O meu olhar varreu as estantes. Vi Aquilinos Ribeiro, Vergílios Ferreira, Cardosos Pires, Fernandos Namora, Agustinas Bessa-Luís, Antónios Lobo Antunes…
Não sabia por onde começar. Um tipo como eu perde-se num alfarrabista como aquele: uma cave semi-clandestina, escura e húmida, onde é difícil circular, cheia de livros até ao tecto e a todo o comprimento das paredes.
Entrei. O dono da loja, uma criatura com barriga de homem sedentário, estreito em cima e bojudo no meio (como certas panelas), e uns setenta e poucos mal conservados, dormia sentado atrás de uma secretária, dentro de um fato tão fora de moda que entrara outra vez na moda.
Apresentei os meus cumprimentos. Não se tendo apercebido da minha aproximação, sobressaltou-se, o que o fez sentir-se irritado: era um alfarrabista português, tão português que tinha nascido em Portugal, vivia em Portugal e era antipático.
Levantou-se, apoiando a mão na mesa, a fim de se equilibrar, e murmurou algo, em tom áspero e mal-encarado, enquanto limpava uma orelha com o dedo indicador.
Como desculpando-me pela presença do meu corpo naquele espaço, disse-lhe que pretendia apenas dar uma vista de olhos. De seguida, evitando olhá-lo directamente, como se tivesse um especial interesse pelo tecto, perguntei se teria alguma obra de Luiz Pacheco ou de Herberto Helder.
Como palavras-código que estabelecem uma momentânea ligação entre pessoas heterogéneas, aqueles dois nomes subministraram-lhe jovialidade e capacidade de diálogo.
Os sítios do seu tempo voltaram-lhe à memória. Tinha visto tudo, conhecido tudo, incluindo o Herberto e o Pacheco, este último em particular, a quem chegara a comprar folhetos, folhas-volantes e edições-pirata.
Nostálgico, perdeu-se na contemplação do Portugal do passado. Teve saudades da juventude, quando vibrava mais com as coisas e tinha um aspecto forte e viril.
Explicou que vender livros é ser um divulgador de cultura, cumprir uma missão sagrada, e que Portugal é um país de poetas que juntou raças diferentes, fez expandir a civilização, e essa treta toda das certezas tradicionais. Enfim, abriu-me o coração.
Mais importante, concedeu-me um salvo-conduto para ter acesso à cave, onde só alguns felizardos, bafejados pela sorte, eram admitidos.
Desci as escadas íngremes. Foi como se tivesse entrado num sonho, como se tivesse atravessado um espelho e ido parar a outro mundo. De repente, estava nas grutas de Altamira ou na caverna de Ali-Babá: contra as paredes havia várias estantes a abarrotar, a regurgitar de livros. Tive que controlar o coração.
Inalei umas boas golfadas de ar, da atmosfera acolhedora que provinha dele, uma combinação específica de humidade e pó acumulado durante muito tempo, de coisas antigas, sem ruído e sem vida.
É a minha religião, disse mentalmente, sentindo-me grato aos horizontes que os livros me abriram, enquanto as minhas garras cobiçosas davam início às buscas, à revista das estantes, uma a uma.
Em frente de quem descia, via-se uma enorme colecção de livros de receitas, de enciclopédias do Círculo de Leitores e das Selecções do Reader’s Digest — aprumadas e altivas como guardas numa parada real —, de revistas Colóquio ou daqueles exemplares verdes da Colecção Esfinge, das Edições 70.
À direita, uma panóplia de traduções, romances russos, franceses, espanhóis, ingleses… O Diário de Bridget Jones ou Louca por Compras, misturados com as obras completas de Shakespeare e de John Le Carré; Os Miseráveis, de Victor Hugo, misturado com Um pouco de sol na água fria, de Françoise Sagan; O Conhecimento da Dor, de Carlo Emilio Gadda, misturado com O Amor É uma Droga Dura, de Cristina Peri Rossi.
À esquerda, a literatura da velha terra de Camões. Clássicos da Sá da Costa, diversos livros de Camilo Castelo Branco encadernados em percalina, da Parceria A. M. Pereira, o Alexandre Herculano da Bertrand e muitos outros figurões, vendendo-se como carros em segunda mão.
Vagueando por entre as estantes, escolhi alguns, introduzindo-lhes por vezes as narinas e sentindo nas almofadas dos dedos as capas cartonadas e as folhas, a perda de aspereza do papel desgastado, por lhe terem mexido com demasiada frequência.
Arrastei um escadote de madeira para trepar mais alto, para alcançar uma posição que me permitisse espiar o que havia no topo das estantes e perceber se havia algum tesouro escondido nas prateleiras superiores (há algo de fascinante nas estantes: satisfazem a nossa condição vertical, adaptam-se perfeitamente a ela).
Folheei dezenas de livros, revistas e separatas, desinteressadamente. Ora distanciando-os, ora aproximando-os dos olhos, lendo um parágrafo aqui, uma frase ali, tentando perceber se resistiam à prova da leitura em voz alta, se aqueles mortos ainda estavam vivos e podiam ser acordados.
Os detalhes que distinguem os livros — capa, contracapa, badanas, costura (ou cola quente), ficha técnica (espécie de bilhete de identidade do livro, incluído no verso da folha de rosto, contendo informações técnicas, como o título da obra, os nomes do autor e da editora, e/ou do tradutor e do ilustrador, o local, data e o número da impressão, etc.) e cólofon (último elemento impresso no miolo do livro, que reproduz ou completa as informações técnicas iniciais, onde normalmente aparece o tipo de papel e o nome da tipografia que lhe deu vida) —, todos estes detalhes, vinha eu dizendo, só são verificáveis de perto, exigem diferentes movimentos de apreensão visual (sobretudo para quem, como eu, precisa de óculos de leitura e se esqueceu deles em casa).
Muitos apresentavam picos e manchas de acidez, sombreadas na superfície do papel, assinaturas de posse, cinzas de cigarro esmagadas entre páginas, desenhos a esferográfica ou a lápis nas margens, dedicatórias (como esta, a caneta de feltro verde: “Amo-te e estremeço de alegria na chuva. Aurora. 24 de Fevereiro de 1987”).
Certificando-me se havia alguma coisa atrás deles (hábito que me ficou depois de há muitos anos ter descoberto um desenho original de Mily Possoz), encontrei nas costas de uma fileira de livros, no meio de esqueletos de ácaros e patas de insectos bibliófagos (traças, peixinhos-de-prata, etc.) — maravilha entre as maravilhas —, uma radiografia dos pulmões (seria decerto uma longa, mas interessante história, averiguar como é que ela foi parar ali).
Dentro de algumas obras havia pequenas surpresas, que provavelmente tinham servido como marcadores de página: um calendário de bolso do ano 2000 (do famoso “O Barbas”, restaurante à beira-mar na Costa da Caparica), um bilhete do antigo cinema Quarteto, um postal enviado das Caldas da Rainha, com uma imagem dos pavilhões das Termas e do lago do parque D. Carlos.
Algumas achavam-se inteiramente esgotadas, como a primeira edição de Adolescente, livro de poemas de Eugénio de Andrade, ou Paula Rego, de John McEwen, com tradução de Alberto de Lacerda. Outras tinham títulos compridos, com princípio, meio e fim, como O Estranho Caso da Boazona que Me Entrou pelo Escritório Adentro, de José Pinto Carneiro, ou Deus Morreu e Eu Não Fui ao Funeral, de João Rosas.
Eram tantos os livros que me interessavam que, para os transportar, precisaria de um carrinho de mão ou de supermercado. Andava eu nestas conjecturas quando, levantando a cabeça e olhando em frente, para um conjunto de lombadas grossas, que me fitavam com ares doutorais, o coração quase me parou. Julguei que ia ter um ataque de ansiedade. Não podia acreditar. Não podia ser verdade.
Não podia ser Um Negro no País das Loiras, a obra-prima de Hernâni Anjos, o mais português dos livros portugueses, publicado em 1968 pela Minerva, a mesma editora de Borda d’Água. O Verdadeiro Almanaque (tal é a ironia das coisas) e de Terra do Pecado (1947), o primeiro romance de José Saramago.
Lá fora, as nuvens abriram-se, o sol rasgou o céu e um raio de luz, atravessando a pequena janela retangular da cave, atingiu-me na cara.
Senti-me eufórico. Invadido por uma vaga de calor. Com a cara a arder. Engasgado de emoção, o coração batia agora descompassadamente (o meu coração nunca bate tão depressa como quando vejo um livro de que ando à procura, como um caçador que vê ao alcance de tiro o animal que persegue sem descanso).
Que sensação se apodera de mim quando encontro um livro tão desejado? Puro prazer egoísta. É como um aumento súbito do fluxo da oxitocina, como o momento que antecede o orgasmo ou como a cocaína a espalhar-se imediatamente no cérebro, logo depois de se meter uma linha pelo nariz.
Poucos terão lido Um Negro no País das Loiras, poucos o conhecerão sequer (quantos de vós estavam a par da existência desta obra?).
Porque os livros de Hernâni Anjos são hoje tão difíceis de encontrar, como a primeira edição de O Pé Descalço. Uma vergonha nacional que urge extinguir, editado pela inexcedível Liga Portuguesa de Profilaxia Social (que nos deu outras publicações igualmente fundamentais, como Escarrar e Cuspir, O Perigo dos Ratos, A Vida Moral, Material e Social dos Cegos ou A Campanha pelo Casamento das Telefonistas).
Na verdade, só um pequeno número de afortunados conhece Um Negro no País das Loiras.
Raridade das raridades, obra de culto, referida em surdina e em ocasiões de reconhecimento mútuo, a sua existência tem sido ciosamente guardada, transmitida com parcimónia entre alguns (pouquíssimos) eleitos.
O livro é tão cobiçado que poderia revendê-lo por bom metal sonante, pelo dobro ou o triplo do preço indicado a lápis na folha de rosto. E logo três exemplares, geometricamente paralelos, agrupados a régua e esquadro, ao lado uns dos outros.
Doido de contentamento — quase bati palmas com as orelhas —, tirei-os da estante com uma atitude reverencial. Não sabendo eu o que mais admirar, se a capa, a contracapa, as badanas ou a mancha do texto. Era como se toda a minha vida tivesse sabido que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acontecer. Com o telemóvel, fotografei o livro, para mostrar aos amigos invejosos.
Surpreendentemente calmo, voltei a subir as escadas. Paguei (se revelasse aqui o preço, só com alguma dificuldade é que o alfarrabista escaparia desta crónica sem prejuízo para a sua reputação) e saí da loja com os exemplares na mochila, olhando fugazmente para trás, receando que o homem se tivesse apercebido do terrível negócio que acabara de fazer.
Correndo rua abaixo, vi-me perante um dilema: ficava com um exemplar e vendia ou oferecia os outros dois?
O primeiro impulso inclinou-me para a última opção, mas de imediato confluíram em mim sentimentos diversos, um vai-e-vem de egoísmo, avareza, ganância e retenção anal.
Apelando ao meu espírito de abnegação e sacrifício pelas letras, convencido de que os amigos se devem apoiar uns aos outros — e que o simples gosto de partilhar um livro é um dos gestos mais elevados —, encontrei o equilíbrio perfeito de ganância e altruísmo, de febre do lucro e solidariedade social: oferecia um e vendia o outro.
Um romance daquela grandeza (501 páginas e cerca de 700 gramas de peso) exigia um grande acto de magnânimo desapego, de renúncia ascética ao materialismo ocidental, por outro lado, também é preciso sobreviver, encher o frigorífico.
E a quem oferecer? Ao António Araújo, que comigo partilha o interesse por figuras invulgares ou à parte no nosso mundinho literário?
Que tem, como eu, um gosto sádico pelo efémero e o talento dos falhados, dos fiascos literários, gente que investiu toda a sua criatividade, potencial e determinação a escrever livros, mas em que nada disso foi suficiente, pois nunca passaram de meros anónimos num cemitério de papel? Que sente (como eu) um doentio entusiasmo pela grei dos fracassados, as carreiras estragadas pela incompreensão da crítica, ou caídas na indiferença, deixadas a um canto?
Uma mata quase virgem, densa e longa, que só anacrónicos como nós conservam na memória e que inclui Hernâni Anjos, Teresa de Lacerda, Sum Marky, Rui de Brito, Orlando da Costa, Eduardo de Noronha, João Salva-Rey, Maria da Graça Freire, Júlio Conrado, Odette Saint-Maurice, Leonel Brim, Maria Regina Louro, Isabel Quartin, Leonilde Leal, entre muitos outros que não tiveram sequer direito a obituário, cujas mortes não comoveram nem os jornais nem as televisões.
E outros, ainda, como Américo Guerreiro de Sousa, Olga Gonçalves, Maria Ondina Braga ou Guilherme de Melo, que tiveram cinco minutos de reconhecimento, mas que são marginalizados pelo cânone e estão ausentes das histórias e dos dicionários de literatura, marcados por sucessivas crises de amnésia e pelo fim trágico de uma multidão de mártires, cujos nomes se esquecem logo que são pronunciados (o mundo da edição é uma máquina produtora de autores lançados no esquecimento, carrega consigo uma lista dura e cruel de figurantes que nunca ocuparam o palco, que nunca deixaram sequer a sua marca).
Ou deveria antes oferecê-lo ao eruditíssimo Diogo Ramada Curto, com quem me envolvo em combates ferozes na Feira da Ladra (nas bancas do filho do carteirista, do Senhor Luís, do Foucault, do Gigio ou do Químico), como quando se apoderou do livro Em torno da Sociologia do Caminhão. Notas para um estudo das relações do caminhão e do motorista com a paisagem e o homem brasileiros, em geral, e nordestinos, em particular, de Marcos Vinicios Vilaça publicado pelo Instituto Joaquim Nabuco, do Recife, em 1961? (Se algum dos meus escassos leitores o tiver, conhecer quem o tenha, ou souber onde o possa encontrar, e o quiser vender, pago bem).
Ler Hernâni Anjos, actualmente, quando o século XXI parece arrastar-nos para tão perigosos caminhos, pode parecer descabido, um sinal de irrealismo e imobilismo (já estou a ouvir a acusação de mergulhar no exótico-cultural, tentando recuperar obras dignamente esquecidas, e de contribuir para o ressurgimento daquilo que sempre abundou em Portugal: romancistas de postal ilustrado, com visões pitorescas e nostálgicas). Calma! Não se excitem.
Um Negro no País das Loiras — um desses títulos que ficam gravados na memória — é uma obra valiosa sob variadíssimos aspectos.
Contém o germe latente de uma energia criadora, de uma consciência que se motiva a si mesma. Transmite vontade de levar a literatura portuguesa a camadas que antes ninguém pensou atingir (e a prova disso é que os livros de Hernâni Anjos ocupam lugares onde a História da Literatura Portuguesa ainda não penetrou).

O Autor
Mas, afinal, quem foi Hernâni Noel Tamm Pereira da Silva Anjos? Sabe-se pouco da biografia dele. Ninguém sabe, por exemplo, que voz tinha, se era fina, forte, fanhosa, sibilante, ou se era rouca, de barítono ou de tenor, daquelas que racham ou explodem os lustres de cristal.
Sabe-se, porém, que nasceu realmente em 12 de Abril de 1922, em Santarém, e que morreu em Lisboa, em 1973 (ignora-se a causa: se de asfixia, afogamento, overdose de medicamentos, doença inesperada, arma-de-fogo, etc.).
Desconhecendo tudo isso, sou obrigado a recorrer àqueles predicados que se convencionou formarem uma “carreira profissional”.
Depois de ter cursado o liceu daquela cidade ribatejana, onde abrira os olhos para o mundo, ingressou em 1939 na Escola Politécnica de Lisboa, para depois seguir a carreira militar. A partir de 1956, serviu na aviação comercial portuguesa.
Aquilo que escrevemos é consequência daquilo que somos. E a profissão de aviador (Hernâni Anjos foi piloto dos Transportes Aéreos da Índia Portuguesa), e o facto de ter sido oficial superior do Exército português, claramente propiciaram ao tenente de infantaria a elaboração de um cartapácio como este: dispondo de meios seguros de sobrevivência, tinha tempo livre a perder, não vivia preso à necessidade do ganha-pão, pôde dar largas à sua criatividade num romance como Um Negro no País das Loiras.
Logo após a II Grande Guerra, entre 1946 e 1951, foi expedicionário em Macau, e ainda terá convivido com alguns dos milhares de refugiados oriundos da China e da província inglesa de Hong Kong, ocupadas pelas forças japonesas, que para ali tinham convergido temporariamente.
Em Macau, entre 1946 e 1948, chefiou as redacções do semanário ilustrado do jornal Notícias de Macau e do diário Renascimento.
Sócio efectivo do extinto Instituto Português de Hong Kong (Secção de Letras), foi, em 1950, um dos fundadores e dirigentes do Círculo Cultural de Macau (associação fundada pelo macaense Pedro José Lobo), bem como do mensário trilingue Mosaico (Português, Inglês e Mandarim), revista que marcou a vida cultural daquela então província ultramarina sob administração portuguesa, até Dezembro de 1957 (data do seu último número).
Na revista Mosaico, Hernâni Anjos (ou só Hernâni, para os amigos) publicou ensaios (e.g. “Os Jogos Florais do Ultramar: esboço da sua orgânica e espírito da sua finalidade”, 1950), mas também vários sonetos e gazetilhas, lidos depois aos microfones da Rádio Clube de Macau (de cuja direcção fazia parte) e posteriormente reunidos em livro, como Mosaico Rítmico (Macau, Imprensa Nacional, 1948), O ‘leão’ do Passaleão (1949) e Tetralogia Pátria (Edições Círculo Cultural de Macau, 1950).
No Teatro D. Pedro V, por iniciativa do Círculo Cultural de Macau, fez várias conferências-recitais sobre problemas literários e sociais, todas elas publicadas em português, como esta, versando o tema “Afinidades Transitórias: do Simbolismo Português — Camilo Pessanha — ao Romantismo Alemão, Henrique Heine (Estudo Retrospectivo), ou esta, em inglês: “Peace Through Culture” (1949).
Em 1951, regressado a Portugal, obteve o primeiro prémio do Soneto nos Jogos Florais de Portugal, e em 1952 foi redactor da revista Portugal Ilustrado.
Dando seguimento à sua actividade como conferencista, proferiu na Sociedade de Geografia (17 de Março de 1952) a palestra “Grandeza e Servidões de Macau Moderna”, onde explicou, entre outras coisas, “que eles (chineses) ainda hoje nos chamam sai-ièong-quai (diabos estrangeiros), mas esses pequenos ‘mimos’ não são mais do que inofensivas e ingénuas réstias duma tradição secular, hoje já sem sentido e significado algum”.
Entre Novembro de 1952 e Março de 1953, organizou e dirigiu programas literários no Rádio Clube Português, um deles intitulado Autores Unidos. E de 1951 a 1954 foi professor de Português no Colégio Militar, donde sairia para o Estado da Índia, como voluntário.
Homem culto e arejado, lusófono exemplar, Hernâni Anjos passou boa parte da vida fora de Portugal continental.
A sua experiência de viagens como piloto de aviões — conheceu vários países do então chamado “mundo livre”, das Américas ao Japão —, fê-lo sentir em si capacidade para voos mais altos e deliberou atirar-se ao romance.
Tendo aprendido a escrever escrevendo, criou do nada um novo género literário — o Romancilho (que não era nem romance, nem novela, nem conto, e que podia servir como base literária para, simultânea e indiferentemente, ser adaptado, de forma simples e directa, ao cinema, à radiofonia e ao teatro) —, cuja produção de estreia (e também a mais importante e única que nasceu dessa corrente) seria Um Retrato da Vida (Em Tamanho Natural), obra de 1960 (Editorial Minerva), que começava assim: “Na avenida de tráfego intenso guincham de súbito os travões dum carro de luxo. Bruscamente sacudida por um automóvel em disparada, uma mulher cai. Rola ainda alguns metros pelo asfalto. Mas logo fica estendida no solo. Inerte e ensanguentada”.
Hernâni Anjos deixou ainda inédita ou incompleta uma colectânea de episódios, lendas, contos e novelas, a que pensava dar o título geral de Cosmorama, e cuja I série deveria anteceder a saída do próximo romancilho do autor (o que nunca aconteceu).
Com Um Negro no País das Loiras, a primeira obra que me traz aqui, ao vosso amistoso convívio, Hernâni Anjos abriu um capítulo em separado (onde está sozinho) na história da Literatura Portuguesa. (continua)