Há mar e mar, há veenho e voltar

No dia 30 de junho, os Veenho, uma banda lisboeta composta por Martim Brito, António Eça, Xixo e Gonçalo Formiga, lançou o seu terceiro disco, Lofizera. O álbum foi produzido pela própria banda e é editado pela Xita Records.

Este disco é a concretização de uma promessa iniciada no segundo álbum (sem título, tal como o primeiro, e tal como o primeiro, editado em 2017) da banda. O primeiro álbum dos Veenho é um exercício musical sem grande potência, o típico trabalho de uma banda imatura. Pelo contrário, o segundo disco, editado nove meses depois do primeiro, revela um crescimento incrível – nem parece a mesma banda. As características? Rock n’roll de guitarras com muitos solos, muito fuzz, algum noise, muitos pratos e brakes rápidos, baixo saltitão e uma leve brisa a bonomia, e lazer boémio. Música de quatro por quatro cheia de corpo e energia, com boas mudanças de ritmo entre canções, refrãos compostos por solos de guitarra, e versos curtos sobre depressão, medo, fuga, verão, e sonhos. Tudo bem organizado e trabalhado, no sítio certo.

Na capa estava uma estrada, e ao fundo uma praia. A direção parecia ser criar um surf-rock mais urbano e agressivo. Lembravam os Wavves, embora com um toque mais romântico, parecido com o primeiro disco das Golden Grrrls. Este segundo esforço tinha charme, mas era ainda modesto na sua ambição: podia ainda bem crescer e expandir-se.

Os primeiros singles de Lofizera – “Meio Ausente” e “Insolência” – vieram em 2020. “Meio Ausente”, lançada no início do ano, caiu que nem uma bomba: guitarra ritmo bem malhada, guitarra solo com riffs cativantes e um solo final bem sentido, o ritmo à la Fab Moretti sempre constante, e a letra curta mas eficaz (versos simples sobre alienação, hesitação e desejo de regresso: “deixei a pressa pra me resolver / meio ausente, tento amanhecer”). Uma canção indie rock feita a régua e esquadro, e com uma potência aumentada face a 2017. Não se podia pedir outra coisa, mas podia querer-se mais dessa coisa.

“Insolência”, lançada no final do ano, é mais divertida. A mesma garra no som, mas com o ritmo mais acelerado (muitos pratos, muitos tambores, muito bom). O espírito ainda é alienado (“nunca dei certo e nada fiz para o merecer”), mas a música, e a expressão calma, a duas vozes, como a letra é cantada dá-lhe uma festa jovem, sentida, e – olhem, sabem que mais? – fixe.

Foram precisos três anos para se ter mais dois singles e, agora, o disco. Catorze canções, com a duração total de trinta minutos. Surf-rock, ou noise-pop, ou o quê? Lembra as Best Coast (o “When the Sun Don’t Shine” em “ex-punk”) e os Drums (no “mau veenho”). Mas há mais para além disso; o fuzz das guitarras lembra-me os Yuck e os Happyness do primeiro disco, enquanto as Golden Grrrls regressam ao meu coração em “str8 edge corner”. E há um ar à bonomia dos Strokes no ar, aquele estilo blasé, direto ao assunto, tão lúdico – “tédio” e “desforra”. A “destreza”, canção final, tem a mesma pinta que “I Can’t Win”, canção final de Room on Fire; imagino-a pôr ancas a abanar e pessoas em danças de twist na pista. Notam-se igualmente algumas semelhanças com o colega de editora Primeiro Dama no som (Gonçalo Formiga gravou Superstar Desilusão, último disco do artista lisboeta, e Martim Brito tocou bateria) e nalguns jeitos nas vozes.

As referências são de quem ouve, talvez não de quem faz. Quem faz, fez um disco muito bonito, forte, e lisboeta, daquela lisboa que é viva e não apenas postal, que é jovem mesmo estando presa porque, enfim, a vida, e que se solta como pode, sem nunca abdicar do balanço, da presença, e do estilo. Que chapéu!

O álbum é um sucesso que vai crescendo canção a canção, com a exceção de “passar mal”, a única que me faz passar para a frente, no pun intended (o ritmo é lento e arrastado é uma canção que parece estar a mais). Pontos (mais) altos? “maré alta”, para começar, a melhor música de rock que um verão pode pedir; “ex-punk”, uma malha com grande urgência e ritmo, a apontar à atenção (“muda-se o tempo, muda-se a vontade / falhou-te a noção, não assertividade”); “medo das alturas”, uma canção com um tocante retrato de apatia existencial – “morri no engano / ansioso e distante / esqueci a corrida / acostumei” – rodeado por ótimos e pesados riffs. E, claro está, a versão de “semi-hippie” de Lê Almeida: com um minuto e meio, e um cheiro forte a tremolo no solo final, é um monumento de catarse jovem e apaixonada.

Com este disco, os Veenho colocam-se em nome próprio num espaço de destaque dentro da efusiva cena do rock n’roll lisboeta, ao lado de outros nomes como Chinaskee, Primeira Dama, Vaiapraia, Filipe da Graça, Maria e Júlia Reis (conhecidas como as Pega-Monstro), Miguel Abras e Éme. A companhia é pesada, mas os Veenho têm mais do que nível para aguentá-la, e pô-la em sentido: as canções são boas, a execução virtuosa, e o som robusto, e próprio. Por favor, que não tenhamos de esperar mais de seis anos pelo próximo álbum.

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