GrouchoMarx, por Lia Ferreira

O Marxismo, tendência Groucho

Groucho Marx, nascido Julius Henry Marx, em Nova Iorque, em 1890, disse um dia que “queria viver para sempre ou morrer a tentar”. Talvez não surpreendentemente, morreu a tentar, em Agosto de 1977.

Entre um momento e outro, o tal tracinho que separa as datas de nascimento e morte nos obituários, ficou uma das mais longas, extraordinárias e influentes carreiras na história do humor americano e mundial, já para não falar de ele ser provavelmente o mais influente dos Marx, no que diz respeito à política contemporânea, ou não tivesse popularizado a frase: ”estes são os meus princípios, se não gostar deles, tenho outros”.

Os seus aforismos, como aquele que que dá o título a esta crónica, quer fosse utilizado como crítica ao establishment, como em Paris, durante o Maio de 68, ou simplesmente, como demarcação de outros marxismos, tornaram-se a sua imagem de marca.

Para a criação dessa figura icónica contribuiu abundantemente o seu famoso modo de andar como um pato, o bigode, que era um traço grosso de tinta preta, o omnipresente charuto, as suas diatribes e as suas réplicas, tão demolidoras como de vertiginosa rapidez.

Alguns destes elementos surgiram por acaso, outros decorriam da lógica interna do ensemble. Por exemplo, reza a lenda que Groucho se atrasou um dia para uma actuação no teatro. Sem tempo para colocar um bigode postiço, fez o traço grosso que usaria durante boa parte da carreira. Talvez mais provável seja a versão de que ele detestava a cola do bigode postiço. De todo o modo, o traço foi um sucesso e permitia-lhe, no auge da popularidade, ter um disfarce perfeito para passear incógnito. Sem ele, era irreconhecível. E para Julius, um homem bem mais cordato que Groucho, isso era inestimável.

Mais do que um actor, Groucho era a persona que enformava todas as suas personagens e aparições públicas, fossem elas como um falso veterinário, governante imaginário dum país imaginário, ou como um falso explorador americano regressado de uma expedição em África, ou na rádio e na televisão como apresentador, Groucho era sempre Groucho.

Ele, que eternizou a máxima de que nunca quereria ser membro de um clube que o aceitasse como membro, tornou-se parte de um cânone ou, se preferirem, parte inextrincável de um tecido cultural que perdurará bem mais do que o próprio.

A lista de comediantes que o refere como sendo uma das suas principais influências é praticamente infinita: de Woody Allen (inesquecíveis os pais, em Inimigo Público número 1, disfarçados de Groucho Marx para falarem do filho, ou a festa de Groucho Marx em “Toda a gente diz que te amo”), Spike Milligan, Monty Python, Elliot Gould, Judd Apatow, Alan Alda, etc. etc..

A eles se juntavam fãs tão distintos como Goscinny, Alice Cooper, os Beatles,  Eugene Ionesco, Robert Crumb, Dali, Gershwin, J.D. Salinger e Kurt Vonnegut entre tantos outros.

Groucho era uma instituição.

A ironia reside precisamente aí:  se Groucho Marx, foi, é uma instituição, um ícone, o humor dos irmãos Marx e de Groucho, em particular, caracterizava-se por ser iconoclástico, desafiador das convenções, anárquico mesmo.

Onde os irmãos chegavam, o caos instalava-se. O gozo à autoridade, fosse ela moral, social, policial ou mesmo política e um claro desprezo pelo modo como era exercida, perpassa em inúmeros filmes deles.

Groucho era do contra. Contra o que estivesse estabelecido. Uma das suas canções não podia ser mais explícita, começando pelo título: “I’m against it!”. A cena lembra de algum modo a de Vasco Santana enfrentando o seu tribunal de professores. Mas enquanto o Vasquinho é, da primeira vez, ignorante e da segunda, um verdadeiro sábio, Groucho está pura e simplesmente contra o que lhe estão a dizer os doutos professores. Marx Bros. Horse Feathers – “Whatever it is, I’m against it!” | High-Def Digest

“I don’t know what they have to say
It makes no difference anyway
Whatever it is, I’m against it
No matter what it is or who commenced it
I’m against it

Your proposition may be good
But let’s have one thing understood:
Whatever it is, I’m against it
And even when you’ve changed it or condensed it
I’m against it” e por aí fora.

Apesar de tudo, esta aparente contradição insanável de ser um ícone anti-sistema do sistema, está perfeitamente coerente com a personalidade dele. Groucho era, assumidamente, esse poço de contradições, como ficou claro numa entrevista a William F. Buckley, um intelectual conservador, famoso nos EUA e não só, pelos debates que protagonizou nas décadas de 60, 70, com figuras como, por exemplo, James Baldwin.

Durante a entrevista, Groucho foi confrontado sucessivamente com o que tinha escrito em livro e que foi desmentindo, contraditando e mais raramente concordando, parecendo genuinamente surpreendido com algumas das suas opiniões.

Já na altura, Buckley, considerado por muitos a resposta intelectual conservadora à contracultura, questionava Groucho, sobre, pasme-se, os limites do humor. Buckley afirmava-se um absolutista da Primeira Emenda, Groucho, para espanto e incómodo de Buckley, manifestava reservas sobre o humor que tivesse por alvo minorias, nomeadamente a negra e a judaica, por exemplo. Buckley pergunta-lhe se ele não gosta de espectáculos, de menestréis negros. Sim, se forem feitos por negros, responde. Se isso corresponde à imagem de liberal, no sentido americano, por outro lado, Groucho manifesta-se contra aquilo que denomina por “dirty humour”, ou humor ordinário, bem como contra o excesso de nudez e sexo no cinema. Um conservador, portanto. Que termina o argumento com “se não sou eu que estou a fazer aquilo, que interesse é que eu tenho em vê-lo?”.

Este era o mesmo Groucho cujos comentários lascivos, driblando o código de Hayes em rapidez e trocadilhos e desconcertando a sua parceira habitual, a hilariante, muitas vezes sem interferência da própria, Margaret Dumont, seriam provavelmente incluídos hoje em manuais de misoginia.

Assistir à conversa é um deleite. Tanto Buckley como Groucho são duelistas brilhantes, Groucho especialmente no que me boxe se chamaria um counter-punch. Provavelmente isso decorre do hábito de rematar premissas em punch-lines. Talvez fosse a generosidade do anfitrião a fazê-lo brilhar. Há no entanto algo que, como humorista, me impressiona: A entrevista com Buckley sobre os limites do humor é de 1967. Por esta altura, Groucho já trocou o seu bigode pintado por um verdadeiro, e o chapéu alto por uma boina com 3 bolas de golfe coladas na parte de cima, com que ia à maioria das suas entrevistas televisivas, simulando aquilo ser um intervalo na sua vida de lazer.  O certo é que, mais de meio século depois, a forma como o humor e os seus limites eram discutidos e até os lados da barricada, permanecem mais ou menos os mesmos. E tudo indica que a discussão está para ficar, já que aparentemente ninguém se vai fartar de fazer a perguntar aos humoristas e não só quais os limites do humor ou ficar satisfeito com a resposta ou falta dela. Mudemos pois de assunto.

Groucho Marx iniciou a carreira, com 14 anos, em 1905, em espectáculos de vaudeville, sobretudo em números musicais.  Em breve três dos seus irmãos, Chico, Harpo e Zeppo, se lhe juntaram, formando os Marx Brothers, cuja primeira agente era, nem mais nem menos, a própria mãe, Minnie Marx. Quando Zeppo, o mais velho, decide alistar-se e combater na I Guerra Mundial, é substituído pelo irmão mais novo, Gummo. Zeppo não voltaria a juntar-se aos irmãos em palco, mas anos mais tarde ele e Gummo criariam uma agência de talentos que se tornaria uma das mais poderosas de Hollywood.

O quarteto foi-se tornando cada vez mais bem-sucedido, chegando à Broadway e atraindo as atenções dos grandes estúdios de Hollywood.

Estamos no final da década de vinte e os, agora prósperos, Marx vêem-se arruinados na terça-feira negra de Wall Street. O crash da bolsa, que arrastaria o país para a grande depressão, destrói as suas poupanças, 250 mil dólares, no caso de Groucho, de um dia para o outro.

Felizmente tinham assinado um contrato de 5 filmes com a Paramount. O primeiro filme seria uma adaptação do êxito da Broadway, The Cocoanuts e rodado em Nova Iorque. E a necessidade de fazer dinheiro era tanta que os dias eram ocupados a rodar o filme e as noites a actuar na peça. Animal Crackers, a nova peça dos Marx na Broadway, seria o próximo filme e um sucesso colossal, que levaria os irmãos a mudar-se para a Califórnia.

Terminado o ciclo na Paramount, os Marx mudam-se para a Warner Brothers. Chico, um notório jogador de cartas, costumava jogar com Irving Thalberg, o todo-poderoso produtor da Warner Brothers, que os convida a continuarem lá a sua carreira, apesar do relativo insucesso comercial de Duck Soup.

Nada define melhor Groucho Marx, a sua irreverência, independência e coragem intelectual que a descrição dos primeiros encontros com Irving Thalberg.

Thalberg tinha tanto de génio, como de controlador e autoritário. Se é, quase indiscutivelmente, considerado o melhor e maior produtor da história do cinema americano, apesar de ter morrido muito novo, também é famoso pelo modo como submetia as suas estrelas à sua vontade férrea. Isto numa altura em que a MGM se gabava de ter mais estrelas do que o firmamento.

A história ou lenda passa-se assim, segundo Groucho contou a Dic Cavett. Thalberg marca uma reunião com os irmãos às 10 horas e eles ficam sentados, à porta do gabinete dele até às 17. Groucho fumegava, quando, às 17, a secretária de Thalberg anunciou que este ia finalmente recebê-los.  Groucho diz-lhe que ele e os irmãos estarão de volta no dia seguinte, às 10, mas que se Thalberg não os receber até às 10.30, abandonam o Estúdio e o contrato. No dia seguinte, tão determinado a vergar os Marx à sua vontade como no dia anterior, Thalberg sai do seu gabinete precisamente às 10.30, ignorando os irmãos e indo falar com outros actores. Harpo decide ir buscar batatas à cafetaria do Estúdio. Groucho e os irmãos invadem o escritório vazio de Thalberg e trancam-se de modo a impedir que as três portas do enorme escritório possam ser abertas por fora. Como o escritório tem uma lareira, os irmãos acendem-na e despem-se até ficarem todos nus. Começam então a assar as batatas na lareira de Thalberg. Duas horas depois, Thalberg regressou ao gabinete. Quando finalmente conseguiu entrar deparou-se com os Marx, nus, a comerem batatas assadas.

E nunca mais se atrasou a recebê-los.  

O respeito conquistado nessa manhã teve resultados; A night at the Opera e a Day at the races tornam-se os maiores sucessos comerciais do grupo, e Groucho considera-os, com grande vantagem, os melhores filmes dos Marx.

As personas dos irmãos Marx são rapidamente evidentes e constantes ao longo dos filmes: Groucho é o “cérebro” das operações, sempre à procura de explorar a ingenuidade da fabulosa Margaret Dumont, que fazia sempre o papel de socialite alheada do que Groucho fazia. Chico era, de certo modo, o contraponto de Groucho, um dos seus straight men. Onde Groucho era subtil, Chico era directo, literal, os diálogos deles funcionavam também porque estavam em dois planos diferentes. Chico assumia o papel do malandro, geralmente de origem italiana e respectivo sotaque, sempre pronto a tomar parte num novo esquema.

Já Harpo é a melhor demonstração de como se pode tornar um defeito numa mais-valia cómica: incapaz de decorar deixas, desde os tempos do teatro, a solução é simples, faz sempre de mudo, usando as técnicas de pantomima, um cajado em espécie de corneta. Inevitável também era que em algum momento e local improvável Chico ia encontrar uma harpa para tocar. O seu registo era tão simétrico ao de Groucho, que acabava por lhe conceder o devido destaque e permitia que roubasse inúmeras cenas. A Gummo cabia o mais ingrato dos papéis: era o straight man absoluto, não tinha piadas para dizer, sendo o contraponto sóbrio à loucura generalizada. As suas storylines eram sempre um romance cheio de obstáculos, que os outros irmãos acabavam por demolir. Apelidado por alguns críticos como sendo a quarta roda de um triciclo, não demorou muito tempo a abandonar o grupo. Os Marx Brothers passavam a trio.

A já mencionada Margaret Dumont era um elemento fundamental dos filmes e a química entre ela e Groucho inegável. Ela era o alvo de todas as tropelias, vítima de um golpe do baú em loop, tão embeiçada como confundida por Groucho, de uma ingenuidade ilimitada, de que ele tirava proveito. A actuação dela era sem falhas, no sentido de que permanecia em aparente genuína surpresa em relação a tudo o que Groucho lhe fazia e acontecia. Groucho diria, anos mais tarde, que a sinceridade dela era real, Margaret Dumont não sabia o que lhe estava a acontecer, mas adorava actuar e toda a gente se estava a rir, portanto também ela era feliz. Até que ponto se trataria de mais uma blague de Groucho, nunca o saberemos verdadeiramente. O certo é que continuaram a actuar juntos, muitos anos depois de a glória dos filmes ter passado, muitas vezes recriando as cenas deles em programas de televisão.

Foi num desses programas que actuariam pela última vez, dois dias antes de Margaret falecer.

Os filmes dos Marx nunca rejeitaram a sua origem vaudevilliana. Eram normalmente compostos por quadros cómicos e musicais e nem sempre a sua estrutura narrativa, especialmente a partir da segunda fase na MGM, era mais do que um simples fio condutor. Garantidos estavam sempre números musicais e de dança e, claro está, o solo de harpa de Harpo.

O humor físico era primordial. Se no caso de Harpo o era absolutamente, também era fundamental em Groucho.

Tudo começava na caracterização da personagem. O bigode de Groucho estará em segundo lugar de importância na história da comédia, só perdendo para o do Vagabundo, de Charlie Chaplin, de quem era amigo e parceiro de ténis (Groucho, não o bigode). As sobrancelhas eram altamente expressivas e ele usava-as com uma precisão meticulosa, para com um simples arquear transformar em irónica ou sarcástica a frase que acabara de dizer. O próprio andar era distintivo, bem como hilariantes eram as suas coreografias em números de dança. Se é inegável que Groucho era um mestre da palavra humorística, não o é menos o seu dominio perfeito da pantomima.

Talvez o mais belo exemplo disso seja a famosa cena de Duck Soup, em que Groucho se encontra frente a um espelho, na verdade uma moldura com Harpo do outro lado, vestido e caracterizado como sendo o seu reflexo. O resultado é sublime. Marx Brothers mirror scene – Duck soup

Outro exemplo da combinação perfeita entre Groucho e Harpo, no mesmo filme, é o memorável running gag do side-car.

Apesar de todo o humor físico, das coreografias e das suas canções, Groucho destaca-se acima de tudo pela sua extraordinária capacidade de distribuir insultos e one-liners, escritos ou improvisados, uns hilariantes, outros que hoje seriam problemáticos sobretudo na relação com as mulheres:

Alguns exemplos:

Ela)”You’re  the man I’ve been dreaming of…

Groucho)“What do you eat before you go to bed?”

Ou

 Ela) “I’ve never been so insulted in my life!”

Groucho, olhando para o relógio)”Well, it’s early yet”.

E ainda

Ela) “He’s had a change of heart.”

Groucho) “A lot of good that´ll do to him, He still has the same face.”

Ou

Ele) “She’s the healthiest woman I’ve ever met”

Groucho) You look like you’ve never met a healthy woman before.”

E por fim,

Ela) Can you tell me the price of this bed

Groucho) 8000 dollars.

Ela) I can buy that bed for 25 in any establishment.

Groucho) Not with me in it.

 https://youtu.be/oyRBBCgkowI.

Não erraremos por muito se dissermos que o período de ouro dos Marx e especificamente de Groucho, no cinema, dura entre Animal Crackers e a Night at the Opera e A Day at the races. Durante a Segunda Guerra Mundial, Groucho faz o seu papel, entrando em inúmeros espectáculos feitos para as tropas e transmitidos pela rádio.

É a descoberta de um novo medium, que coincide com o final de um período marcado pela diminuição da qualidade dos filmes, que se acentuara após a morte de Irving Thalberg, o prodigioso produtor, que durante anos protegera os irmãos Marx nos estúdios da Warner Brothers. O desprezo e rancor do todo-poderoso Louis B. Meyer por Groucho, um rebelde indomável, era notório e recíproco. Reza a lenda que os Marx quiseram fazer um filme intitulado a Night in Casablanca e foram proibidos, pois o estúdio não queria ver um filme deles associado ao seu grande êxito dramático. Groucho respondeu que sendo assim a Warner Brothers devia passar a ser só Warner, os Marx Brothers eram Brothers  há mais tempo e a comparação prejudicava-os. Os Marx acabariam por fazer o filme, mas através do estúdio United Artists.

A guerra entre ambos reflectiu-se no menor investimento e na degradação do material que tinham para rodar, sobretudo nos guiões. Cada filme era uma variação, em pior, do anterior. Continuavam a existir momentos brilhantes, mas eram cada vez mais escassos e intervalados. A necessidade, porém, mandava: as constantes dívidas de jogo de Chico forçavam a continuidade do grupo.

A mudança de gostos do público faria o resto, com a progressiva diminuição da popularidade dos Marx.

Groucho continuaria a fazer filmes, a maior parte deles a solo e veículos para ascensão de novas estrelas, de que são exemplo Carmen Miranda e uma novíssima Marilyn Monroe, mas é primeiro na rádio e depois na televisão que a sua popularidade renasce, após alguns fracassos iniciais, como o da novela Blue Ribbon Town.

Convidado por Bob Hope a participar de um programa de rádio, Groucho começa por subverter de imediato o formato: em resposta à frase do guião em que Hope lhe perguntava se tinha estado no deserto, Groucho responde que não, que estava há mais de 40 minutos fechado no camarim, à espera de entrar, Hope retorque mandando-o entrar, o sonoplasta faz o som de alguém a andar e Groucho comenta: “já repararam que na rádio todas as pessoas andam com sapatos com solas de madeira?”

Hope deitou o guião fora e seguiram-se mais de 10 minutos de improviso total, para desespero e alívio dos censores, já que nem Groucho nem Hope usaram profanidades. O sucesso do programa é tão grande, que Groucho é imediatamente abordado pelo produtor John Guedel para se tornar o pivot de um quizz show chamado “You bet your life”. Sobre isso Groucho comentaria: “achei que era o fim da minha carreira, a vender frigoríficos na rádio”.

Pelo contrário, o programa é um sucesso, apesar de saltitar sucessivamente da ABC, para a CBS e depois NBC onde se fixa e é transformado num programa de televisão.

A capacidade de Groucho improvisar é lendária e viria a enformar o que se pede de um host de um quizz show daí para a frente. Groucho pegava na mais singela frase de um concorrente e criava daí um momento hilariante. Ao seu lado, Groucho encontrava em George Fenneman o straight man ideal para usar como contraponto. Fenneman, além de se tornar um amigo era, segundo Groucho, a Margaret Dumont masculina. O efeito foi de tal ordem que o programa recebe um prémio de melhor comédia, em vez de melhor concurso. Mas não só.

Durante 7 anos é o programa mais visto nos EUA.

E ainda hoje em dia a generalidade dos concursos tende a contratar comediantes para os apresentar.

Groucho vai alternando as gravações de “You bet your life” com a presença noutros programas, sejam eles talk shows ou programas de variedades de outros colegas, assim recuperando a popularidade.

É também por esta altura que Groucho encontra tempo para se dedicar à sua maior paixão, a escrita.

Há uma tese, a que voltaremos noutra crónica, de que os improvisadores dão os melhores escritores de comédia. E Groucho terá sido um dos melhores improvisadores de sempre. Publica vários livros e o maior orgulho da carreira dele, dito pelo próprio, é ter o seu volume de correspondência com figuras famosas, na Biblioteca do Congresso. Um enorme feito para um autodidacta, como ele.

O resultado de tudo isto é uma nova geração de fãs, bem como uma verdadeira legião de comediantes e não só que começa a declarar-se influenciada pelo legado de Groucho. A popularidade dos seus filmes regressa, e um já octagenário Groucho tem agora no seu círculo de amigos Eliott Gould e mais surpreendentemente Elton John a quem ele insiste em tratar por John Elton, ou Alice Cooper, com quem posa para a Rolling Stone. Groucho Marx é agora, definitivamente, um ícone cultural.

As homenagens sucedem-se, entre elas um Óscar honorário, mas a idade avançada e problemas de saúde vários vão progressivamente diminuindo a sua actividade.

O seu último espectáculo, em Carnegie Hall, esgotou, com milhares de pessoas à porta e à volta do quarteirão a tentarem entrar, sem sucesso. Groucho, debilitado por um AVC, entrou ao som de Beethoven, tocado ao piano, que se convertia no Hooray for Captain Spaulding. Lentamente tomou o centro do palco e foi aplaudido de pé por cinco minutos. Feliz, reparou que várias filas eram compostas por pessoas que tinham vindo vestidas a rigor, com o figurino dele nos filmes, o bigode a traço grosso, os óculos e o nariz, popularizados em tantos carnavais.

Quando a multidão sossegou, Groucho, de voz frágil, disse:

Well, I’m certainly grateful for this magnificant washout. Uh, turnout. And now, I’d like to say a few words:

E começou a cantar:
Hello, I must be going
I cannot stay
I came to say
I must be going
I’m glad I came
But just the same
I must be going, la-la!

 Nada como a lendária canção de Animal Crackers para se despedir do seu público e fechar esta crónica. Animal Crackers (1/9) Movie CLIP – Hello, I Must Be Going (1930) HD

PS: Groucho era famoso por não gostar de terminar as suas cartas, como Dick Cavett, o apresentador de talk shows, costuma recordar. Os post scriptum dele eram normalmente non sequitur em relação ao conteúdo da missiva. O meu reproduz apenas uma coisa que George Fenneman contou. Na sua última visita ao amigo, Fenneman ajudou-o a mudar-se da cadeira para a cama, já que Groucho estava incapaz de se locomover sozinho. Nos braços do amigo, que o carregava em peso pela sala, Groucho murmurou-lhe: “You were always a lousy dancer.” 

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