Quem é eu quando se diz eu na literatura e na arte? Arthur Rimbaud, em carta para seu professor Georges Izambard em 13 de maio de 1871, ofereceu uma resposta célebre ao afirmar: “Eu é um outro” (“Je est un autre”). Nessa frase curta e precisa – de uma precisão que só os poetas são capazes de produzir –, está contida toda uma teoria da literatura. Ao conjugar o verbo em terceira pessoa, Rimbaud destitui o eu da frase de sua função de pronome pessoal e o transforma em sujeito, ou, literariamente falando, em personagem. Procedendo deste modo, deixa claro que, quando se diz eu no poema (e poderíamos acrescentar: na arte como um todo), este é sempre uma construção textual ou, mais amplamente, semiótica; ou seja, eu é sempre um outro, mesmo que, em última instância, o eu lírico coincida, retoricamente, com o eu empírico. Como muito bem sintetizou Fernando Pessoa – outro poeta, é claro – nos primeiros e igualmente famosos versos do poema “Autopsicografia” (1931): “O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. Versos que poderiam fazer eco àquele de Paul Dermée, lembrado por Mário de Andrade no “Prefácio interessantíssimo” de sua Pauliceia desvairada (1922): “O poeta é uma alma ardente, conduzida por uma cabeça fria”. O que está em jogo, portanto, na construção do eu, como em tudo mais na elaboração literária ou artística, é o fingimento; em outra palavra, a ficção.
Em Coleção de eus, exposição individual de Katia Maciel, apresentada em fevereiro deste ano na Galeria Zipper, em São Paulo, a artista anarquiza o eu, destituindo toda e qualquer autoridade implicada no pronome, inclusive a do autor. Ela desautoriza(-se) ao explodir o eu, decompondo-o, espelhando-o, apagando-o, multiplicando-o. No poema que aparece afixado ao espelho, partindo de um desdobramento da construção rimbaudiana “eu é”, o eu se torna outros, todos eles palíndromos, reforçando o jogo especular:
eu é asa
eu é ata
eu é ala
eu é aba
eu é ara
eu é oco
eu é osso
eu é esse
eu é sebes
eu é solos
eu é somos
Em outros trabalhos ― como em alguns desenhos, nas faixas usadas na performance de abertura, na grande plotagem na parede ―, o eu se secciona, fazendo dançar as letras e e u, que ora trocam de lugar, ora se separam por espaços em branco, ora se duplicam, ora desaparecem aos poucos, ora aparecem dentro ou sobre figuras geométricas (que, se não fossem planas, corresponderiam ao cone, cubo e cilindro a partir do qual Cézanne propunha que se apreendesse a natureza), ora estão inseridas no símbolo do infinito e acabam evocando, no centro da imagem, onde as linhas do infinito se cruzam, “exu”.
Talvez não por acaso esta é a primeira exposição individual de Katia Maciel em que não há trabalhos em vídeo, meio de predileção da artista. A palavra latina video corresponde ao verbo ver conjugado na primeira pessoa do singular. Ela comporta, portanto, em si mesma, não apenas a ação de ver, mas um sujeito que a executa: eu vejo. Nesta exposição, é como se o eu, pluralizando-se, outrificando-se, mais do que ver, se desse a ver. Em certa medida, a câmera que olha é substituída pelo espelho, em que o espectador é convidado a se enxergar e a assumir também a posição de eu, que, aqui, mais do que qualquer segurança egóica, oferece uma instabilidade potencialmente infinita.
Katia Maciel não nos deixa esquecer que, além de artista visual, também é poeta e, portanto, atém-se à palavra – um dos trabalhos exibidos é a íntegra das páginas do livro de poemas e de textos curtos que leva o mesmo título da exposição. No poema de abertura deste livro, “Manual do eu lírico contemporâneo ou coleção de eus”, evidencia a desestabilização que busca produzir no eu. As duas estrofes iniciais parecem sugerir uma necessária coincidência entre o eu lírico e o eu empírico:
1
ser eu
ser lírica
2
não ser eu
não ser lírica
A estrofe seguinte, no entanto, já coloca a questão sob outra perspectiva, lembrando Rimbaud:
3
não esquecer que eu é outros
embora outros não sejam eu
E a quarta não deixa dúvida da oscilação do eu ao longo do livro e dos demais trabalhos da exposição, em que este pode assumir tanto sua função de pronome pessoal, como também de sujeito e até mesmo de objeto:
4
o eu pode ser ficcional
o eu pode ser não ficcional
o eu pode ser friccional
Por isso, pode o eu dar tantas voltas que termina por ser o eu mesmo ― mas, entre eu mesma e na mesma, há o abismo da ironia, que é ainda outra volta:
5
diga a rimbaud
se eu fosse outra daria na mesma
Uma coleção de eus, em suma, talvez só possa ser uma anarquia, uma desordem, uma farra, uma festa (não por acaso, a vernissage terminou com uma seleção de músicas em torno do eu convidando à dança). Com esta exposição, Katia Maciel nos faz perceber como uma celebração da potência do pronome ― e não como satisfação egocêntrica ― aquele verso de “Mapa”, de Murilo Mendes, que diz: “Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente”. Ou, como diria a própria Katia em chave quase zen:
eu é tudo
eu é nada
eu é nado
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Katia Maciel