Fotografia de Marta Lança

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins descuidados, ou principescos, depende do grau de fantasia, de onde surgiam fontes de pedra e uma moradia elegantemente decadente. Havia vacas, gatos e cães açorianos. Sempre me intrigaram os animais das ilhas, a sua chegada e povoamento. Num barracão ao lado da casa dei com uma ninhada de gatos recém-nascidos. Susto ao ver seres lambidos quase em carne viva. [No outro dia revi na minha filha a mesma cara de menina urbanóide a descobrir os mistérios da natureza, a olhar para um borrego acabado de ser parido, ainda com cordão umbilical e placenta por devorar.] Gatos selvagens entravam por aquelas portas de rede que vemos nos filmes americanos, para roubar queijo e frango que marinava na bancada da cozinha.

Aliás, a América sentia-se muito por ali, no sotaque e nas expressões «comer uma hamburga», «gama» e «shuingam» para pastilha elástica, «snicas» (snickers) para ténis e «chortes» para calções. Toda a gente tinha parentes no outro lado do Atlântico. A canção dos Extreme, «More Than Words», interpretada por um filho da terra, o guitarrista Nuno Bettencourt, ouvia-se abundantemente.

2. Uma ilha é uma ilha é uma ilha e eu, com doze anos arrancada a uma ideia imberbe de «grupo mais importante que tudo no mundo», tinha de gramar uma vida insular, colegas provincianos, de olhos claros de mistério e sotaque esquisito. Achavam-me peneirenta, certamente, menina do Continente a falar sobre coisas do Continente que eles nunca tinham visto e se calhar não veriam. E eu explorava esse filão. Exemplos: tal como o jornal chegava com três dias de atraso, a telenovela passava na televisão regional uns meses depois; então eu traficava informação sobre episódios do Roque Santeiro que vira em adiantado. Também levei outras modas, como dançar slows, jogar ao bate pé e algum calão lisboeta. Em troca fiquei a saber que «blica» é pénis, a terra pode aumentar e descobri o primor de torradas de massa sovada.

Nas habituais estratégias de evasão das ilhas, os rapazes ambicionavam ir para a Força Aérea (um dos requisitos era não ter tatuagens nas mãos, rosto, pescoço e cabeça) e as raparigas cobiçavam namorar ou casar com os rapazes da Força Aérea. O Faial acolhia a Marinha Portuguesa em força e, de repente, estava cercada de elementos militares e marítimos. O meu irmão andava na escola do mar na zona da Rádio Naval e eu pratiquei alguma vela no Clube Naval. Frequentávamos jantares em casa do capitão do porto da Horta, de filhos simpáticos e esposa infeliz com as amantes do marido (dizia-se que as açorianas tinham fogo na cueca). No Peters, as personagens saltavam de livros para o copo de gin nas conversas de marinheiros e viajantes. Controlava esquemas para comprar calças Levi’s na Base Militar da Terceira. Fazíamos fragatas até à ilha de São Jorge, acompanhados por saltos e mergulhos de golfinhos e baleias que, mais do que excitar os tripulantes, inquietavam a segurança dos barquinhos. A proibição da caça à baleia estava prestes a acontecer, mas ainda eram exibidas mortas sem pudor, vencidas em luta feroz com baleeiros, no cimento da marina da Horta. Não esqueço a massa corpórea do gigante mamífero, a rebentar escalas do imaginário. A carne esquartejada para produzir óleos e farinha no final dos anos 80 não me fazia supor que a extinção das baleias fosse sequer um assunto.

3. Na nossa quintinha apreciávamos descaradamente o vulcão do Pico mesmo em frente. Agora tenho noção do privilégio, mas na altura só queria regressar para as arcadas de Benfica. A ilha em frente, o Pico, tanto era horizonte como espelho. O meu pai trabalhava entre lá e cá cruzando o canal e o mau tempo no canal. Ganhei-lhe mais respeito espiritual quando presenciei a partilha do pão nas Festas do Espírito Santo em São Roque. Da Horta, observava as nuvens na sua condição de nuvem, sufocando ou libertando o vulcão. Raras vezes, mas acontecia, o vulcão acordava limpo, exibindo-se como cone cinzento, esplendoroso e já não ameaçador. Apesar de extinto, um vulcão é um vulcão é um vulcão. Uns anos mais tarde, consegui escalá-lo, com um amigo de cabelo comprido e t-shirt do PSR imortalizada em fotografia no topo do Piquinho. Subimo-lo numa noite de lua cheia acompanhados por um faialense que fora aluno da minha mãe durante a estadia familiar.

Subir o vulcão é uma experiência de resistência. Deus passa a chamar-se oxigénio. Sentir a sua falta é aflitivo e paralisante. A sensação constante de que se está quase (Um pouco mais além eu era…) mas nunca mais se chega, a vontade de desistir vai esmagando a vontade de conseguir e é preciso relembrar constantemente o propósito do processo. É uma experiência-limite, uma autoprovação, mas ok, once in a life time. Também ia aos Capelinhos e, mais tarde, viria a subir o vulcão da Ilha do Fogo, em Cabo Verde, intuindo a personalidade telúrica dos habitantes de terras vulcânicas, mas o Pico é um orgulho que trago ao peito. Não deixa de ser a montanha mais alta do país, e cada um tem o seu Guinness pessoal. Só me apercebi de que a vaidade de conseguir subi-lo era superada pela ainda mais desafiadora prova de o descer, um surf hardcore na lava, com calcanhares como travões. Foi lindo petiscar e dormir na cratera, mas beleza pura foi ver o sol a nascer no mar, iluminando as ilhas do Grupo Central a partir do olho vigilante dos fins do mundo.

4. O meu pai apanhou-me a fumar enquanto eu olhava para o vulcão. Tão pequenina e já com curiosidades malditas! Em vez do esperado raspanete, cravou-me um cigarro. Até hoje estou a viver, para o mal e para o bem, o efeito (pedagógico) deste gesto. Gostava de o visitar no trabalho. Um estaleiro empoeirado, onde homens de capacete dinamitavam um grande buraco para instalar a casa da democracia regional. Admirava as explosões e as plantas em papel vegetal (também a engenharia se serve da linguagem botânica) nos gabinetes pré-fabricados dos engenheiros que orientavam os encarregados, que orientavam a força braçal que, por sua vez, se controlava entre si, pedreiros, carpinteiros, armadores, serventes, bombeiros, eletricistas, pintores, gesseiros, pedreiros de acabamento, calceteiros.

Provavelmente, as visitas da filha do engenheiro provocavam-lhes saudades das famílias e, num ou noutro mais atrevidote, malícia pela adolescente de maminhas a despontar. 

5. Na casa cor-de-rosa mortiço cheirava a mofo no corredor de rodapés de madeira e havia sempre fungos, mas era preciso encarar a humidade como ontologia do arquipélago. Na vizinhança, viviam os Decq Mota, família muito célebre na ilha, inclusive pelo episódio do Jacques Brel quando, em 1974, o médico Luís Carlos Decq Mota tratou o cantor que atracou, muito doente, nos Açores. O meu irmão pediu ao nosso pai para descrever a casa, e ele fê-lo com o rigor da sua memória visual, desenvoltura descritiva e técnica[1].

A dona da casa era viúva, o marido morrera numa cadeira de baloiço no quarto onde eu dormia. Disseram-me ou inventei. E para completar o enredo, havia um quarto fechado dentro de casa. Então, claro, imaginava o corpo do defunto lá escondido. Quase de certeza que tínhamos um cadáver em casa – dizia ao meu irmão – e isso tanto assombrava como empolgava. Viver com um quarto fechado despoleta todo um universo criativo. Não estou certa de que o desejo de desvendar o segredo do quarto fosse mais forte do que conviver com o próprio mistério. Talvez pressentíssemos que seria uma desilusão abrir o quarto fechado. Mas lá chegou o dia da revelação. Entrámos pela janela, abrindo-a com uma espécie de pé de cabra (não teríamos obviamente um pé de cabra à mão mas fica mais à filme). No interior do quarto percebemos que se tratava tão só de uma biblioteca com teias de aranha e documentos pessoais de um intelectual comunista. Desilusão com o fim do mistério.

6. Dois anos de tédio bucólico no Faial traduziam na perfeição a adolescência que será também uma certa insularidade. Pisava a areia branca da praia de Porto Pim e a areia preta da praia de Almoxarife com pensamentos místicos. Deixava-me girar nos melancólicos moinhos na Espalamaca. Fazia o trilho da Caldeira do Cabeço Gordo, de corta-vento e máquina kodak ao ombro, a decifrar a paisagem exterior e interior. Dava a volta aos 173 km da ilha em estradinhas ladeadas de hortênsias azul, rosa, lilás, e aquele verde da ilha que só voltei a ver na Irlanda, contrastado com o preto e branco das casinhas e com o azul do mar. O mar gritava: «daqui é que não sais». Tudo era denso e brumoso, as insuportáveis cagarras do Morro do Castelo Branco, do Monte da Guia, as piscinas naturais da fajã do Varadouro, até os surfistas da Praia do Norte. Os açorianos afiguravam-se orgulhosos e generosos, cada vez mais consistentes imbuídos naquela sua geografia desalvoroçada e viçosa. Os eventos culturais no Teatro Faialense pareciam sempre de outras gerações. Tudo isso me ensinou a gerir a desadaptação, o duplo movimento de olhar para dentro e para fora, a baixar a bolinha de certos preconceitos e a perceber que os meus códigos não funcionariam em todo o lado. Ensinaram-me a dimensão protetora e asfixiante das pequenas comunidades, a beleza e a força das ilhas na aspiração ao mundo. More than words to show you feel / That your love for me is real.

__

[1] O meu pai descreve a casa assim: «Uma moradia de planta retangular, com telhado tradicional de quatro águas, antiga, provavelmente dos anos 30. A frente da casa, virada à Rua Ilha do Pico, tinha um portão largo e entrávamos para um relvado que conduzia à entrada, feita por um lanço de quatro ou cinco degraus exteriores, com acesso à porta central, enquadrada por duas janelas, uma de cada lado. O edifício era rebocado de cor ocre claro, aqui e ali já manchado pela passagem do tempo, com algumas zonas de reboco a cair. As caixilharias exteriores eram em madeira de desenho antigo, janelas de duas folhas, de abrir, com persianas de ripas. Uma vez entrados na casa por um corredor central que corria a todo o comprimento tínhamos, à direita, o quarto principal e, à esquerda, um quarto fechado onde a proprietária tinha guardado mobílias, livros e diversos objetos da casa, inacessíveis aos inquilinos. A seguir, no corredor, havia mais dois compartimentos à esquerda e à direita, sendo um o quarto da Marta e, em frente, a pequena sala, equipada com sofás, televisor e uma lareira que acendíamos no inverno. Ao fundo do corredor, à esquerda, um pequeno compartimento, menor do que os restantes quartos, foi adaptado para quarto do Tiago com uma pequena cama e um grande roupeiro. Seguia-se a casa de banho, com louças sanitárias antigas e uma grande banheira de esmalte branco. A seguir, a casa terminava na cozinha, que dava saída para as traseiras e da qual se via toda a ilha do Pico, do lado oposto do canal. Por baixo da casa havia uma semicave a que, localmente, chamavam a loja, destinada a arrumos e coisas velhas, em cujo teto corriam as tubagens de água, esgotos e demais instalações. O pavimento era em madeira assoalhada, muito bonito, antigo e rangente. Na sequência da cozinha havia um novo relvado que terminava num muro de pedra e, à esquerda, algumas árvores. Era uma casa antiga, mas quente e acolhedora, como o ambiente da Horta e das suas gentes.»

Relacionados

Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
Ceroulas <i>par avion</i>
Boa Vida
A Pequena Cereja

Ceroulas par avion

“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show brasileiro Mulheres Ricas, num dos seus inúmeros brindes com champanhe a 500 € o litro. Val (née Valdirene no interior do Paraná) é uma das cinco milionárias que compõem o elenco do programa que, em

Ler »
Teatro Cósmico #10
Artes Performativas
José Maria Vieira Mendes

Teatro Cósmico #10

Artista da vida   No espetáculo Abstract, de Cão Solteiro e Vasco Araújo, um grupo de cerca de seis jovens que entra palco adentro, pelo fundo, vestido com hoodies pretos e segurando sacos de plástico brancos nas mãos, distribui um texto ao público: “Vida de artista” de Alexandre Melo. O

Ler »