Krampus_1900s_2

Os três deslizes de Gelsomina Guelgerógio, Infeliz mãe dos irmãos Caramassófe

1. Gelsomina Duelgerógio, do lugar de Vale de Égua, freguesia do Préstimo, deu à luz dez filhos em duas séries de cinco. Isto é: Gelsomina Duelgerógio pariu cinco gémeos em Outubro de 1973 e outros tantos em Janeiro do ano seguinte.
Pode parecer estranho que uma mulher conceba assim gémeos em tão grandes quantidades num tão curto espaço de tempo. Pode parecer e, se calhar, é mesmo.
Mas tudo tem explicação. Mesmo em Vale de Égua, freguesia do Préstimo, em 1973.
Gelsomina Duelgerógio era a esposa amantíssima de Abeliovas Falascina, ajudante de contabilista num humilde escritório em Urgueiro, na freguesia vizinha de Macieira de Alcoba, gerido por José Nercégio Irasconcelis, um senhor idoso de hábitos estranhos, regressado de um longo período como emigrado em Barquisimeto, Estado de Lara, Venezuela. Mas isso não quer dizer que, como qualquer rapariga da sua idade, não pudesse ter os seus deslizes. E teve-os. Em número de três.
Esses deslizes marcariam a sua vida de forma indelével.
Os primeiros dois deslizes seriam, também eles, gémeos. Numa húmida manhã de domingo, excitado pela grata visão dos volumosos glutea maximae de Gelsomina Duelderógio que se debruçava sobre o lavatório do acanhado quarto de banho para as suas abluções, Abeliovas Falascina a eles se insinuou de forma tão exuberante que o casal, unido em amplexo, se desequilibrou irremediavelmente, caindo sobre a sentina. Abeliovas Falascina sentiu o braço esquerdo mergulhar numa mistura de água tépida com dejectos, amaldiçoando de imediato o péssimo hábito de nunca puxar o cordão do autoclismo. Gelsomina Duelderógio sentiu mais coisas: sentiu o sacro-ilíaco a estilhaçar-se, o ísquio direito a fender-se e o colo do útero a ser invadido pela súbita e abundante secreção seminal de Abeliovas Falascina, amaldiçoando de imediato a certeza de se encontrar apenas a dois dias da ovulação.
O azar, num único golpe, condenava-a à espasticidade e à maternidade.
A maternidade não é, por si só, razão de desesperos. No entanto, no caso específico do casal em questão, cuja contabilidade mensal balançava periclitantemente entre os míseros ordenados de ajudante de contabilista de Abeliovas Falascina e os parcos lucros que Gelsomina Duelderógio retirava da venda de pastéis de massa tenra e rissóis de galinha a um cliente monopolista – Café de São Geraldo Magela, Refeições Rápidas e Caseiras – é compreensível o desalento que invadiu o seu lar, até então tranquilo, quando por entre as dezenas de exames a que Gelsomina Duelderógio foi submetida no Hospital do Conde Espiritualíssimo Josuão David, em Castrovães, freguesia da Trofa, lhe foi diagnosticada, entre numerosas mazelas, uma gravidez inequívoca de cinco gémeos monozigóticos.
Abeliovas Falascina caiu num estado quase estuporoso.
Amarrada pelo Destino à cama do hospital, Gelsomina Duelderógio resignou-se a convalescer e engordar.
E assim se passaram três meses.
No final desses três meses, Gelsomina Duelderógio teve novo deslize. Tão marcante como os anteriores.
José Nercégio Irasconcelis era um homenzinho de hábitos estranhos, mas não totalmente isento de qualidades. De entre elas, a de dedicar a Ambeliovas Falascina uma ternura com algo de paternal. O estupor do seu ajudante de escritório e o desvario que, de repente, tomou de assalto as contabilidades sem história de alguns clientes mais antigos, preocupou-o ao ponto de perder o sono. Ao final da oitava noite insone, José Nercégio Irasconcelis evidenciava todos os sintomas do desespero. Os vincos das olheiras tinham ultrapassado as fronteiras dos aros de massa grossa dos óculos, o peso das rugas da testa empurrara-lhe as sobrancelhas desacertadas para debaixo das arcadas supraciliares, e o descuido pela sua própria pessoa espalhara-lhe pela face uma barba rala e mal semeada.
Foi com este ar abandonado que se apresentou, numa tarde clara que anunciava Primavera, em Crastrovães, freguesia da Trofa, na Enfermaria n.º 6 do Hospital do Conde Espiritualíssimo Josuão David, cama 23, abraçado a um ramo alvíssimo de sessenta e oito gardénias por entre as quais brilhavam as gotas de sangue de duas rosas vermelhas.
Gelsomina Duelderógio dormia o sono profundo de cinco miligramas de Rohypnol.
A figura deformada e tombada sobre a almofada de Gelsomina Duelderógio emocionou José Nercégio Irasconcelis até aos alicerces da sua condição humana.
Há quem sugira que a imagem da sua falecida esposa, Ressurreição Suetónia, morta em condições mal esclarecidas numa rixa de vizinhos em Barquisimeto, Estado de Lara, Venezuela, se colou ao quadro sofredor de Gelsomina Duelderógio que atentamente observava, escravizando-lhe os comportamentos de aí em diante.
Acabada de sair da Unidade de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais, a menina Jenuana Valmique, instalada na cama 22, foi testemunha privilegiada dos acontecimentos dessa tarde. Sofrendo de uma forma rara de acrocefalosindactilia, a menina Jenuana Valmique só dominava 3% do aparelho auditivo e era incapaz de pronunciar algo mais do que monossílabos incongruentes. Cega do olho esquerdo, aquilo que o seu olho direito viu na Enfermaria n.º 6 do Hospital do Conde Espiritualíssimo Josuão David, a sua memória guardou em silêncio até à hora da sua morte, dois dias depois, pelas 14h25, segundo o atestado de óbito passado pelo Dr. Vulfas Dimantas.
De joelhos, à cabeceira de Gelsomina Duelerógio, José Nercégio Irasconcelis chorou copiosamente. Agarrado ao alvo ramo de gardénias e às duas rosas vermelhas, soluçou alto, fungou com força e murmurou uma Salve Rainha, Mãe Misericordiosa, Vida, Doçura, Esperança Nossa, Salve! Depois, pousando o ramo de gardénias com duas rosas vermelhas na arrastadeira em inox, começou a desapertar os botões do casaco e do colete.
José Nercégio Irasconcelis foi sempre um homem metódico. Talvez mesmo exageradamente metódico.
Dobrou com esmero o casaco e o colete e depositou-os aos pés da cama de Gelsomina Duelderógio. Em seguida, procedeu ao retirar das calças, camisa e suspensórios. Esticou as calças pelo vinco e colocou-as sobre o casaco, estendendo a camisa por cima. Finalmente, despiu as cuecas e, totalmente nu, com excepção das meias puxadas até meio da perna pelas ligas presas aos joelhos, enfiou-se por debaixo dos lençóis da cama 23.
Embalada pelos efeitos do Rohypnol e com os movimentos presos pela cinta pélvica, Gelsomina Duelderógio foi parceira apática dos arranques de José Nercégio Irasconcelis.
Duas horas mais tarde, alertada pela inquietação da menina Jenuana Valmique, a enfermeira-graduada Decreci Anobom encontrou Gelsomina Duelderógio e José Nercégio Irasconcelis absolutamente inertes nos braços um do outro.
José Nercégio Irasconcelis sofrera um acidente vascular cerebral de tipo isquémico.
Gelsomina Duelderógio estava, de novo, irremediavelmente grávida.

2. Ambeliovas Falascina só saiu do seu estado estuporoso no dia 15 de Outubro de 1973, ou seja, o preciso dia em que Gelsomina Duelderógio deu à luz cinco rapazes rechonchudos e esfomeados.
Perturbado pela visão dos filhos e com a promessa de outro parto para daí a três meses, Ambeliovas Falascina beijou longamente a boca de D. Maria Florecena Gentil Casa de Dio, uma provecta senhora de 98 anos de idade, parteira e desmanchadeira famosa do Vale do Grou à Maçoida e do Gravanço ao Regote. D. Maria Florecena Gentil Casa de Dio possuía, a despeito da sua avançada duração, uma força de braços considerável e umas mãos enormes prolongadas em dedos largos, ossudos e achatados. A bofetada que aplicou na face de Ambeliovas Falascina foi homérica. O som ressoou por todo o acanhado da casa minúscula, espalhou-se pelo Vale da Égua e, até, pela freguesia do Préstimo, só se diluindo para lá de Balazaima do Chão. Aturdido, Ambeliovas Falascina cambaleou para fora de casa e desceu a rua aos tropeções. Uma mancha púrpura de aspecto horrendo tomara-lhe conta do lado direito da cara, ocupara-lhe a orelha e metade do pescoço. Quando entrou na Taberna do Coxo Propício, Ambeliovas Falascina não fazia ainda ideia de que ficaria com a mão de D. Maria Florecena Gentil Casa de Dio desenhada no perfil até ao último dos seus dias.
É, aliás, importante referir que, em condições normais, Ambeliovas Falascina nunca teria posto os pés na Taberna do Coxo Propício. O consumo de bebidas alcoólicas ia contra todas as suas convicções religiosas. Membro por correspondência da seita Al-Anon, advogava devotadamente A Terapia dos Doze Passos e era um dos Filhos Contra a Seita dos Cativos do Álcool. Quando o viu entrar, de olhar angustiado, esfregando a cara onde uma mancha cor-de-vinho parecia crescer de forma desmesurada, o Coxo Propício ficou de pé atrás, receoso de um excesso de fé que pudesse fazer perigar o habitual sossego do estabelecimento.
Mas as preocupações tinham feito voar para longe o voluntarismo antialcoólico de Ambeliovas Falascina como uma rajada de vento norte sopra em direcção ao infinito uma pena de andorinha caída num beiral. Homem de trabalho monótono e escassa leitura, Ambeliovas Falascina dera-se, de súbito, conta de uma tarefa gigantesca que exigia demais da sua reduzida imaginação: a de dar nome a cada um os cinco filhos acabados de vir ao Mundo e a cada um dos que prometiam ver a luz dentro de noventa dias. Tamanha empreitada derrotava-o antes mesmo de a ela se atirar de alma e coração. O seu feitio timorato tornava-o desistente. Parecia um Hércules doente que descobrisse ser alérgico a suínos no momento de se lançar na captura do javali de Erimanto.
Ambeliovas Falascina sentou-se num banco de pau, cotovelos fixados no tampo de pedra da mesa curta. Não sendo um homem de sentimentos muito profundos, não deixara de ficar ligeiramente chocado ao receber a notícia de que os seus cinco gémeos se tinham multiplicado. Não sendo um grande conhecedor do organismo feminino, e ainda menos da sua mecânica conceptiva, instalara-se nele a dúvida sobre tais processos, ainda por cima quando era capaz de jurar a si mesmo que, após aquela desastrada e húmida manhã de domingo, se tinha mantido cautelosamente longe das formas calipígias de Gelsomina Duelderógio.
Movido mais pela inconsciência do que pela vontade, pediu um copo de bagaço. Perante o espanto incontido do Coxo Propício engoliu o seu conteúdo de um trago e reclamou outro. Os efeitos do álcool no seu cérebro entumescido foram devastadores. O silencioso e pacato Ambeliovas Falascina, ajudante de contabilista num humilde escritório em Urgueiro, na freguesia de Macieira de Alcoba, deu lugar a um grotesco e eloquente Ambeliovas Falascina que teria, certamente, provocado no seu velho progenitor, o devoto Manuelisvado Falascina, capador de porcos no lugar de Oronhe, freguesia de Espinhel, uma fatal obstrução irrigatória do miocárdio. Previdente, a sinistra Ceifeira Divina poupara o beato Manuelisvado Falascina à degradação do seu filho único e benquisto. Catorze dias antes de pisar a porta da Taberna do Coxo Propício como quem atravessa o portão branco da perdição, Ambeliovas Falascina assistira à queda clemente da gadanha da morte sobre a cerviz de Manuelisvado Falascina, pela mão inábil de um condutor descuidado na Curva da Laceira da estrada de Fujacos.
Órfão de pai e pejado de filhos, Ambeliovas Falascina parecia decidido a beber este Mundo e o outro. À décima terceira rodada de bagaços, já se encontrava de tal forma influenciado pelo vapores do álcool que o Coxo Propício não teve outro remédio senão ferrar-lhe um potente par de lapadas, pondo um ponto final ao seu discurso incoerente, proferido em gritos lancinantes à mistura com obscenidades capazes de fazer corar um carroceiro, amaldiçoando a má sorte que o fazia levantar a mão contra tão prometedor cliente.
Dorido e mal-tratado, sangrando abundantemente do nariz e de um lanho que se lhe abrira no sobrolho ao contacto com o grosso anel de rubi vermelhejante de bacharelado em Direito, que o Coxo Propício obtivera de um freguês endividado por troca de seis garrafas de palheto, Ambeliovas Falascina recebeu um estímulo raro vindo dos interstícios do seu cérebro confuso. Uma ténue ideia parecia germinar para resolução definitiva dos seus problemas onomásticos.

3. Nesse ano de 1973, era sazonal o aparecimento em diversos lugares da freguesia do Préstimo, bem como nas freguesias de Macinhata, Lamas do Vouga, Óis da Ribeira, Barrô e por aí em diante, de uma pequena camioneta de marca Dodge na qual o professor Cinobelino Gutemberg fazia transportar uma extraordinária Biblioteca Itinerante composta por algumas centenas de volumes entre os quais se incluíam, por entre as mil e uma aventuras de Rocambole, Arséne Lupin, Pimpinela Escarlate e Genciana Púrpura, os mais clássicos dos clássicos, de Cervantes a Tolstoi e de Balzac a Brontë.
Ambeliovas Falascina limpou a cara com o lenço e avançou decidido ao encontro do professor Cinobelino Gutemberg que, fumando o seu cachimbo, estava sentado junto à porta traseira da Dodge, procurando resolver um intrincado exercício de palavras cruzadas. Não foi fácil explicar-lhe correctamente o que pretendia. Em primeiro lugar, porque não sabia ao certo desenvolver a ideia que tinha tido; em segundo lugar, porque mantinha com firmeza o lenço sobre o nariz e sobre a boca de maneira a não sujar a camisa com o fluxo sanguíneo proveniente de diversos pontos da sua cara vandalizada. Além disso, o professor Cinobelino Gutemberg acusava um adiantadíssimo estado de surdez provocada pela convivência quotidiana de mais de 50 anos com toda a espécie de cães vadios que recolhia pelas ruas sem qualquer espécie de critério que não fosse a sonoridade dos ganidos ou a intensidade dos uivos. Desta forma, o resultado do monólogo não foi lisonjeiro. A cada som roufenho soltado por Ambeliovas Falascina entre dentes e lenço e pingos de sangue, o professor Cinobelino Gutemberg acenava afirmativamente com a cabeça ao mesmo tempo que se sentia invadido por uma irritação latente à medida que tal arrazoado o arrastava em definitivo para longe da concentração exigida na resolução do seu problema cruzadístico.
Um espirro violento de Ambeliovas Falascina salpicou o professor Cinobelino Gutemberg de saliva e sangue e isso foi demais para a sua depauperada paciência. Entrou na Dodge e olhou em redor, escolhendo com atenção por entre as prateleiras. Sopesou a terceira edição de o «Adolescente Agrilhoado», Ulisseia, 1967, e os dois volumes encadernados num só, em cartolina couché e lombada de couro, de «Os Irmãos Karamazov», Círculo de Leitores, 1972, decidindo-se sem dificuldade por este último. Com um gesto brusco, ergueu o braço acima da cabeça e lançou a obra com presteza na direcção do surpreendido Ambeliovas Falascina. Com as mãos ocupadas na tarefa de segurar o lenço, Ambeliovas Falascina não teve reacção, sendo atingido em cheio no zigomático e projectado para trás, desequilibrando-se e tombando de costas sobre um lulu da Pomerânia de pêlo curto, a mais recente aquisição do geralmente bondoso professor Cinobelino Gutemberg, que se coçava freneticamente, na tentativa baldada de se libertar de hordas de parasitas. O canídeo ripostou, fincando as mandíbulas no gastrocnémio direito de Ambeliovas Falascina que reagiu da pior forma, procurando agarrá-lo pelo pescoço, o que lhe valeu uma sucessão de dentadas nas mãos que lhe causaram pequeninas fracturas nos metacárpicos e nas falanges. Foi numa figura absolutamente lamentável e mergulhado num estado depressivo provocador de contínuos pensamentos suicidas que Ambeliovas Falascina regressou a casa. Gelsomina Duelderógio dormia, como era seu hábito recente, o sono escuro do Rohypnol; os cinco gémeos gritavam de fome a plenos pulmões. Alheio a tudo, Ambeliovas Falascina deixou-se cair na cadeira da cozinha e abriu os dois volumes encadernados num só de «Os Irmãos Karamazov» sobre a banca onde jazia um frango meio depenado.

4. Avidamente começou a folhear páginas atrás de páginas como se fosse movido por um desespero. Alguns minutos depois, levantou-se e rebuscou as gavetas à procura de qualquer coisa que escrevesse. Encontrou um coto roído de lápis e remexeu os bolsos numa ansiedade de papel. Reduzido a um vigésimo de lotaria, encolheu os ombros e rasgou-o em cinco pedaços. Em cada um deles escreveu o nome de um dos filhos e, com um alfinete-de-ama, espetou cadas um dos cinco bocados de papel na roupinha da criança correspondente, por altura do peito, sobre o lado esquerdo, que é o lado do coração. As mãos tremiam-lhe e, por mais de uma vez, sentiu que o alfinete perfurava não apenas a lã, mas também a tenra carne dos recém-nascidos. Os berros cada vez mais lancinantes dos gémeos não o distraíram da sua missão. Um quarto de hora mais tarde, Ambeliovas Falascina contemplou com orgulho a sua obra: cinco meninos baptizados com os nomes que ele copiara afanosamente de «Os Irmãos Karamazov».
Ainda por demais influenciado pelos acontecimentos do dia, pelos altos e baixos emocionais a que fora sujeito e, principalmente, pelos copos de bagaço sofregamente bebidos na Taberna do Coxo Propício, Ambeliovas Falascina ficara com a sensação de que os nomes se recusavam ao baptismo. Letras, sílabas e palavras inteiras saltavam para fora do volume, ganhando vida própria, misturando-se e não se deixando ler correctamente. A empreitada exigira-lhe o que ainda sobrava da sua capacidade de concentração e Ambeliovas Falascina, generoso, gastara-a por completo na persecução do seu dever de pai. Um ligeiro alívio tomara conta dele, à medida que rabiscava penosamente os pedaços de vigésimo de lotaria com o nome dos seus filhos. Do lado esquerdo da enxerga, Aliocheca Caramassófe estava roxo de tanto gritar; à sua esquerda Pétrovixe Pólenove engasgava-se de soluços; ao centro, Grigóri Vassiliévixe era de todos o mais calmo, talvez por ter nascido com uma paralisia cerebral; do lado direito, Fiódore Pavlóvixe agarrava-se com fúria à parca penugem craniana de João Hospitaleiro, um santo que Ambeliovas Falascina encontrara no Capítulo IV e que tomara por um sinal de Deus.
Ao vê-los assim apelidados, Ambeliovas Falascina foi, de novo, assaltado pelo estupor. De olhar vítreo, dirigiu-se ao quarto e deitou-se na cama. A seu lado, inerte, arfante, Gelsomina Duelderógio estava estendida de costas com a proeminente barriga erguida para o tecto e um sorriso beato nos lábios secos e na boca entreaberta. Naquele momento, nada seria capaz de a acordar daquele exagero de benzodiazepinas. Nem os gritos ensurdecedores das crianças com fome, nem as pancadas súbitas na porta da entrada, nem o gesto meio frouxo de Ambeliovas Falascina tirando da gaveta da mesa de cabeceira o revólver Lefaucheux de 6,35 mm que herdara de seu pai, Manuelisvado Falascina, nem a forma quase canina como o marido encostara à sua cabeça a cabeça dele, ensanguentada por fora e confusa por dentro.
As pancadas na porta sucediam-se. Impulsionado pela excitação, Clauco Dubingo, proprietário da Papelaria Dubingo – Cadernos, Blocos e Equipamentos de Escritório, no lugar vizinho de Cabeço do Cão, fornecedor habitual do contabilista José Nercégio Irasconcelis e do seu ajudante, correra a casa de Ambeliovas Falascina para lhe anunciar, aguilhoado pelo esporão da promessa de fortuna, que o vigésimo que haviam comprado a meias, ao cauteleiro Gracinésio, do lugar da Guistolinha, freguesia de Agadão, saíra premiado.
Era tarde.
Clauco Dubingo ouviu o choro convulsivo dos recém-cognominados irmãos Caramassófe e, por detrás desse berrar uníssono, o som de um tiro.
«De tudo, o pior mal é ter nascido», pensara, segundos antes, Ambeliovas Falascina, ajudante de contabilista no lugar de Urgeiro, num repente de inusitada lucidez. A bala entrou-lhe pela zona do lóbulo temporal, atravessou o tálamo, desfez-lhe o esfenóide e saiu do outro lado através do orifício do canal auditivo externo. Mas a sua eversiva viagem ainda não acabara. Não medindo as consequências, Ambeliovas Falascina aninhara-se no corpo passivo de Gelsomina Duelderógio, talvez num instinto final de protecção. E, desta forma, ao sair através da sua cavidade auditiva, a bala seguiu o caminho da córnea direita de Gelsomina Duelderógio, perdendo força na perfuração do lóbulo frontal e alojando-se, finalmente, na hipófise da malograda senhora.
Gelsomina Duelderógio, do lugar de Vale de Égua, freguesia do Préstimo, ficou condenada a um Estado Vegetativo Persistente, segundo o diagnóstico do Dr. Vulfas Dimantas, do Hospital do Conde Espiritualíssimo Josuão David, situado em Castrovães, freguesia da Trofa, que se baseou em estudos publicados no ano anterior pelos Professores Bryan Jennett e Fred Plum, inventores do termo.
Apesar disso, voltaria a ser mãe. Três meses mais tarde daria à luz cinco meninas, gémeas dizigóticas, todas de nome Maria. Simplesmente Maria.

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