Talvez seja altura de deixar os mortos irem à sua vida
Em Águeda todos têm alcunhas. O Ingle, por exemplo. Vive há quase trinta anos em França mas chamam-lhe Ingle porque a primeira vez que emigrou foi para Inglaterra. Em Águeda, as alcunhas são como as pastilhas elásticas que, derretidas pelo calor do Verão, ficam coladas às solas dos sapatos. Ou como o alcatrão que, na praia, ficava agarrado às plantas dos pés, mas faz muito tempo que não me deparo com alcatrão nas praias.
Foi o Ingle que trouxe para Águeda a história do Cão ao Contrário e é, na verdade, uma história supimpa. Com o toque de humor que o Ingle tem, um humor fininho, quase despercebido, mas que, de repente, corta como uma folha de papel que manuseamos distraídos. Já me cortei com folhas de papel como se fossem lâminas. E, no entanto, não me fascino por lâminas, só por folhas de papel, sobretudo em branco, prontas para serem sujas com as linhas pretas de qwert. Não vou contar hoje a história do Cão ao Contrário. Nem sei se a vou contar aqui alguma vez. Estou a brincar. Acho. Hei-de escrevê-la, sim. Aliás, até já publiquei um livro intitulado precisamente O Cão ao Contrário, cheio de outras histórias do género, por isso não havia motivo para não a trazer para cá um destes dias. Mas não hoje. Não hoje, desculpem lá. O Cão ao Contrário fica aí em cima, dependurado, pois era preciso um título para as crónicas e eu pensei em escrever a história desse cão que vive no Buçaco. Ao contrário. Mesmo ao contrário.
Mas, entretanto, as coisas mudaram.
Na minha vida as coisas mudam todos os dias, até várias vezes ao dia.
Na minha vida cada dia são muitos dias e tenho a vida cheia de dias e com vontade de encher-lhe todas as horas. Por isso, nada parece bater certo, como rodas dentadas desacertadas. Mas na hora de tentar dormir, nem que seja a correr, tudo parece estar no seu lugar. Como Saint-Exupéry e o seu Pequeno Príncipe perdidos no deserto.
Neste momento estou em Assolna, perto de Chinchinim e não muito longe de Cuncolim e Cavelossim, na beira do rio Sal, sobre o qual flutuam os barcos-restaurante encostados às margens lodosas.
Os gaviões pairam sobre as águas à procura de peixe. São escuros como os corvos. Depois vêm as águias-pesqueiras, castanhas de cabeças brancas e os gaviões, com respeito, afastam-se. Já os corvos não têm respeito por ninguém. Nem por Deus, que vive aqui, por entre palmeiras e coqueiros, frondosos cajueiros e acácias que, de repente, explodem de amarelos e de vermelhos que quase cegam os olhos se os abrirmos demasiado.
Cheira a salsugem.
Estão a ver porque é que não me dá jeito escrever sobre o Cão ao Contrário. De certa forma estou ocupado, vêem?
Os caranguejos do rio Sal são grandes e vêm recheados de malaguetas. É preciso enfiar os dedos bem dentro deles com jeitos de cirurgião trapalhão e arrancar-lhes as febras das entranhas. Fried Chili. Impróprio para quem rói as unhas. Deixei há tempos de roer as minhas. Roer as unhas é um work in progress que exige muita atenção e muita dedicação. Os meus dedos tornaram-se viciados em teclas de computador e em cordas de viola. Não tocam em mais nada. A excepção é o caranguejo. Já nem tu por dentro, lugar que costumava conhecer de cor mas já não faço ideia dos seus contornos.
Tenho as córneas reverberando de vermelho-saltitante. Quem me mandou olhar de frente para a acácia-rubra? O meu avisou-me desde miúdo: «Nunca olhes o Sol de frente!»
Aqui o Sol tem muitas formas. Menos a tua que deixaste de ser Sol e passaste a ser sombra. O céu que te ature!
O Sal não é o Ganges, mas podia muito bem ser. Se o Ganges passa na rua dos Douradores, também pode passar em Assolna. Não há nada que o proíba.
O Assolna também não é o Sado que passa por debaixo da minha varanda em Alcácer do Sal.
Nem o Águeda, o rio da minha aldeia.
O Assolna é apenas o Assolna, um rio tranquilo que não tem pressa de chegar ao mar.
Na margem do lado de lá, espreito flamingos brancos. Os flamingos são mais ou menos cor-de-rosa dependente dos mariscos que comem. Aqui, o camarão pequeno também é quase transparente. Não admira que estejam pálidos, mesmo ao pino do meio-dia, hora da sombra mais curta.
O dono do restaurante no qual eu e o Michael Fernandes viemos sentar-nos chama-se Pussie. O Mickey é como o Cão ao Contrário, todo ele um mundo de histórias para contar. Também escrevi um livro sob o Michael Fernandes que se chamava Uma Sombra Laranja-Tigre. Gosto de escrever livros que tenham muitas histórias dentro. Algumas delas invento. Outras deixo que seja a cerveja e o calor e esse efeito reactivo cerveja-canícula a escreverem por mim. Escrevem bem melhor do que eu.
Mr. Pussie tem um bigode farto mas o nome não lhe fica bem. A barriga entorna-se para fora do cinto e ele sorri sem parar.
«Ok, he is a smiling Pussie».
Mas não lhe fica bem na mesma.
Aqui podemos ver kingfishers a voar fora dos rótulos das garrafas de cerveja. Pairam sobre os peixes que, incautos, saltam nas águas. E levam-nos com eles presos no bico para apreciarem a refeição numa sombra qualquer, talvez de um mirabolano-belerico, uma árvore tão estranha que a palavra mirabolante nasceu dela.
Tenho saudades do Paulo Pimenta (por extenso, Gelateiro), meu irmão, que uma vez aqui esteve comigo, há muitos anos, antes de ter resolvido morrer. De tempos a tempos, penso que vai voltar. Que não está verdadeiramente morto, apenas atrasado. Ele estava sempre atrasado para tudo. Só teve pressa para a morte. Que estupidez! Tenho aqui uma montanha de carinho fraternal que é dele, só dele, e não sei o que fazer com esta merda. Deito fora. Mas há baldes de lixo para carinhos que perderam o destinatário? Não posso dá-los a ninguém, porra: é personalizado. É o teu carinho, mano! Todo o amor que sentia por ti e, agora, aqui como um peso que me faz dobrar os ombros.
Acho que o Gelateiro não vai voltar.
Se fosse a ele não voltava.
Talvez seja altura de deixar os mortos irem à sua vida.
Eu tenho a vida cheia de mortos.
Os grilos fervem por entre as folhas das árvores
Assolna veio do konkani: oslem-na. Quer dizer: «Não há nada igual a isto». Não há nada igual à morte. Aposto. A palavra em konkani que mais gosto é suségad: mas também aposto, singelo contra dobrado, como nos livros do Texas Jack, que os mortos não têm sossego. Por isso nos visitam.
Agora estou no Cota Cozinha, em Betelbatim. Mais um lugar onde não dá jeito nenhum escrever a história do Cão ao Contrário mas, como já perceberam, não vou mesmo escrevê-la, não tão cedo. Parece que entrei num lugar perdido no tempo. Famílias numerosas chegam e sentam-se às mesas cobertas por um tecto de vigas de madeira no qual as ventoinhas marcam, com as suas asas de helicóptero, o ritmo monótono do domingo.
Na Índia come-se a todas as horas. Em Goa também. É Índia, afinal, embora aqui ouça os sinos da igreja como se estivesse no Olival, lugar que ficava no ponto mais alto da infância.
Os mais velhos às cabeceiras, senhores bem-postos, de camisas brancas com o último botão do pescoço bem apertado, matronas gordas boiando em vestes largas com requintes de retorcidos. Antigos brâmanes e chardós, provavelmente, as castas que se cristianizaram e assumiram o topo da sociedade no domínio português.
Há uma ligeira sensação de estar num lugar que já não existe, desembarcado de uma brecha no Tempo, enquanto escuto a voz do John Denver numa das colunas e espero pelo frango cafreal o mais picante possível e um prato de amsol, entrecosto cozido com malaguetas.
«So kiss me and smile for me/Tell me that you’ll wait for me/Hold me like you’ll never let me go…» O Gelateiro tocava isto em toda a parte. A sua alegria era escandalosa, diria o Ivan Lins.
Olho para a fruta-pão, dependurada nas árvores, recordo-me do barulho que faziam à noite quando se esparramavam no chão junto à janela do quarto onde eu dormia, na casa do Zé Fernando de Almeida, em São Tomé. Recordo-me da insistência do Gelateiro em tirar da viola sons que lá não estavam: «I’m leaving…» Foi-se. E agora? Estou demasiadamente perdido para saber responder.
Mais de vinte anos regressando aqui, e quantos amigos de cá já perdi? Os dedos de uma mão não chegam. Menino, o gigante que tinha um abraço de colo de mamã grande. Durigo (ele nasceu Do Rego), o jogador antigo dos joelhos destroçados, que nos recebia no seu restaurante como se fôssemos príncipes de Golconda. «I’m leaving on a jetplane». Vou e volto. Quem reencontrarei da próxima vez? Sim, a morte também chega ao paraíso. E os fantasmas dançam a canção da Índia à sombra das palmeiras…
Não se preocupem: o cão continua ao contrário…