Fotografia de Marta Lança

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um vulcão, pareceu-me. Mas era «uma menina com vestido gigante.» A colega insistia: «queres vir brincar a minha casa?» – é uma coisa que elas dizem umas às outras quando a vou buscar, como se não tivessem passado juntas o dia inteiro, e dão abraços como se não se vissem há meses. Há muito afecto naquela escola.

Sigo ao volante na estrada, cabelo preso com molas do chinês, rádio Radar até Palmela e depois a frequência que pegar. Abasteço na estação de Alcácer, a gasolina estupidamente cara faz-me parar a mangueira antes de atestar, já passa os 60 euros. Vai mesmo continuar assim? Estamos em guerra iminente, a Alemanha congelou a certificação do gasoduto Nord Stream 2 e Moscovo retaliou anunciando o aumento «exponencial» do preço do gás. A guerra pelos recursos nunca termina, mas às vezes o custo afeta a vidinha. Bom, a uns muito mais do que outros. Muitos vão morrer.

O mais acertado, bem sei, seria não continuar a deslizar no alcatrão. Avançar, no que me cabe, para a descarbonização. Da próxima viajo de autocarro, avio os víveres na vila e fico no monte até abalar. 

A minha mãe diz que a carta de condução é uma das maiores liberdades femininas. Como a compreendo. Tirei-a logo aos 18 anos, e é certo que, em várias ocasiões, foi guia de marcha, via de emergência, asas para voar como o Jardel sobre os centrais. Permitiu-me espairecer de amuos, fazer passeios contemplativos e encontros secretos, perder-me e descobrir novas coisas, tratar de assuntos, fazer produção, ter vários empregos, deixar em casa amigos com os copos, levar família ao hospital, socorrer alguém em apuros. Deu para desaparecer do mapa (cada vez mais difícil, no rasto vigilante que voluntariamente deixamos), ir a praias remotas com pousio nas falésias, escolher estradas secundárias, correr parte da Europa, visitar os que interessam, apanhar inúmeras multas e desfalcar a carteira. A verdade é que, sem carro, não poderia ter comprado uma casa alentejana em ruínas, acompanhar direta e indiretamente as obras, ir à vila regularmente, ficar temporadas sozinha ou com criança, e o tanto mais que já cabe na viagem Lisboa-Ourique desde 2011.

 

2. Chego a Castro Verde antes da hora marcada para a inspeção do carro. Passo na Worten a comprar um disco de memória, teclado, rato, colunas e auscultadores para cabeça-kid e para cabeça-adulta. A empregada brasileira é simpática e compreensiva quando digo que não trago cartão multibanco e peço-lhe para gerar as referências e fazer a transferência online. A empregada portuguesa vem logo expor a sua superioridade à colega brasileira, como se esta fosse tontinha, e desculpar o que ela impecavelmente me explicara com um «é o seu jeito de dizer». Farejo de longe a disputa dos pequenos poderes e o preconceito provinciano. Para a acalmar, asseguro pagamento em duas horas e virei com o comprovativo levantar o material.

Sento-me no restaurante Bombeiro que costumava frequentar quando a filha andava na creche e eu passava longas horas na vila, sendo o momento alto do dia o almoço table for one nesta casa de pasto para trabalhadores, digamos, braçais. Sento-me numa mesa ligeiramente afastada do aglomerado de homens, peço coelho à caçador e uma taça de tinto. Quando o prato assenta na mesa, fecho o portátil com a revisão de um artigo. Ao dizimar o coelho, a minha mastigação funde-se no mastigar coletivo. Todos juntos no Bombeiro a alimentar as carnes enquanto, na Praça da Alegria, bailarinas sorridentes de maiôs brilhantes prendem um ou outro olhar varonil, e o meu também. Como não se ouve a televisão, o seu balançado segue ao som dos nossos molares e conversas indistintas.

3. Ontem vi o filme Filha Perdida, realizado por Maggie Gyllenhaal, argumento a partir da Elena Ferrante. É fácil identificar-me com a mulher de meia-idade que vai sozinha para uma ilha escrever. É observadora e imprevisível, não se retrai com a sua própria malícia. Um retrato que aproprio para mim. Atraem-me pessoas bem-humoradas, sem snobismo, permeáveis às demandas de cada momento, de vibrantes entusiasmos, não capturadas pela rigidez. Capazes, simultaneamente, de domar a vida delas e dos outros como leoas. Difícil equilíbrio. Por outro lado, encontro-me nos antípodas da mulher deste filme, no que toca ao seu desprendimento materno. Ela desaparece por três anos da vida das filhas de cinco e sete anos. Nunca seria capaz disso. Atualmente desejo acima de tudo acompanhar o crescimento da minha filha. Sofro com os dias que faltam para que regresse da semana do pai. É o mais justo para todos, e só me resta habituar-me. Porém, não condeno moralmente a personagem da Ferrante. O sufoco do lar, não conseguir trabalhar, ser nova demais para gerir a vida adulta que lhe cai em cima, seguir atrás do desejo e do amor. Não a condeno. E sabemos bem, se ela fosse homem tais ações não seriam suficientemente desconcertantes como assunto de filme ou livro. O meu pai foi muito presente, mas também se ausentava longos períodos por trabalho, e ninguém o censurava, sequer comentava. Era normal os pais ausentarem-se meses, anos até. O mundo está cheio de pais desligados das mesquinhices domésticas e dos problemas das crianças. Deborah Levy escreve algo como: o pai faz o que lhe compete fazer no mundo, e é normal, a mãe faz o que lhe compete fazer no mundo e sentimos que nos abandona.

 

4. Pergunto ao dono do restaurante se conhece algum pedreiro. Fica de me dar o contacto. Pago e vou-me embora tratar da inspeção da viatura. Aviso de imediato o técnico que o retrovisor esquerdo está estilhaçado, espero a peça da Toyota, mostro e-mail a comprovar. Assinalou apenas na carta verde da inspeção que o retrovisor esquerdo precisa de ser arranjado. «O que conta é ter o espelho no momento da vistoria, mas o mais importante é os clientes ficarem satisfeitos». Lembra-me ainda que devo mudar o óleo e os filtros de 15 mil em 15 mil quilómetros.

Isso é muito alcatrão para percorrer, penso. Ai a descarbonização…

Pego no material da Worten já pago, passo no Intermarché. Nem chamam a atenção os vários clientes de turbante, uma vez que as minas e as culturas intensivas trouxeram ao Alentejo o cosmopolitismo do sudoeste asiático e retomaram a cíclica exploração laboral.

Enquanto isso, 96 incidentes de disparos de separatistas pró-russos no Leste da Ucrânia.

Sigo um troço da Nacional com a rádio Castrense a passar uma versão remix do «Enola Gay». Viro na placa que diz «Acesso Local», que me retira do alcatrão para sete minutos de terra batida até ao meu amado refúgio. Era neste cruzamento que a filha anunciava «a estada dos buacos», e queria sentar-se ao meu colo para conduzir e ver melhor os porcos pretos. Lembro com carinho o quotidiano neorrural, foi há pouco tempo mas entretanto a vida mudou significtivamente. Era feliz, mas sentia-me isolada e ansiosa com tantas responsabilidades. Conjugar maternidade dedicada com trazer dinheiro para a família, tentar não me desviar dos trabalhos que gosto, gerir uma casa de campo, as suas obras, o bem-estar dos meus. Apesar do espaço aberto e belo, eu não tinha espaço algum para neuras ou questões pessoais.

«Enola Gay» em alto volume, porcos pretos dormem, ovelhas ruminam, sobreiros e azinheiras não se mexem, um cão esfalfa-se a correr ao longo da cerca ladrando à passagem do carro. É um clássico da vida canina, deve haver explicações para esta manifestação de interesses, afinal eles são os maiores aliados da propriedade privada. Pequenos charcos de água brilham, apesar de nos encontrarmos em seca extrema, disse um professor na rádio antes da canção. Estamos em fevereiro e já a seca começa a atormentar os verões felizes. Contente, faço um vídeo-selfie pela estrada, versão remix do «Enola Gay» que, ironicamente, é o nome do primeiro avião a lançar uma bomba atómica. E chego ao my little paradise, onde ainda existem aves estepárias e biodiversidade suficiente para me entreter, quem sabe na reforma aprender os nomes das plantas, das estrelas, e um pouco de agricultura. Quer dizer, parece que vão encher isto tudo de painéis solares e cabos de alta tensão, e as aves, as árvores, os insetos e todo o ecossistema vão à vida, isto é, morrem, e o meu paraíso será apenas um deserto. Deserto a produzir energia? Afasto a visão da beleza condenada e, por enquanto, sigo a paisagem como uma partitura que conheço de cor, cada curva, cada árvore, cada floração mutante, apesar da irrealista leitura canónica das estações do ano.

5. Chego a casa. Abro portas e portadas. Cheira a podre, faltou a eletricidade e o frigorífico está quente, a comida descongelou. Não dá para descrever o cheiro dos líquidos das carnes, tamboril e ervilhas misturados, blagggh. Ponho a máscara cirúrgica, atiro a comida pela janela para depois apanhar num saco a que se aproveite para dar aos porcos do vizinho. Retiro aquela água nojenta, limpo tudo, o frigorífico fica pronto para acolher novos frescos. Esfrego o chão, tudo ok. Aparece o vizinho que trabalha com animais, falamos sobre a falta de chuva e sobre o impacto da falta de chuva. A carência de cereal que aumenta exponencialmente o preço da ração de animal, já nem em Espanha, mais o transporte de mercadorias. E os interesses da guerra, os russos e as sanções, vai ou não haver guerra. Já está a morrer gente, parece que há pessoas em bunkers.

«Vá passando, Rui, tenho minis no frigorífico.»

Ligo o quadro da eletricidade e começo a transferir os ficheiros de um computador para um disco, vou limpá-lo todo da minha existência para o oferecer a uma associação de trabalhadores rurais migrantes, reforçando a autonomia perante angariadores que os vão extorquindo e lhes vão dificultando a regularização. De repente, não encontro a mochila verde com o computador atual onde está todo o trabalho e vida que consegui recuperar do último roubado. Foda-se! Perdi tudo de novo, não é possível. Regressa por segundos o trauma de setembro, quando alguém entrou em nossa casa, abrindo a porta com uma simples radiografia e levou o meu computador, discos externos, pens e todos os gadgets vendáveis online. Perdi anos de trabalho, de memórias digitais e espectros de momentos, escritos, imagens e sons, que só eu sei. Buraco negro, nó no peito. Só de pôr isto em palavras dá-me tonturas. A mesma tragédia não pode acontecer duas vezes, tem de haver uma regra para estas coisas serem humanamente irredutíveis. Terá sido quando fui ao Intermarché? Terei deixado o carro aberto? No Alentejo não se rouba, penso para mim, deixo sempre tudo aberto, nunca me desiludi. Ainda no outro dia uma desconhecida levou-me duas torradeiras para arranjar e quando fui buscá-las ficou ofendida por eu querer pagar a reparação. De súbito, tenho uma epifania. Claro, ficou no restaurante, estava a corrigir o artigo antes de chegar o coelho estufado. Ligo para lá, atende a senhora, sempre atrás dos tachos nunca lhe vi a cara por inteiro. «Sim, sim, a sua mala, fique descansada, fechamos às 16h e reabrimos às 18h30 para os jantares.» «Isso é que é trabalhar», respondo. «Ufa, que alívio, ia perdendo todo o meu trabalho.» Sendo que creio que ela não entendeu a equiparação, na distância gigante que separa os nossos ganha-pães. O que é que escrever no computador tem a ver com a labuta non stop em que a senhora vive?

Vou ler para o jardim à beira do poço, tentar recompor-me do susto e fazer tempo. Pego num livro de BD que o meu irmão me ofereceu, Gente Remota, de Francisco Sousa Lobo, editado pela Chili com Carne. Dos traumas de guerra e do que se pode ou não contar à história deste «país sem problemas de consciência, com uma memória selectiva, ao mesmo tempo sincera e senil». Olho para as oliveiras altivas, dou uns toques nos pés das videiras convidando-as a crescer em direção aos arames e ao céu. Lancho tostas com queijo curdo, deve ter sido a Inês a levá-lo para o meu aniversário. Relembro os amigos todos em Monsanto na minha festa de anos de há uns dias, mais concretamente 4 dias antes da guerra, sedentos de conviver e de desconfinar, todos com falta de jeito passados pela pandemia entorpecidos e com medo. Atravessa-me uma onda de ternura ao rever pessoas de quem gosto tanto entre árvores, com copos de papel na mão, a ouvir música e a queixarem-se dos COVID mais próximos, a avançarem finalmente para outros temas, crianças a pedir para segurar balões, eu a fumar cigarros, nervosa com tanta gente à volta. É sempre perturbador sermos o centro das atenções numa festa de anos, mas acho que é um motivo igualitário para celebrar, todos fazemos anos, todos envelhecemos. Adoro reunir pessoas por esse e outros motivos, mas depois fujo espiritualmente do momento, fico a pairar a vê-las sem estar efetivamente lá.

 

6. Mac, cabos enrolados e teclado ensacado, tudo bem recostado no banco de trás do carro. Inverto a estrada dos buracos e sigo para Beja. Pelo caminho enoja o desastre ambiental do maior projeto hidroagrícola a nível europeu. Campos de amendoal e olival a perder de vista, árvores, ou lá o que é aquilo, encostadinhas em filas, os diversos troços e manchas correspondem a diferentes fases do crescimento. A propósito, para os interessados, vomitei um texto semiperformativo sobre este crime ambiental, chama-se Superintensiva, que mistura uma vivência pessoal de campo-paraíso com aspectos políticoeconómicos da indústria do azeite, e a dor que cresce no país a sul.

Stencis a anunciar Beja Cidade Anti-Fachista. Beja lembra-me a minha mãe, quando lá íamos ter com umas amigas, professoras como ela, que falavam dos seus percursos de alentejanas a dar aulas pelo país afora. Beja lembra-me o tio Palminha, que lá ia tratar de negócios dos borregos. E, recentemente, já morando em Ourique, fui ao Convento da Conceição, onde esteve a Mariana Alcoforado. Comprei as suas cartas ao Marquês de Chamilly e, ao lê-las, solidarizei-me com o seu sofrimento de amor. Pensei como aguento mal a dor e como enlouqueceria na sua situação. Sou fraca. Dessa vez, almoçámos num restaurante que servia a comida em tacanhos e fomos ver qualquer coisa ao Cine-Teatro Pax Julia.

Beja lembra-me a angústia da ala pediátrica do Hospital onde, pelo sim pelo não, a enfermeira cubana das urgências de Castro me mandou levar a filha. Já andava o COVID na China e a menina podia ter qualquer coisa. Beja é também a terra de uma grande amiga curadora. Imagino-a a crescer aqui, na capital de distrito, antes de ir para a faculdade e de se fazer à vida. Chego à Pracinha, entrego o computador, pergunto pelo espaço, sobre o que fazem, mercearia de produtos bio, bar, livraria. É um dos lugares de distribuição do jornal Mapa, um ponto a favor. Comprei o livro Transumano Mon Amour, do Andrea Mazzola, que conheço do RDA e do espaço Rosa Imunda no Porto. Na estrada de regresso, ouço na Antena 1 uns debatentes conhecidos preocupados com a cultura digital, os encontros remotos e as funções neuronais dos jogos de smartphone. Especula-se sobre que outro digital é esse, sem cheiro nem textura. Fecham o programa com a canção do Gilberto Gil: «Criar meu web site/ Fazer minha homepage/ Com quantos gigabytes/ Se faz uma jangada e um barco que veleje.»

 

7. Volto ao restaurante onde deixara a minha mala à hora de almoço, tinham-na pendurado no cabide geral do restaurante. Confirma-se que não fazem a mais pequena ideia da importância que a mochila carrega, o mais certo é nem reconhecerem que o trabalho possa estar dentro de um computador. O empregado novo mete conversa: «vi você escrevendo, era sobre o quê?» «Nada de especial.» Informa-me que é do Rio, que estudou Psicologia por lá e que veio fugido do Bolsonaro, o irmão mora em Portel há cinco anos. «Em Castro Verde», conta, «é tudo muito parado, inclusive para conhecer mulheres ‘tá difícil». Anda aborrecido com a vigilância social e o tédio alentejanos. O patrão aparece logo meter o bedelho, dando a entender que ele não pode ficar de conversa com uma cliente. Mas estava tudo tranquilo, os fregueses comem e veem futebol. Não percebo por que razão repreendeu a nossa conversa. E eu que adoro o ambiente acolhedor de jantar em sala coletiva dos restaurantes de província, quando se vai sozinha. Uma pequena família.

 

8. Pego na mochila e regresso ao monte já noite cerrada. Não há luz, novamente, e desligo a bomba da fossa. Deve ter sido isso que provocou o curto-circuito. Ligo o quadro. Descanso por fim nos lençóis de flanela. Quase a fechar os olhos recebo uma SMS sinistra de um número desconhecido: «Os gatinhos do teu monte são caçadores.» «Pois são, mas quem és?», pergunto. «O teu vizinho da Mitsubishi preta. Às vezes dou a volta para ver como estão as minhas coisas, os olhos dos gatos brilhavam em cima da cerca.» Segundos de pânico, estou a ser espiada por um homem num carro à porta da casa no meio do nada. Puxo o lado racional, às vezes acontece, no WhatsApp dá para ver a sua foto de perfil, mas é a de um papagaio, nada esclarecedora. Verifico na cozinha se está tudo bem fechado, olho de relance para uma catana que tenho escondida e para o cartaz do filme Bacurau junto à janela. Um canto de amor ao Nordeste. Lá percebo quem é o tipo, amigo do vizinho, e despacho a conversa com um «boa noite». Adormeço a ver uma série manhosa sobre casal em terapia. Sonho que vivia numa casa senhorial de pé direito muito alto e que os candeeiros a petróleo tombam e tudo arde durante a noite. Um enorme incêndio transforma a casa em cinzas e destroços, menos a cama na qual acordo de manhã. Depois corre tudo bem, como sempre quando acordamos e já os sonhos não assombram.

 

9.

Na manhã seguinte, arrepios e tosse cuspindo aquela gosma de quando se fuma muito, o que não é o caso. Faz cara de inverno nos campos, finalmente aguaceiros, mas nenhum frio. Planto uma pimpinela ou chuchu, que a Cláudia me ofereceu nos anos. Não precisa de muita água, gosta de estar escondida. Depois de cavar com a enxada, não muito fundo, para ela ficar semidescoberta, escolho encostá-la ao muro de pedra para poder crescer. Dizem que cresce bem e que se multiplica rapidamente. Vamos ver. Chuvisca, aproveito para esfregar a vassoura grossa na tijoleira do alpendre a ver se sai o cocó dos pássaros e das ovelhas, corrosivo e ácido, danificando a tijoleira de Santa Catarina.

Tenho uma aula de ioga por Zoom. O dia correrá certamente melhor reaprendendo a respirar, não obstante ter começado uma guerra. Depois do ioga trabalho. A luz está sempre a falhar. Faço a experiência de desligar as bombas da fossa e do poço, mas o quadro dispara na mesma. Ligo para a Câmara. Vem um eletricista da Câmara na sua hora de almoço. O quadro acabara de cair um minuto antes da sua chegada, mas enquanto ele cá está não volta a cair. Deve achar-me maluquinha e vai-se embora. «Mas olhe que é imprevisível», digo-lhe.

Regresso ao trabalho, e de facto não voltou a cair. Tive net para acabar uns e-mails.

Pego no carro para ir ter com uma amiga à Funcheira. Barulho estranho na estrada. De repente cai uma carga de água. Paro para pôr a reciclagem no ecoponto, saio do carro e percebo que tenho o pneu furado. Chove muito. Boas notícias para a seca. Decido encostar o carro e almoçar num café cuja palavra-passe é «comidinhaparatodos». Bacalhau e grão cozido, sabor caseiro e aconchegante. No andar de cima do café, com mesas marroquinas e decoração Zara Home, o Milhazes espia-nos com os seus comentários e um político ucraniano avisa que armas são entregues aos civis incentivando-os a usar.

Tenho em mãos a missão de pedir a alguém, muito provavelmente um rapaz, que me ajude a mudar o pneu. A vergonha de pedir ajuda equipara-se à vergonha de tentar fazê-lo sozinha e não conseguir. Nada mais do que um absurdo dilema feminista. Decido-me por mudar o pneu sozinha. Um camionista observa-me  a desatinar com as porcas de roda, e oferece ajuda (vá lá, não foi preciso pedir). O que pode parecer guião de um vídeo de 5 minutos de temáticas maiores de 18, é tão só o mini impasse existencial de um pneu rebentado que deve ser substituído. 

Finda a saga do pneu com a preciosa ajuda do camionista venezuelano, sigo em paz.  A guerra começa oficialmente na rádio.


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Fotografia de Marta Lança.

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