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Everything is Alive

Poucos segundos depois de o programa começar, Sean, o entrevistado, revela que um dia normal na sua vida é incrivelmente longo — começa exatamente «à meia-noite e um segundo» — e, basicamente, consiste em «ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar, ir ali… e voltar, ir ali e voltar, ir ali e voltar… e é fantástico!»

Num dia normal, Sean vê imensa gente, que parece sempre muito atarefada. Vê pessoas que mostram estar preocupadas e vê outras felizes… porque, no fundo, como todos sabemos, a vida das pessoas tem altos e baixos. Mas a vida de Sean, não. «É sempre muito estável» e ele adora isso! É nesta altura que Ian, o entrevistador, lhe pergunta: «Então, e… como é que é quando alguém se senta em cima de si?»

Sean nem hesita na resposta. Considera que é o máximo — aliás, tem a esperança de poder passar um dia inteiro sempre com alguém sentado em cima dele — e afirma que, não existindo dois traseiros iguais, consegue sentir-lhes subtis diferenças, por exemplo, na tensão muscular e na distribuição do peso de cada um, e que daí consegue inferir o estado emocional das pessoas — «o rabo é a minha janela para a alma [de cada uma delas]».

[SPOILER ALERT] O entrevistado é, na verdade, um assento (de metal) de uma composição de metropolitano em Nova Iorque. Está à conversa com Ian Chillag, o entrevistador (humano, de carne e osso) dos objetos inanimados que são os protagonistas de Everything is Alive, o multipremiado podcast de autor integrado na Radiotopia, uma rede de podcasts independentes que se apoiam mutuamente.

A premissa de falar com objetos do dia-a-dia é tão estranha quanto óbvia e isso, logo aos primeiros segundos de audição, causa uma certa “inveja boa” em quem sabe que, de certeza, poderia perfeitamente ter tido essa ideia, mas não teve.

Não quero ter a pretensão de falar por toda a Humanidade, mas é quase seguro que, em qualquer altura da vida, já falámos (ou, pelo menos, barafustámos) com um ou outro objeto. Se calhar, o mais lógico nível seguinte seria mesmo olhar para as coisas e pensar nelas como possíveis interlocutores, com autoconsciência, conhecimentos enciclopédicos e históricos, emoções, sentido de humor, até… e  —  por que não?  —  trazê-las a estúdio para uma conversa franca.

O assunto “rabos sentados em cima de…” não é assim tão recorrente em Everything is Alive, mas a pergunta «como é que é quando um humano se senta em cima de si?» surge num outro episódio, em que o entrevistado é Chioke, um grão de areia. A questão vem à baila quando se recorda o tempo em que Chioke estava a viver (e… trabalhar?) numa praia. Atualmente, tem morada e função diferentes. Está «dentro de um aquário na casa de um gajo qualquer», com dois peixes muito confusos, há dois anos a nadar de um lado para outro do tanque «a tentar encontrar a saída».

Entrevistar apenas um dos estimados sete triliões e quinhentos mil biliões de grãos de areia existentes em todo o mundo cria um desafio acrescido — para além do desafio óbvio de… enfim… se estar à conversa com um grão de areia que, em teoria, não deveria falar. Um grão de areia, diz Chioke, só se sente como fazendo parte de areia junto dos seus pares. Apenas juntos — e normalmente aos milhares (num aquário), ou aos milhões (numa praia, num deserto…) — esses grãos individuais se podem considerar “de areia”. Sozinhos são só pedrinhas de pequeníssima dimensão, ou partículas de… qualquer coisa. Não areia.

Ian Chillag aceita este desafio como todos os desafios que surgem nestas conversas impossíveis no mundo real e — inspirado no estilo de Terry Gross, a mítica entrevistadora de Fresh Air na rádio WHYY/NPR (um programa também disponível em podcast e em que Chillag foi produtor) — molda e coloca a pergunta seguinte com base naquilo que acabou de ouvir.

Para além da tal premissa estranha, o “gancho” que segura o ouvinte — pelo menos, o ouvinte que escreve esta prosa — é a surpresa da mistura. A mistura do previsto com o imprevisto, da conversa ficcional com temas predefinidos com a liberdade de improviso dada aos atores que dão vida aos objetos entrevistados (e que “obriga” também ao improviso de perguntas imprevistas), da interpretação de diálogos de ficção com a pesquisa jornalística de informação útil (e/ou inutilmente interessante), e até da conversa em estúdio com entrevistas de reportagem ao telefone com humanos especialistas em temas que surgem na conversa com os objetos inanimados. 

Tudo isto, convenhamos, é bastante heterogéneo, mas não é aleatório. Há uma lógica no formato. No entanto — lamento — eu não sei dizer qual é.

Bom, na verdade, como autor, produtor e realizador de podcasts, sei perfeitamente quais as técnicas que ali são aplicadas; mas como ouvinte, — um pouco como aquela coisa de optar por tentar descobrir ou não tentar descobrir como um ilusionista terá feito acontecer o truque de magia que acabámos de ver — opto pela velha prerrogativa “A ignorância é uma benção” que me permite (e a quem ouve o podcast Everything is Alive) ser surpreendido com o que é dito e com o que acontece em cada episódio.

E, de facto, coisas impensáveis acontecem no decorrer do programa, tanto como coisas totalmente inesperadas podem acontecer a quem o ouve. Ainda recorrendo ao episódio do grão de areia chamado Chioke — note-se que estou a tentar evitar falar em muitos episódios diferentes, para não ser demasiado spoiler —, no início daquela conversa fala-se de forma ligeira e bem-humorada sobre a inconveniência que os humanos parecem ver na areia que entra pelos fatos de banho, que vai para cima da toalha, ou que aparece no fundo dos sacos e mochilas, apesar de serem os próprios humanos a dirigir-se voluntariamente a uma praia com imensa areia. Mas, pouco depois, o ouvinte pode aperceber-se de que tem um brutal nó na garganta e uma lágrima ao canto do olho, ao ouvir o testemunho emocionado de uma mulher britânica a quem Ian Chillag liga para falar de um trabalho de locução voz-off que em tempos fez para o metropolitano de Londres — e, sim, há uma relação perfeitamente lógica (e interessantíssima) desse precioso momento de reportagem com o tema da areia conversado com Chioke.

Se é tudo perfeito neste programa? Claro que não. Dou um exemplo. Por vezes, a senciência dos objetos toma conta da conversa e discorre-se demasiado sobre sensações e emoções que se percebe serem do ator, ainda que sejam reveladas como sendo do objeto. Isto não é necessariamente mau, até porque cada artista convidado a fazer esta estranha imersão, não só quase sempre dá o seu próprio nome ao personagem como é livre de trazer um pouco da sua personalidade para a “personalidade” do objeto. O difícil — e por vezes não conseguido — é acertar no “enough”, sem chegar ao “too much”. Regra geral, esse equilíbrio acontece com sucesso, sensibilidade e sensatez, muito embora a avaliação sobre esse sucesso/insucesso esteja à discrição de cada ouvinte; o que para mim é “enough”, pode ser “too much” para outros ouvidos.  

O podcast nasceu em 2018 e, à data em que escrevo estas linhas, vai na quinta temporada. A fazer fé na cadência de cada uma das anteriores, também esta temporada terá entre oito e dez episódios e depois um longo jejum de vários meses até que uma nova temporada faça regressar as histórias “de vida” de mais objetos inanimados, contadas em testemunhos “na 1ª pessoa”.

Há um alegado senso comum que pulula entre os produtores de conteúdos em geral e também os potenciais patrocinadores (que em Portugal são muitíssimo raros e agarrados a métricas de audiências de outros meios de comunicação audiovisual, irrealistas para o universo dos podcasts) que “diz” que um bom podcast tem de estar sempre a colocar mais conteúdo online. Isso só é verdade quando o assunto de um programa é a atualidade (notícias, comentário de assuntos correntes, de política, de sociedade, de economia, de desporto, etc.), ou quando há muitíssimo material de base (por exemplo, a História, em que há séculos e séculos de documentação que pode ser consultada de forma relativamente simples). Ah! Ou então quando um podcast tem uma vasta equipa que trabalha incessantemente para alimentar programas semanais de storytelling, como This American Life (Chicago Public Media), de ciência, como Unexplainable (VoxMedia), de economia, como Planet Money (NPR) — já para não falar da imensa oferta de podcasts e programas de rádio tornados podcasts do universo BBC Radio.  

A verdade é que vários dos melhores produtos em formato podcast são feitos de temporadas curtas, ou relativamente curtas, preparadas com o tempo suficiente para que a criatividade, a pesquisa, o planeamento das várias fases de produção e realização possam tomar o seu tempo, para nascer, crescer e dar frutos. Gosto sempre de recordar o caso paradigmático do programa que (de forma irrealista, dadas as enormes diferenças de universo de potenciais ouvintes) serve de “pedra de toque” aos pouco motivados potenciais sponsors a quem os podcasters pedem apoios em troca de publicidade. O caso Serial e outros podcasts que dessa equipa — agora a colaborar com o The New York Times — vão surgindo (S-Town, Nice White Parents, The Improvement Association, The Trojan Horse Affair, e, recentemente, We Were Three) são séries “rápidas” de poucos episódios, trabalhadas durante vários meses (ou até anos) antes da publicação — e a publicação tende a ser em drop de toda a temporada no mesmo dia, para a audição em binge; um pouco como acontece com séries de televisão em streaming.   

Essa escassez de episódios muito bem preparados, muito bem realizados e, por isso, muito bons — como nos dizem os conceitos básicos da economia, como a lei da oferta e da procura — é o que dá maior valor ao (muito) trabalho que dá fazer um bom podcast.

Um bom produto tem sempre consumidores interessados. Se o produto for muito bom, então os consumidores vão de certeza querer sempre mais. Se o produto não estiver sempre disponível, durante o hiato cria-se um desejo pelo regresso, que depois resulta em consumo praticamente garantido.

Por seu lado, um produto sempre disponível, sempre a chegar ao consumidor, sempre produzido (quase de forma “mecanizada”, “industrial”) com base na mera necessidade de estar disponível, corre o sério risco de sofrer na qualidade. Mais cedo ou mais tarde, o consumidor deixa de lhe dar valor, tomando-o por garantido, ou simplesmente farta-se de um produto mediano. Muita oferta = menor procura, dizem os compêndios.

Na minha opinião, ainda bem que há programas raros. De que forma poderia eu conhecer a vida e as opiniões de Dina, uma chupeta, cuja existência oscila entre «o inferno e o pesadelo… geralmente, dentro de um buraco escuro muito húmido, (…) e quando não é um buraco escuro e húmido, é numa muito barulhenta e estridente sala de tortura» que é a boca de um bebé? Qualquer mente criativa dirá que uma boa ideia pode surgir de um momento para o outro, mas que pô-la em prática da melhor forma requer tempo e trabalho. Há que dar o devido crédito ao labor que dá chegar-se ao “ponto de rebuçado” de nacos de entrevista como esta reflexão de Dina, a chupeta, sobre o seu utilizador: «Um bebé é enganador. Estas coisas são projetadas para serem enganadoras. São muito pequeninas e não parecem capazes de produzir os decibéis que produzem. Só a quantidade de baba que esta… esta criatura consegue produzir…! Quando não está a guinchar, eu consigo entender o encanto… mas na maior parte do tempo está mesmo é a guinchar… e aí o meu papel é entrar no bebé e acalmá-lo.» Alguém teve tempo para pensar como incarnar este objeto que tomamos por certo, singelo e quase sempre colorido, bonitinho e fofinho, para nos mostrar quanto verdadeiramente sofre uma chupeta e quanto ela nos faz falta a nós, adultos, mais que aos próprios bebés. Obrigado!

Da mesma forma que conhecemos Dina, encontramos Ginny, um Roomba que  — passe a imodéstia — já fez trabalho de modelo, “desfilando” na loja  onde estava à venda, para que as pessoas vissem quão bem era capaz de aspirar o chão. E também Emmy, um teste de gravidez, Josh, uma serra elétrica, Martin, um dispensador de toalhas de papel, e duplas como Tami e Ed, canetas de feltro, Louise e William, camisa e calças e até uma tripla, Sebastian, Alex e… Alex, bonecas matrioskas, que são três coisas autónomas e uma só coisa ao mesmo tempo — e que inesperadamente discutem entre si em plena entrevista.

Pelo meio, aprendemos coisas novas, descobrimos curiosidades do mundo real sobre pessoas, factos e lugares referidos pelos objetos entrevistados, rimos muito, emocionamo-nos sem estar à espera, e — não querendo chocar quem lê este texto — há um caso em que o humano Ian Chillag devora as entranhas do objeto que acaba de entrevistar.

Oiça por sua conta e risco.

= = =

Everything is Alive é um podcast criado e apresentado por Ian Chillag, produzido por Jennifer Mills, distribuído pela Radiotopia. É quinzenal e — como referido no texto — sazonal. Disponível gratuitamente em todas as plataformas de audição de podcasts.

 

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