Fotografia_de_Filiz-Yildiz

Teatro Cósmico #6

Um espetáculo não é um espetáculo

 

Tenho uma amiga que me diz com alguma frequência que o que mais gosta de ver num teatro são bons espetáculos. Completa geralmente a afirmação com a descrição desse prazer que é único e por isso tão especial. Embora ela nunca tenha feito essa associação, imagino que a raridade é fundamental para o prazer, porque para a qualidade do espetáculo contará o fator surpresa. Isto significa que imagino, a partir da minha própria experiência, a minha amiga a ver maioritariamente espetáculos que não são bons, parecendo-me não só plausível como, pensando bem, desejável, pois só assim parece ser possível ver espetáculos bons.

Mas não é por isso que, quando vamos parar a este tema na nossa conversa, eu contraponha afirmando que o que mais gosto de ver num teatro são maus espetáculos. Creio antes que o faço por efeito de uma mesma síndrome que me afeta a mim e a ela e que gostaria aqui de diagnosticar.

Antes de o tentar, e para quem nunca assistiu a esta conversa, convém avisar que raramente desenvolvemos o que cada um de nós considera ser um mau ou bom espetáculo. Quando o tentámos fazer, rapidamente nos vimos perdidos no típico emaranhado teórico de quem tenta formular caracterizações genéricas: ela diz do que gosta e não gosta, eu faço o mesmo, destruímos facilmente os argumentos de cada um encontrando exceções, tornamo-nos tão vagos que tudo pode ser bom e mau, dizemos as mesmas coisas como se fossem antinómicas, usamos exemplos de espetáculos discordando da apreciação que o outro deles faz, e acabamos desgastados com estas tentativas. Não sabemos definir o que é um espetáculo bom ou um espetáculo mau, mas esta ignorância não impede que consigamos discutir sobre as nossas preferências circunstanciais.

Essa é, pois, a primeira benevolência que espero de quem me oiça responder que prefiro ver espetáculos maus: não sei o que são e conto que saibam, mas também não saibam, do que estou a falar. E assim sendo, presumindo que os nossos entendimentos se encontram e desencontram, começo por afirmar que o prazer que tenho a ver espetáculos maus advém do tipo de prazer que associo à caracterização de espetáculos bons. Quero com isto dizer que aos espetáculos bons associo o prazer do acordo absoluto, do consenso e plenitude, o que não significa que o espetáculo não possa originar pensamentos contraditórios. Ou seja, quantas vezes não caracterizo o bom espetáculo como o que abala as minhas convicções, valores, perceções e hábitos e, nesse sentido, me leva a discordar de quem eu era antes de ver este bom espetáculo? O bom espetáculo pode então pressupor a ausência de unanimidade ou acordo. Mas, mesmo assim, mesmo sentindo esse abalo, se o espetáculo for bom, ele garante sempre a confirmação de um prazer consensual, sem fissuras, esse prazer que já conheço e que naquele momento reconheço. É por isso que considero estes espetáculos, mesmo assumindo-os como únicos e diferenciados de todos os outros espetáculos (bons e maus), uniformemente espetáculos bons. São os tais e merecem a prateleira dos troféus ou o panteão das memórias.

Recordo os espetáculos bons que vi. A descrição da experiência vem carregada de nostalgia, mas sobretudo de alegria ou equivalente, da satisfação de ter tido a sorte de estar naquele lugar a sentir aquelas coisas, o que não significa necessariamente uma identificação, mas o privilégio, a exceção e a possibilidade, num tempo posterior, de falar sobre a experiência de um modo interessante e eventualmente infindável. Em relação a estes espetáculos inesquecíveis, aos que mudaram a minha vida, não existem dúvidas: o espetáculo era mesmo bom, tão bom que me deu ideias, que me fez ver o que eu antes não via, que me comoveu, que me encheu o coração, o corpo, tudo. A plenitude favorável e muitas vezes epifânica (as semelhanças com certas leituras aristotélicas do que deve ser a tragédia andam próximas destas descrições – a catarse como clímax) é indissociável do espetáculo bom.

Posto isto, e tendo afirmado anteriormente que é este tipo de prazer que me leva a preferir espetáculos maus, talvez fique mais claro que o que me interessa nos maus espetáculos é tudo o que não encontro nos bons: a desilusão, o aborrecimento, a discórdia, o ódio, a pena, o esforço, a irritação e por aí fora porque é muita coisa. Isto não quer dizer que os maus espetáculos me deem muita coisa, até porque acontece muitas vezes nada me darem e ter de ser eu a fazer o esforço para tentar encontrar uma oferta. Quer antes dizer que me permitem o estranho prazer de não me darem o que eu queria que me dessem e por isso me forçarem a uma experiência incómoda.

Faço agora o exercício de também recordar os espetáculos maus que vi. Saí a meio, olhei repetidas vezes para o relógio com esperança de que o tempo passasse mais depressa, esqueci-o e apaguei-o, fiquei mudo por falta de interesse, disse mal ou adormeci. E apesar de resistir a recordá-los, sei que os espetáculos maus foram bem mais frequentes do que os espetáculos bons, o que significa que é uma experiência recorrente num consumidor regular de espetáculos, sobretudo se, como eu, estiver disposto a arriscar. Se os espetáculos maus são os que não são bons, também o associo ao habitual, ao quotidiano e à quantidade.

Um amigo meu e da minha amiga tem a particularidade de praticar a arte de transformar espetáculos maus em espetáculos bons. Para o fazer recorre a uma argumentação elaborada, que encontra referências eruditas, rimas internas, segredos, perguntas misteriosas, lógicas e estéticas complexas, transformando uma eventual banalidade num achado criativo. A minha amiga nem sempre se deixa levar, mas já a ouvi agradecer o facto de as elucubrações do nosso amigo terem melhorado a sua opinião em relação a um espetáculo. Afinal o espetáculo podia ser bom. Eu também gosto de o ver raciocinar assim, não porque me salve o espetáculo, antes porque me diverte seguir o esforço argumentativo e aquele desejo de salvação de si próprio enquanto espectador. E o que me parece, ao observar o exercício, é que ele só é possível por as descrições das experiências com espetáculos maus e bons terem em comum o facto de, mesmo reconhecendo a singularidade de um espetáculo, seja ele mau ou bom, sermos capazes de o arrumar nas famílias homogéneas dos maus ou bons espetáculos. É o momento em que reconhecemos que o espetáculo é o tal e que por isso merece a prateleira dos troféus ou o panteão das memórias.

Talvez se tenha, entretanto, tornado tão claro para quem me lê como se tornou para mim que, quando me refiro a espetáculos maus e bons, estou a falar de impressões e vivências de espectadores que revelam o modo como gostam de arrumar (ou domar) as suas experiências destes acontecimentos. Não significa isto que se esteja a esvaziar os espetáculos da sua responsabilidade, mas significa que estas discussões são, por exemplo, sobre a nossa vontade de viver um certo tipo de experiências ou sobre a frustração de não as viver ou sobre o modo como podemos forçar a sua vivência. E se aceitarmos este raciocínio (segunda benevolência que espero de quem me oiça), então talvez possamos concluir que a diferença entre a vontade da minha amiga e a minha própria vontade é bem mais semelhança em relação a uma estratégia de classificação em que assenta o nosso prazer.

Para mim e para os meus amigos apenas há, como me chamou sabiamente a atenção uma terceira amiga, os maus e os bons espetáculos. Estamos a jogar no tabuleiro onde uns amigos perdem e outras amigas ganham, a usar o olhar que favorece os sobreviventes que derrotaram as fracas. Esta é uma organização comum a certas lógicas de interpretação e fruição de espetáculos que reduz o olhar de quem vê. Trata-se aliás de uma organização dominante e dominadora e talvez por isso eu tente responder à afirmação de quem quer ver espetáculos bons com a afirmação de que quero ver espetáculos maus. Convenço-me de que não quero ganhar e imagino que ao afirmar o meu orgulho na derrota esteja mais próximo de contribuir para sabotar o jogo. Acontece, porém, que, enquanto usar estes pensamentos para pensar e esta grelha para classificar, a única coisa que estou a fazer é precisamente a tentar derrotar a minha amiga que diz que gosta de espetáculos bons, fortalecendo as regras de que me queixo e demonstrando que no fundo, no fundo, eu quero vencer.

Esta vitória não é apenas sobre a minha amiga mas também sobre o espetáculo. Eu quero saber o que o espetáculo é e, para mim, saber é aferir a qualidade do espetáculo. É uma estratégia que favorece uma certa ideia de conhecimento, ou seja, a ideia de que conhecer uma coisa é ter a certeza do que ela é. E para chegar à definição faço uso das categorias “mau” ou “bom”. Trata-se, em certa medida, de um modo de domesticar o conhecimento.

Contando então com a derradeira benevolência de quem me leu até aqui, e seguindo o conselho que me foi dado pela terceira amiga, a sábia, concluo que sempre que alguém me disser que prefere ver espetáculos bons, passarei a responder que prefiro não “ver” os espetáculos, seguindo uma máxima que Fernando Pessoa, por exemplo, glosou assim: “o que vemos não é o que vemos senão o que somos”. Podemos então, nós que vemos, ser outra coisa (ou seja, ver de outra forma) e desviar os olhos de um olhar que reduza o olhar. Estaremos mais disponíveis para uma discussão que expanda as nossas apreciações, que exponha as nossas inseguranças e que, em lugar de nos fazer mudar de ideias, nos faça ser cada vez mais coisas. E estaremos mais livres para encontrar mais espetáculos e mais nos espetáculos, porque um espetáculo não só não é apenas bom ou mau como não é apenas o que nós somos. Um espetáculo, aliás, não é, se me permitem, um espetáculo.

Relacionados

Teatro cósmico #8
Artes Performativas
José Maria Vieira Mendes

Teatro cósmico #8

Achas que? Para quem não viu o espetáculo Ão de André e. Teodósio, Ana Rita Teodoro e João Neves, apresentado em maio de 2023 no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, importa talvez contar a história. Era uma vez alguém que pisou um som e o som, que dói, magoou.

Ler »
Retrato do Humorista quando Sóbrio
Artes Performativas
Afonso Madeira Alves

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Em Hubris, o espectáculo a solo de Daniel Sloss que passou pelo Teatro Tivoli em setembro de 2021, o humorista escocês chibava-se dos pares e da sua normalização como consumidores de drogas. “O vosso preferido que acham que nunca seria capaz de se drogar? Lamento dizer-vos, mas é o pior

Ler »
Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada
Artes Performativas
Renata Portas

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

 I´m out with lanterns, looking for myself. Emily Dickinson   Tic-tac. Tic -tac. Ou É tarde!  É tarde! Como diria o coelho de Alice, de relógio na mão, com o medo de perder a cabeça. Falhar deadlines: a última invenção para conseguirmos responder a prazos. Ficar tão prenhe de uma

Ler »