Josef Danhauser, Newspaper readers,1840, Óleo sobre madeira, 21x17cm. Belvedere, Vienna

Na Era do Zettabyte pt. 2: Como ler o jornal

Em 1831, o erudito e estadista francês Alphonse de Lamartine antevia mudanças dramáticas na comunicação entre os homens: “Antes que este século termine, o jornalismo será tudo o que se imprime, será todo o pensamento humano. Através do prodigioso poder multiplicativo que o engenho concedeu à palavra – e que ainda virá a ser multiplicado por mil –, a humanidade escreverá o seu livro dia a dia, hora a hora, página a página. O pensamento alastrará pelo mundo à velocidade da luz; assim que é concebido, logo será vertido em palavras e propagado a todos os cantos da Terra, correndo de polo a polo, súbito, instantâneo, ardendo ainda com o calor da alma humana que o fez eclodir. Será o reino do verbo humano em toda a sua plenitude. Não terá tempo para amadurecer, para aglomerar-se sob a forma de livro. O livro chegaria tarde demais: o único livro possível a partir de hoje é o jornal” (“Sur la Politique Rationelle: Lettre à M. le Directeur de la Revue Européene”, 25 de Setembro de 1831).

Quase dois séculos depois, a visão profética de Lamartine ganhou contornos irónicos: por um lado, o jornal não tomou o lugar do livro, embora possa ter contribuído para que muitos livros tivessem adoptado características “jornalísticas”, como acontece de cada vez que um novo meio de comunicação de massas é bem acolhido pela sociedade e arrebata boa parte da “quota de mercado” dos seus antecessores (ver Na Era do Zettabyte pt.1: Em toda a parte e em parte alguma). Por outro lado, a perspectiva de Lamartine sobre o que seria o triunfo dos jornais tem menos afinidades com os jornais do que com os modernos meios electrónicos de comunicação de massas e, em particular, com as redes (ditas) sociais, que tomaram, para a maioria da população, o lugar do jornal como fonte de informação privilegiada (ou até exclusiva), uma vez que, para os frenéticos padrões do século XXI, não há dúvida de que “o jornal chega tarde demais”.

A ironia mais amarga do fracasso dos jornais em cumprir a visão de Lamartine está no facto de a Internet e as redes (ditas) sociais terem destruído o “modelo de negócio” que sustentava os jornais e de estes, numa luta desesperada pela sobrevivência, terem concluído que a sua salvação estaria não só em mudarem-se para a Internet como em macaquearem as redes sociais, no seu imediatismo, na sua impulsividade, na sua ausência de reflexão, na sua fúria justiceira, na sua hiper-simplificação, na sua superficialidade, no seu nivelamento pelo mínimo denominador comum, na sua disponibilidade para acolher os alvitres e devaneios de qualquer sandeu. Algumas destas tendências já estavam presentes nos jornais do tempo de Lamartine, como atesta esta observação do seu contemporâneo Alfred de Vigny: “O burguês parisiense é um rei que, todas as manhãs, ao despertar, tem ao seu dispor um lisonjeador que lhe conta 20 histórias. O burguês não está obrigado a servir-lhe o pequeno-almoço, manda-o calar quando lhe apetece e concede-lhe a palavra a seu bel-prazer; este amigo dócil agrada-lhe por ser o espelho da sua alma e lhe dar a ouvir, todos os dias, a sua própria opinião expressa de forma um pouco mais refinada do que ele seria capaz. Privem-no deste amigo e ele sentirá que o mundo deixou de girar. Este amigo, este oráculo, este parasita pouco dispendioso, é o seu jornal” (Journal d’un Poète, 1839).

No início do século XX, o austríaco Karl Kraus (1874-1936) teceria considerações ainda mais cáusticas sobre o jornalismo, denunciando a sua dependência “do juízo da clientela pagante” e apontando-o como responsável pelo amolecimento mental da humanidade, uma vez que esta é “dispensada de todo o esforço intelectual pela técnica da imprensa, que lhe põe em casa prontinho tudo o que ela precisava dos valore perenes para decorar o lar, habituada a ser indemnizada com clichés por toda a perda de uma representação viva”. Todavia, apesar da razão que assiste a Kraus nas suas invectivas contra a imprensa periódica e dos constrangimentos financeiros que, no século XXI, debilitaram gravemente os jornais, estes continuam a ser uma fonte de informação sobre a actualidade com qualidade média superior à dos noticiários televisivos e radiofónicos e, claro, incomparavelmente superior à das redes sociais. Por outro lado, há que considerar que quem seja criterioso na selecção do que lê, vê e ouve e frequente autores consagrados e obras de referência das artes e letras perderia perspectiva se deles fizesse a sua dieta intelectual exclusiva, como argumenta persuasivamente Italo Calvino em Perché Leggere i Classici (1991): “A actualidade pode ser banal e mortificante, mas não deixa de ser um ponto em que devemos situar-nos para olhar em frente ou para trás. Para se poder ler os clássicos, deve-se também determinar ‘donde’ estamos a lê-los, senão tanto o livro como o leitor perdem-se numa nuvem sem tempo. É por isso que tira máximo partido da leitura dos clássicos quem souber alternar com ela a sapiente dosagem da leitura de actualidades”.

Mas como ficar a par da actualidade sem cair nas armadilhas da Era da Sobrecarga de Informação? Como colher os frutos nutritivos do jornalismo sem ter de enterrar os pés nas lamas tóxicas da mediosfera? Como, numa era angustiada pela falta de tempo e pelo FoMO (Fear of Missing Out), ganhar uma visão razoavelmente abrangente e clara do presente sem despender diariamente uma ou duas horas a ler o jornal de fio a pavio? As sugestões que se seguem são um modesto contributo para dar resposta a estas ponderosas questões.

Elas têm, logo à cabeça, uma restrição: apenas dizem respeito a jornais em papel ou a jornais digitais sob a forma de PDF, já que o jornal online, embora pretenda desempenhar as funções dos jornais tradicionais, tem natureza radicalmente diferente. A sua “primeira página” é um mosaico flutuante de largas dezenas de entradas com links para os respectivos desenvolvimentos e a sua variedade de assuntos e ausência de nexo e hierarquia deixam desorientado quem não se dirija ao jornal com o estrito propósito de se informar sobre um assunto específico. Quem nele entre para, genericamente, ficar a par do que de relevante está a acontecer no país e no mundo quedar-se-á, perplexo, perante a justaposição da notícia de mais uma vaga de ataques com drones sobre cidades ucranianas, uma lista de coisas-para-fazer-no-fim-de-semana, a contabilidade macabra de um descarrilamento no Nepal, o anúncio da tournée europeia de Shakira, a irritação do líder da oposição com o Governo por este estar a fazer exactamente o que ele faria se estivesse no Governo, a comercialização de uma casa de banho automatizada para gatos que torna obsoleta a velha caixa de areia, uma reportagem sobre um vencedor do Euromilhões que estoirou o dinheiro todo em NFTs e acabou a viver na rua, a revelação feita pela Duquesa de York de que os corgis que pertenceram à rainha de Inglaterra e ficaram à sua guarda estão a ser assombrados pelo espírito da sua falecida dona, as investigações do Ministério Público à viciação de resultados num torneio de petanca, uma entrevista com um petfluencer que, alicerçado nos seus 200.000 “seguidores”, anunciou a candidatura à Presidência da República. Quem entre neste labirinto fractal que se estende, aparentemente, até ao infinito, sairá dele atordoado e frustrado, após ter debicado numa dúzia de artigos diferentes sem ter levado até ao fim a leitura de nenhum e sem ter retido do que leu mais do que fragmentos anedóticos.

É claro que também o jornal em papel tem uma estrutura fragmentária e o leitor é livre de o ler na ordem que entender, mas o facto de se apresentar num formato físico implica que cada número do jornal tem um princípio, um fim e um número limitado de artigos entre um e outro, que se apresentam de acordo com uma sequência e uma hierarquia, que resultam dos critérios e deliberações da redacção e da direcção, bem como da matriz histórica de cada jornal. Num tempo em que tanto se fala de “narrativa” e o “storytelling” está a ser cada vez mais usado para vender produtos e serviços em áreas que nada têm a ver com a literatura e as restantes artes narrativas, o jornal online descarta sequência, hierarquia, estrutura e limites e oferece um imenso panelão, onde borbulha uma caldeirada de textos e imagens, a que constantemente são adicionados novos ingredientes. Mas talvez a sua natureza amorfa, caótica, fluida e sem fronteiras definidas apele aos leitores das Gerações Y e Z, que são, reputadamente, adeptos do multitasking e têm períodos de concentração limitados, pelo que preferem criar o seu próprio caminho, borboleteando de assunto em assunto, a fazerem um percurso do ponto A para o ponto Z.

Explanadas as limitações destas recomendações, passemos à primeira: só deve abrir-se o jornal após deixá-lo repousar durante pelo menos uma semana. Num tempo obcecado com saúde e em descortinar perigos ocultos em quase todos os produtos e artefactos gerados pelo capitalismo, poderia pensar-se que esta recomendação se prenderia com eventuais produtos químicos tóxicos presentes na tinta de impressão dos jornais e que se volatilizariam ou perderiam o efeito nocivo após alguns dias. É certo que estas tintas já foram feitas à base de petróleo e contiveram apreciável quantidade de compostos tóxicos, nomeadamente chumbo e cádmio, mas já há um quarto de século que foram substituídas por tintas à base de soja – uma mudança que foi ditada menos por preocupações com a saúde dos leitores do que com a tendência de subida do preço do barril de petróleo. As tintas de impressão à base de soja, usadas desde a década de 1990, continuam a incorporar muitos dos aditivos usadas nas antigas tintas, pelo que persistem alguns riscos associados à sua ingestão – mas ninguém come jornais e o tempo em que eles eram usados para embrulhar peixe já lá vai.

A razão para a semana de quarentena prende-se com outro tipo de toxicidade e outro tipo de obsessão: a obsessão do mundo moderno com a velocidade e a instantaneidade. A rádio e a televisão e, mais recentemente, os smartphones e as redes (ditas) sociais têm promovido a aceleração do fenómeno noticioso e a multiplicação das coberturas em directo, das “breaking news”, das actualizações ao minuto. O jornal em papel é um medium lento, com um “período de latência” que vai de quase um dia até uma semana, não é capaz de competir neste campeonato, mas não deixa de ser influenciado pela correria desvairada e os seus leitores estão viciados no fervilhar frenético da instantaneidade, sem se dar conta de que esta agitação é artificial e estéril e de que ver e compreender exigem distanciamento (no espaço e no tempo). Para mais, parte do torvelinho de notícias diz respeito a medidas governamentais, a promulgação de legislação, a investimentos e a inovações tecnológicas, cujos efeitos só poderão ser devidamente avaliados dentro de anos; mas os media precisam de vender notícias hoje e quando não há factos nem certezas contentam-se em produzir apreciações precipitadas, elucubrações espúrias e especulações infundadas, apresentadas em atmosfera de expectativa e alta tensão (“Reunião decisiva quinta-feira em Bruxelas”, “O ano de 2024 será decisivo, afirma presidente”).

A passagem do tempo ajuda a separar o superficial do profundo, o efémero do permanente, o acessório do essencial, as oscilações atribuíveis ao ruído de fundo e ao acaso das grandes tendências. Ao fim de uma semana, muitos dos artigos que tratavam do que parecia ser a actualidade premente e as magnas decisões de que estava suspenso o destino do país e do mundo ficam completamente esvaziados de interesse e tornam-se tão ressequidos e inúteis quanto a previsão meteorológica para domingo passado. E assim, pelo simples acto de retardar a leitura em sete dias, conseguimos descartar a componente mais volátil do jornal.

Após a triagem feita pelo tempo, cabe ao leitor desbastar os restantes galhos secos na frondosa árvore que é um jornal. A primeira limpeza consiste em evitar ler artigos escritos por governantes, deputados e autarcas, bem como por dirigentes e militantes destacados de partidos políticos, uma vez que 1) as suas opiniões e mundividências estão irremediavelmente deformadas pelas suas fidelidades partidárias e os seus escritos costumam estar ao serviço de uma agenda (não muito) oculta; 2) os governantes e os partidos dispõem de instrumentos de comunicação adequados à expressão de posições politicamente vinculadas. Já basta que o espaço público português esteja, há décadas, saturado de políticos que monopolizam o tempo de antena nos media tradicionais, nas múltiplas qualidades de oradores em eventos públicos, de protagonistas de conferências de imprensa, de produtores de comunicados e declarações formais e informais, de entrevistados e – o que é mais inacreditável – de “paineleiros” e comentadores (residentes ou convidados) da actualidade (sobretudo política, mas também económica, artística, futebolística, etc.) em programas televisivos e radiofónicos. Como se esta exposição não fosse já insuportável, nos últimos tempos os políticos tornaram-se também em prolixos redactores de tweets e posts, que os media tradicionais se afadigam, servilmente, em difundir. Seja qual for o assunto – aplicação dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência, estacionamento de trotinetas, o recital na Fundação Gulbenkian de um pianista russo cujo nome nunca ouviram antes, que só são capazes de escrever usando a função “copiar/colar” e esquecerão dentro de um dia – lá estão os mesmos de sempre, perorando no tom assertivo e pomposo de quem adora ouvir-se e julga pairar acima do comum dos mortais e com a confiança e o à-vontade de quem passou tantas horas em frente a um microfone quanto Mick Jagger. Quem não esteja já nauseado de os ler, ouvir e ver e tenha curiosidade em saber mais sobre o seu pensamento (?) e a sua visão para o país (??) e para o mundo (???), pode sempre tornar-se assinante do Povo Livre, do Avante! ou da Acção Socialista, mas é escusado aturá-los nos jornais.

Esta poda dos textos de gente da política na imprensa portuguesa não deverá circunscrever-se a políticos no activo – por um lado, porque nada nos garante que os “reformados” não alimentam projectos de regressar ao activo, apenas aguardando conjuntura propícia. Por outro, porque mesmo os que não fazem qualquer tenção de voltar a desempenhar funções formais na governação ou nos partidos continuam a ter o seu espírito e a sua mundividência formatados pela sua agenda política. Os políticos “reformados” que se dedicam ao comentário político são de diversas variedades: há as eminência pardas, que, a partir da sua posição recuada, continuam a controlar discretamente boa parte da vida do seu partido; há os ressabiados, obcecados em ajustar contas com antigos adversários (sobretudo dentro do seu próprio partido); há os curadores vitalícios da sua própria imagem, que zelam por que nenhum político no activo ofusque a sua actuação (que reputam de exemplar) no tempo em que desempenharam cargos governamentais ou partidários homólogos; há os mexeriqueiros, que, por manterem uma invejável agenda de contactos e estarem a par de tudo o que se passa nos bastidores do poder, derivam indisfarçado gáudio de publicitar em primeira mão as próximas movimentações do Governo e detalhes suculentos sobre a vida interna dos partidos; e há ainda os que prometem continuar “a andar por aí”, sem outra motivação do que satisfazer a sua vaidade e a sua insaciável sede de protagonismo mediático.

A esta purga das páginas de opinião, apenas merecem escapar três ou quatro articulistas que, embora filiados em partidos, possuem 1) a independência de espírito e o desprendimento pela ascensão na hierarquia partidária que os liberta de repetir a cartilha e 2) a bagagem cultural necessária para ir além das banalidades, das tautologias e das ninharias da baixa política.

Por outro lado, há que considerar que alguns articulistas supostamente “não-alinhados”, que são identificados simplesmente como “professores”, “investigadores”, “economistas” ou “advogados” e não possuem vínculos conspícuos a partidos, expressam mundividências e distribuem aprovações e censuras que estão sistematicamente em sintonia com a posição dos partidos de que são simpatizantes ou militantes. Estes agentes infiltrados são uma das mais obnóxias componentes dos jornais – quando quem escreve é um secretário de Estado, um deputado, um vereador ou um líder partidário, ao menos o leitor fica precavido sobre o enviesamento do artigo, mas quando lê os articulistas sonsos consome propaganda partidária mascarada de opinião independente e isenta.

Na secção de política, poderão também descartar-se sem prejuízo os artigos especulativos produzidos pelo jornal, quase sempre baseados em “fontes próximas” da direcção dos partidos, que se afadigam a construir “cenários” (um dos favoritos é “a dissolução do parlamento”, puerilmente designada em jornalês e politiquês como “a bomba atómica”), identificar movimentos de oposição interna dentro dos partidos (gerada menos por diferenças ideológicas do que por ambições pessoais), cotejar presumíveis candidatos a presidente da República (mesmo que nenhum deles tenha alguma vez exprimido a ideia de se candidatar a tal cargo) e, em geral, desvendar as “verdadeiras motivações” da actuação e do discurso de políticos. Os jornalistas especializados neste tipo de artigos fazem parte dos “detectores de agência hiperactivos” contra os quais Alex Rosenberg adverte em How History Gets Things Wrong: The Neuroscience of our Addiction to Stories (2018). A “teoria da mente”, que tão importante papel desempenhou no início da longa caminhada do Homo sapiens para este presente radioso, transforma-se, nas mãos destes jornalistas, numa máquina de gerar especulações delirantes, ociosas e que disparam em todas as direcções. Este afã em lobrigar motivos e intenções nos mais anódinos actos e declarações dos políticos (e também na ausência de actos e declarações) surge envolto na respeitável capa da ciência política e da fina análise psicológica, mas, na verdade, não anda longe dos frouxos processos mentais que geram as teorias conspirativas.

De excluir são também os artigos escritos por dirigentes de sindicatos, ordens profissionais e associações empresariais, uma vez que 1) também a sua perspectiva do mundo é condicionada pelos interesses e conveniências dos grupos que representam e 2) dispõe de meios próprios para se expressarem. Têm algo de relevante para comunicar ao mundo? Façam-no no boletim da Ordem dos Contabilistas Certificados, da Federação Portuguesa de Nadadores-Salvadores, da Associação Nacional de Passeadores de Cães, da Confederação dos Produtores de Fumeiro da Terra Fria Barrosã e desamparem os jornais.

Se é aconselhável saltar os artigos assinados pelas figuras-públicas-de-sempre, por outro lado, também os artigos não assinados ou atribuídos a agências noticiosas são de evitar. Quem paga por um jornal procura informação com rosto – para informação anónima já temos quanto baste nas redes sociais, onde tudo é gratuito e quase tudo é suspeito ou francamente idiota. A identificação do autor é uma forma de responsabilização, obrigando este a responder por eventuais imprecisões, omissões, meias-verdades, falsidades completas, inépcias de expressão ou distorções, e incentivando-o, portanto, a que se esmere no seu trabalho. Por outro lado, um leitor fiel e atento de um jornal já terá elaborado um mapa mental dos jornalistas e colaboradores daquele e estará a par das respectivas forças e fraquezas e terá estabelecido uma relação de confiança (ou de desconfiança) com cada um deles. No meio da cacofonia de informações contraditórias, atoardas, hoaxes, fake news, “factos alternativos” e teorias conspirativas que caracteriza a Era da Sobrecarga de Informação é absolutamente crucial que o leitor saiba quem “fala” a cada momento.

É também aconselhável saltar sobre os artigos em que “o jornalista viajou a convite de…”. É sabido que os jornais estão em apuros financeiros e já não dispõem de meios para manter uma rede de correspondentes no estrangeiro ou para enviar jornalistas para cobrir eventos longe da redacção e ficam dependentes das propostas de empresas, entidades governamentais e instituições para custear tais deslocações, o que cria sérios problemas deontológicos. O conúbio do jornalismo com o comércio, que atinge o auge nas secções e suplementos de “lifestyle” (que seria mais honesto designar por “consumo”), possui tantas ramificações e tem ganhado tanto espaço que mereceria um artigo só para si.

A secção das cartas ao director também deve ser evitada, por ter vindo a desviar-se da sua – meritória – função original e ser hoje um “speaker’s corner” dominado por um pequeno círculo de narcisos sequiosos de protagonismo, que peroram inflamadamente sobre assuntos que não decorrem de artigos publicados no jornal e sobre os quais não estão mais bem informados do que o cidadão comum nem possuem nenhuma perspectiva original.

A passagem de uma semana sobre a data de publicação do jornal tem também o efeito de tornar obsoletas as previsões meteorológicas e os artigos que divulgam os avisos do IPMA e as recomendações da Protecção Civil e das autoridades de saúde para fazer face às ondas de frio siberiano e calor sahariano que periodicamente se abatem sobre este infortunado rectângulo – recomendações que são sempre iguais e enfermam de um paternalismo (ou melhor, maternalismo) exasperante.

O vazio e a frivolidade da secção de desporto – sempre dominada pelo ludopédio – tornam-se ainda mais evidentes quando aquela é lida uma semana depois. As antevisões de jogos – um exercício mais próximo da ornitomancia do que do jornalismo – e as crónicas de jogos e competições desportivas – tão enfadonhas quanto uma laboriosa e escolar descrição de um nascer do sol e completamente anacrónicas na Era da Comunicação Instantânea – devem ser olimpicamente ignoradas. Tudo o que diga respeito a ciclismo deve ser descartado, não só porque, como todos os desportos “lineares”, é uma absoluta sensaboria, como por ser provável que, mais tarde ou mais cedo, os vencedores venham a ser desqualificados pela Agência Mundial Anti-Doping. A única parte merecedora da atenção do leitor é a que diz respeito a moscambilhas financeiras e viciação de resultados envolvendo clubes de futebol, uma vez que revelam que aquilo que costuma ser, generosamente, designado por “desporto” é, antes de mais, uma formidável máquina de fazer dinheiro à custa das “paixões clubísticas”. Os “casos” de venalidade e corrupção no “desporto” tornaram-se tão disseminados e tão graves que, nalgumas edições, já tomam mais espaço do que as notícias sobre as competições desportivas propriamente ditas e fazem inveja, em astúcia e complexidade, à criminalidade na alta roda da finança e da política – só falta ao jornalismo que cobre este tipo de criminalidade encontrar o seu Raymond Chandler, ou, melhor ainda, o seu Andrea Camilleri.

Outro tipo de artigos que tem vindo a ganhar espaço nos jornais nos últimos em tempos diz respeito a uma área nebulosa onde confluem o animalismo, as “espiritualidades”, a psicologia de pacotilha, a alimentação “saudável”, o veganismo, os exercícios físico-espirituais de inspiração oriental, as medicinas e terapias alternativas e a cosmética “natural”, uma salgalhada unificada pela aspiração a uma vida serena, saudável, sustentável, plena de significado e em harmonia com o Cosmos. Em tempos, o jornalismo “de referência” recusava-se a dar cobertura a este charlatanismo “soft” e beatífico, mas como a máquina capitalista se apropriou dele e o converteu num negócio bilionário e há, nas classes média-alta e alta (as que ainda lêem jornais) cada vez mais gente (sobretudo mulheres) a descobrir que no centro das suas vidas confortáveis existe um vazio assustador, os jornais viram-se forçados a abrir uma subsecção New Age nas páginas de “lifestyle”, onde se prodigalizam conselhos sobre cuidados a ter com os animais de estimação, publicitam gadgets espatafúrdios para os “patudos”, comparam as qualidades e os preços de várias marcas de tapetes de yoga, fornecem receitas de sumos “detox”, promovem as dietas vegan como a salvação para o planeta Terra e exaltam os benefícios de sabonetes e cremes com propriedades “revigorantes” e “regenerativas” em termos que pouco diferem dos que são usados pelo departamento de marketing das empresas que os produzem. Desnecessário será dizer que a leitura deste tipo de artigos é uma experiência equivalente a comer um sabonete esfoliante – que não é mais agradável ao paladar se for 100% vegan e fabricado com ingredientes 100% naturais.

Finalmente, temos a secção de “Ciência”, durante muitos anos praticamente monopolizada por descobertas promissoras na área da saúde e longevidade, mas que, nos últimos anos, mercê da comoção causada pelas visões apocalípticas da Jeanne D’Arc Carbónica e da sua “Skolstrejk for Klimatet”, passou a também dedicar amplo espaço a assuntos de ambiente. Seja qual for o teor dos artigos, é aconselhável pôr de lado os que pretendem divulgar descobertas científicas e tecnológicas mas que, ao fim de dois parágrafos, revelam que o jornalista tenta explicar uma matéria que ele mesmo não compreende. Há também o caso em que, embora o escopo e natureza do artigo científico ou tese de mestrado ou doutoramento em apreço seja compreensível, não traz qualquer contributo para a dilatação do conhecimento sobre o universo e o ser humano. É preciso ter presente que muito do que hoje passa por ciência está para esta como o exercício no ginásio está para o trabalho: despende-se tempo e dinheiro, queimam-se calorias, liberta-se calor, dióxido de carbono e suor, mas não se produz nada de útil.

Ainda dentro da secção de ciência, é recomendável que se salte sobre os artigos que apresentam, em tom acrítico e entusiástico, inovações científicas que, garantem-nos, revolucionarão a nossa vida, resolverão todos os grandes problemas que o mundo enfrenta e assegurarão um futuro maravilhoso: passeios equipados com sistemas de recuperação de energia que convertem os passos dos transeuntes em energia eléctrica; sanitas que nos informam sobre o nosso estado de saúde e a probabilidade de virmos a desenvolver doenças cancerosas a partir da análise das nossas excreções; extracção de minérios na Lua; colónias em Marte; vestuário “inteligente”; a Internet das coisas; bifes fabricados em laboratório; sapatos sustentáveis fabricados a partir de borras de café; edifícios produzidos por impressoras 3D; arte personalizada criada por impressoras 3D; próteses e órgãos de substituição fabricados por impressoras 3D; e, com a ajuda destes últimos, vida eterna. Neste domínio, nos últimos meses têm proliferado os artigos sobre as fabulosas possibilidade abertas pelo ChatGPT, que, dizem-nos, em breve, permitirão redigir trabalhos escolares, teses académicas e artigos de jornal, o que tornaria os estudos superiores (ainda) mais fáceis e os jornalistas redundantes. Enquanto a maioria destes formidáveis avanços científicos não passam de fantasias inconsequentes ou de brinquedos inúteis e extremamente dispendiosos, o uso do ChatGPT para redigir teses e artigos é perfeitamente viável – na verdade, boa parte do que hoje se lê nos jornais já parece ser obra de chatbots.

 

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Imagem: Josef Danhauser, 1840

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