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Andor, a Lufada de Ar Fresco que Poucos Sentiram

Depois de escrever sobre Stranger Things de um ponto de vista mais lato, tendo em conta visões de um ecossistema de streaming que não só tem mudado muito como continua em constante ebulição — e sim, em breve gostaria de pegar na arrepiante ligação com o mundo das salas de cinema —, desta feita, apraz-me cantar as pequenas glórias de Andor, uma série que se passa no universo da Disney+ e de Star Wars, talvez o franchise mais explorado em todos os meios (cinema, televisão, livros, banda desenhada, animação, brinquedos…) de sempre. 

Comecemos pelo proverbial início: Andor foi congeminado como prequela do filme Rogue One: Uma História Star Wars (2016), esse também uma prequela, desta feita do Star Wars original (1977), que nos explica como/quando/porquê se conseguiram os planos da mítica Death Star, destruidora de planetas. Rogue One é indicado como tendo sido realizado por Gareth Edwards, mas é um segredo muito pouco guardado da indústria hollywoodiana que Tony Gilroy (Michael Clayton, alguns filmes do Bourne, entre outros; um veterano do cinema americano) foi chamado para reestruturar o filme — a diferença entre o que vemos em trailers e o que vimos no produto final reflecte uma mudança de direcção que se poderá dizer substancial.

O aparecimento da plataforma Disney+, uma forma de a Walt Disney entrar no mercado de streaming com o seu próprio arquivo/portfolio de filmes, implicou uma nova vertente a ter de ser alimentada com conteúdos e a Lucasfilm (agora uma divisão pertencente à Disney, tal como a Marvel) começou a repensar os seus planos para filmes e a recauchutá-los (pelos menos alguns, como Boba Fett ou Obi-Wan Kenobi) enquanto séries. Uma das séries pensadas para o Disney+ é Andor, que pega num dos personagens principais de Rogue One, Cassian Andor (Diego Luna), e vai à origem da sua ligação com a Rebelião, da qual faz parte activa. O desenvolvimento desta série esteve noutras mãos que não as de Tony Gilroy, que, conta o próprio em algumas entrevistas de promoção da série, terá escrito a Kathleen Kennedy (presidente da Lucasfilm) um manifesto sobre como Andor deveria ser pensado para ser bem sucedido. Se a princípio este manifesto foi desconsiderado pela produtora, o caminho para compor a série não se mostrou fácil e voltou-se para Tony Gilroy e a sua visão clara sobre como se deveria proceder. E ainda bem. Em 2020, Gilroy é oficialmente o showrunner da série. 

Toby Haynes, Benjamin Caron e Susanna White são os realizadores dos 12 episódios da série, tendo esta sido criada por Gilroy, que escreveu quase todos os episódios, mas dando espaço às contribuições do irmão Dan Gilroy, e de Stephen Schiff e Beau Willimon. Andor funciona em pequenos arcos narrativos, agrupamentos de episódios. Os primeiros três lidam com a vida de Cassian, anos antes da sua participação em Rogue One, em Ferrix, um planeta working class que ainda não está sob o jugo directo do Empério. Os três episódios seguintes têm também eles um arco, o sétimo chega para repor as peças do jogo, começando um novo arco narrativo que termina no 10.º episódio. Os dois seguintes podem considerar-se como uma conclusão-em-duas-partes. Esta temporada foi concebida como sendo um ano na vida de Cassian, com a segunda temporada a seguir a mesma estrutura de arcos narrativos agrupados em poucos episódios, em que cada arco será em si um ano. No final da segunda temporada, entramos directamente nos acontecimentos de Rogue One.

Escreveria com mais detalhe sobre a história de Andor não fosse o facto de a imprensa, americana e não só, ter sublinhado o facto de ser a série que advém de Star Wars na Disney+ que menos gente viu. Aponta-se para essa razão ser também a série que está menos presa — como cita Joana Amaral Cardoso, no Público —, menos cativa da “gramática Star Wars”. Não há Jedis, não há uso da mítica força, nem há muitos Storm Troopers, ou personagens familiares deste universo, que não indivíduos humanóides que já apareceram em Rogue One, como Mon Mothma (Genevieve O’Reilly, um “stradivarius” de uma actriz, como Tony Gilroy indica numa entrevista ao podcast The Watch), Saw Gerrera (Forest Whitaker) ou Melshi (Duncan Pow). Mas se essa é a causa de menos olhos nesta série, é também um dos motivos que a torna appointment viewing. Andor não tem de envergar as vestimentas superficiais de Star Wars para ser uma boa série. É uma boa série, independentemente de se passar naquele universo, mas acaba por pegar num leitmotiv que é reconhecidamente starwarsiano: a ideia de resistência, de rebelião contra uma potência que parece tão insuperável como perversa. 

Cassian Andor começa, nesta série, por ser alguém não completamente destituído de um pensamento político ou de rebelião, mas completamente dominado pela inércia de quem não acredita que valha a pena fazer algo contra uma mão que domina a galáxia de uma forma tão forte que nem se pode perceber como afastar a mão que sufoca lentamente os planetas ou civilizações deste império. A força autoritária que deseja impor a sua ordem sobre uma variedade de sociedades leva à homogeneização de tudo o que seja estranho a essa ordem — como celebrações culturais que providenciam “humanidade” a quem promove esses rituais — e ao abuso da força de trabalho ou dos recursos de cada planeta. Claro que, no meio desta desolação, há pessoas que estão a trabalhar no sentido de minar e enfraquecer esta subjugação. Andor acaba por ser, essencialmente, uma série sobre o que é necessário acontecer para que a rebelião seja a única forma de reacção possível, mas também sobre o custo que essa rebelião tem — em termos de sanidade mental, de manutenção de laços fraternos ou de princípios morais. A rebelião acontece porque, parafraseando Nemik (Alex Lawther), um crente na resistência que se está a formar, a liberdade é um pensamento completamente autónomo, que existe sem nenhuma provocação. Não é algo que nos é incutido — ao contrário da necessidade de obedecer a certas ordens —, mas um ímpeto humano que vai para além do ensinável. 

Os adjectivos que se podem usar sobre a série — como o protagonista Diego Luna indica em entrevista a Joana Amaral Cardoso — giram em torno do “‘realista’, ‘maduro’, ‘complexo’, ‘político’ e‘negro’”, algo que o actor não deixa de sublinhar ser um risco para a Lucasfilm. É curioso pensar como uma série feita dentro de um conglomerado capitalista como a Walt Disney acaba por produzir uma série que é tão fortemente política, tão fortemente anti autoritária, anti prisional, anti fascista. Talvez seja algo que pareça vagamente inofensivo ou talvez seja indicação de como estas visões de resistência política estão desbotadas, apropriadas por um sistema que não lhes vê perigo. 

Ainda assim, é difícil não nos deixarmos encantar por uma série que não só pega em temas que não poderiam ser mais relevantes (hoje e sempre, ao longo da História), mas que constrói de forma exímia personagens que nos tocam e inspiram ou assustam. Num mundo de entretenimento derivado constantemente das mesmas fontes de inspiração, é pelo menos refrescante ver uma série tão bem composta pela forma como leva a sério os seus temas e personagens, mas não romantiza em demasia o universo onde existe. Tony Gilroy não é fã de Star Wars. E talvez seja isso mesmo que lhe permite trazer esta lufada de ar fresco a um franchise que parece andar sempre à volta das mesmas personagens, sem ideias para se libertar do terreno já percorrido. Andor liberta-se do status quo e explora novos caminhos. Luke Skywalker pode ter-se juntado à Rebelião em A Guerra das Estrelas, mas o que era a Rebelião antes de Skywalker? É o que vamos descobrir. 

Se puderem, espreitem a série. 

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