roman%20Opalka.htm>. O título em polonês desta gravura é Twoje zaś potomstwo uczynię liczne jak ziarenka pyłu ziemi…

[3] Cf. Alvaro Barbieri, «Il Livre de messire Marco Polo; storia di un’impresa filologica e editoriale», Filologia medievali e moderna, n. 12, 2016, pp. 25-26.

[4] Todas estas três gravuras estiveram expostas na X Bienal de São Paulo, em 1969.

[5] Haroldo de Campos, «Bere’shith II: A segunda criação», Éden: um tríptico bíblico, São Paulo: Perspectiva, 2004, pp. 49-50.

[6] Em outra oportunidade tratei de uma questão análoga, a redução do humano, nas instalações de Maristela Ribeiro, cf. Veronica Stigger, «Pelas fendas e pelas frestas», Fendas e festras: instalações de Maristela Ribeiro, Rio de Janeiro: Caixa Econômica Federal, 2006, pp. 4-5.

[7] Gênesis VI, 5-7.

[8] Roman Opalka, «Rencontre par la séparation» cit.

[9] Dieter Honisch, citado por Peter Funken, «Roman Opalka – National Galerie, Berlim, Germany», Art Forum, sept. 1994.

[10] Cf. Le Monde, 31 jul. 2004.

[11] Natacha Wolinski, «La fabrique de l’infini», Beaux Arts Magazine, 266 (ago 2006), p. 26.

[12] Roman Opalka, em entrevista a Aneta Panek, «Roman Opalka, ici et maintenant», Art Press, 301 (mai. 2004), p. 24.

[13] Theodor W. Adorno, Teoria estética, trad. Artur Morão, Lisboa: Edições 70; São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 11.

[14] Franz Kafka segundo Max Brod, Franz Kafka, trad. Susana Schnitzer da Silva, Lisboa: Ulisseia, s/d, p. 65.

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