RITUAL – ESFERA – RABOS – UM POR CENTO – BOA NOVA
RITUAL
A verdade, em democracia, incluirá um ritual, um reality show, dos verdadeiros, claro. Governante que tenha o azar de ser criticado duas semanas seguidas irá à televisão vestido de roupa importada, mas sustentável. No primeiro dia, jurará que nada sabia. No segundo, dirá que não se lembrava de que sabia, e no terceiro dia será demitido e pedirá desculpa na televisão, recordando a todos que tudo foi uma honra e que está orgulhoso da sua verdade. Ao quarto dia, mas só se estritamente necessário, um governante mais alto, mais forte e mais gordo irá ao mesmo canal de televisão, de fato escuro, jurar que nada sabe.
ESFERA
Um filólogo casto garantiu em público que, no princípio do mundo, o homem e a mulher ideais eram uma esfera perfeita e isso era bom. Depois, um Deus castigou o homem e a mulher e fê-los em pedaços, dois pedaços, e desde então homem e mulher não sonham com outra coisa senão juntarem-se e serem esfera outra vez. Alguns casais começaram a pensar nisso, enquanto faziam amor, tornarem-se esfera, mas a maioria dos casais não pensava em esferas e era feliz na mesma.
RABOS
A exposição de rabos como forma de protestar contra os males do mundo alcançou, no início, a popularidade esperada. Os jovens entusiastas usavam a parte de trás do corpo para combater o capitalismo, salvar o planeta e melhorar a democracia participativa, este último ideal o mais evidente. A imprensa, naturalmente, fotografava e fazia zoom, comentava a força e a verdade dos corpos dos adolescentes, nossos filhos, nossos heróis. Eis senão quando a prática se multiplicou e cidadãos envelhecidos arriscaram usar a mesma parte do corpo, com o mesmo despojamento, mostrando os rabos nus para protestar contra a descida das pensões e o preço dos medicamentos. Rapidamente, talvez inesperadamente, a imprensa adotou um puritanismo e uma distância dos nossos avós mais egrégios, criticando sem piedade o corpo dos idosos insatisfeitos, argumentando que aquela forma de fazer democracia, sem roupa, devia limitar-se aos rabos das gerações jovens porque, já sabemos, os jovens são o futuro.
UM POR CENTO
A ideia de substituir o dinheiro pela felicidade não correu bem. Há pessoas felizes, pessoas infelizes, e outras, poucas, muito, muito felizes. São o Um Por Cento, os mais felizes dos felizes, não sabemos quem são nem onde vivem. Nós, os 99 por cento, estamos inquietos. Cansámo-nos de séries americanas, de passeios no parque. Não tarda vamos organizar-nos, os 99 por cento menos felizes, e iremos casa a casa, porta a porta, agarrar os Um Por Cento mais felizes pelo pescoço e ensinar-lhes uma lição. Não vale a pena esconderem-se, vamos descobri-los um por um, os Um Por Cento, nos seus palácios, nas suas ilhas virgens, nas suas barracas de zinco, nas suas reuniões de pais. Não vamos descansar.
BOA NOVA
A Boa Nova é um hospital na periferia, a Boa Nova é uma estrada no futuro. E quem não acreditar no futuro e quem não acreditar na Boa Nova, a esses não deixaremos ser pais, não deixaremos ser mães, não deixaremos ser filhos nem reis nem pastores, não deixaremos ser vacas, bois, burros, não deixaremos ser palha. Não deixaremos ser chão, não deixaremos ser gruta. De resto, o projeto paisagístico avança a todo o vapor e o nome do hospital será decidido muito em breve. A Boa Nova é o nome de um hospital.