Fotografia de William Hope

Foreindring

Cícero (De Oratore II, 351) conta que Temistócles disse um dia a um homem que queria aprender a arte de recordar: farias melhor em aprender a arte de esquecer. Sim, mas por acaso está ligada a outra bela arte: a de re-recordar ou, se preferirem, a dupla recordação.

A memória é uma construção neuronal e hoje em dia aceitamos três tipos: a sensorial, a de curta duração e a de longa duração. Alguns avanços e passámos a distinguir (Levy, D. A., Stark, C. E. L., and Squire, L. R. (2004), Intact conceptual priming in the absence of declarative memory. Psychol. Sci. 15, 680–686) a memória declarativa da não-declarativa. Um acidente que testemunhámos em garotos é um exemplo da declarativa, alguma coisa que originou um traço fóbico é um exemplo da não declarativa. E esta tem interesse redobrado.

    
Um casal de velhos junto à lareira. Ela lembra-se daquela vez em que quase contou ao marido que o tinha traído sexualmente quando eram novos. O ressouvenir difere da memória porque não é uma condição transitória, como ele diz? Ele, que conta o episódio, é o Kierkegaard, fama de autor difícil, mas não é nada disso, é até muito divertido. E de que fala? Do forerindring, a dupla recordação.

Então, o foreindring interessa-nos como técnica para organizar a memória e o … tempo. O dinamarquês dá o exemplo de dois homens que recusam rever, por razões diferentes, um determinado lugar. Um deles pode ser motivado por querer re-recordar. Tive essa experiência quando trabalhei na casa onde nasci e vivi até ser adulto. Salas, quartos, paredes, sons, cheiros: um mundo inteiro reapareceu, mas ainda consigo re-recordar essse mundo à luz da minha infância e não como espaço de trabalho. Infelizmente trabalhava lá. O foreindring faz de nós argonautas criativos a traçar um percurso que já fizemos, é o que é.

De quando datam as nossas mais antigas memórias de infância? A média anda pelos dois anos e meio de idade (Carole Peterson. What is your earliest memory? It depends. Memory, 2021; 1 DOI: 10.1080/09658211.2021.1918174). Deixemos a ciência especulativa, vamos para a especulação pura.

Antiguidade e qualidade da mais antiga recordação infantil: para que servem? Sim, por que motivo guardamos coisas enevoadas, as mais das vezes sem relevância nenhuma? O meu dinamarquês preferido tem uma definição de chupeta: um lugar de trânsito para mercadorias avariadas.

Os cientistas assinalam que essas memórias são moldadas pelas experiências de vida subsequentes, normas e valores assimilados (ou rejeitados) etc. Essas não me interessam: quero as pristinas, as intocadas.

A minha mais antiga tinha quatro anos. Estou no banco da escola e leio, no quadro, a giz: ano lectivo 1970/1971. Lembro-me de ter pensado, e fui-me sempre lembrando (a dupla recordação…) desde então: ena pá… e quando for 1978? Era para mim um futuro longínquo e fascinante.

As memórias são sempre más: se são boas, são más porque são de um tempo irrepetível; se são más, atormentam-nos.

No outro dia estava a pensar naqueles dois golos do Nuno Gomes nas Antas (era Koeman): caramba, são boas? Não, não são. Fazem amargar o presente.

Um psicanalista chanfrado, Ferenczi, num texto com um título ainda mais chanfrado (The psychic effect of sunbath, 1914) discorre sobre a neurose de domingo. A ideia é que todas as memórias depressivas ligadas a uma data (dia, hora, ano) específica são um gatilho que faz regressar um estado de impulsos reprimidos (uma constante psicanalítica). Ou seja, deprimimos porque nos lembramos da repressão.

É possível, pese a chanfradice, que o homem tenha uma certa razão. Quando recordamos certos episódios, recordamos também a impotência: apeteceu-me sei lá quê, só queria desaparecer etc, tive vontade de lhe ir aos fagotes etc. É curioso que talvez aconteça uma ligeira variação com as boas memórias: ficamos deprimidos porque somos impotentes para regressar a esse tempo e repetir a experiência. Pior ainda se não a aproveitámos como devia ser. Ficará talvez para outra altura em que falaremos de como pessoas vivas são memórias. Um pai ou uma mãe, por exemplo, ainda vivos, vão sendo para os filhos pessoas diferentes ao longo da vida: a certa altura os filhos vivem com um velho, mas recordam-no bem mais novo. Bizarro, não é?

Então deprimimos porque recordamos a repressão de impulsos associados a determinado acontecimento? Não chega: por vezes é mesmo a mágoa e a dor, simples.

Para conseguir arquivar precisamos de conceder à má memória um lugar respeitável. Pode ser uma morte, uma ofensa, um amor roubado, a coisa tem é de ter direito a coexistir com o resto da maralha. Ora, isto briga com a tendência natural de querer esquecer.

Arquivar significa então reconhecer a impotência diante do passado. Arrumamos as más memórias numa prateleira poeirenta porque elas fazem parte da mobília. Significa, num campo mais vasto, aceitar que a vida é um caminho para a derrota final e inexorável. E é um caminho radioso porque há várias metas-volantes deliciosas que só podemos apreciar se lhes dermos o devido valor. O valor da excepção.

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